Em uma competição para motivar os estudantes, um grupo do 4º semestre de Engenharia de Computação conseguiu transferir 8,5 watts a uma distância de 33 centímetros
Bernardo Capoferri, Lívia Makuta, Guilherme Rameh e Henrique Frezzatti
Leandro Steiw
A transmissão de energia sem fios é uma daquelas tecnologias que, embora pareçam amplamente dominadas, permanecem em boa medida no campo das possibilidades. As baterias de alguns modelos de smartphones, por exemplo, já podem ser carregadas sem cabos pendurados nas tomadas. Entretanto, esses dispositivos de 7,5 watts de potência aproveitam apenas uma parcela do potencial de aplicação do circuito WPT (do inglês wireless power transfer). Em 2007, pesquisadores do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, acenderam uma lâmpada de 60 watts com uma fonte de energia localizada a dois metros de distância — um feito que até hoje é uma referência. Os alunos do Insper também são desafiados a dominar essa transmissão por frequências ressonantes, tema incipiente nas faculdades do Brasil. “Acreditamos que os nossos alunos saem na frente porque estarão trabalhando numa tecnologia que é pouco explorada no país”, afirma o professor Fabio Hage.
Na disciplina de Eletromagnetismo e Ondulatória, do 4º semestre, os alunos de Engenharia de Computação formaram grupos para construir um circuito WPT com os conhecimentos adquiridos ao longo do semestre. Lívia Sayuri Makuta, Henrique Martinelli Frezzatti, Bernardo Cunha Capoferri e Guilherme Dantas Rameh obtiveram o melhor desempenho da turma, com a transferência de 8,5 watts a 33 centímetros, uma marca admirável para a primeira experiência na área de quatro alunos de graduação. Essa potência seria suficiente para alimentar a bateria de um telefone celular ou de um marca-passo. No Insper, os alunos são preparados para resolver problemas reais, e o desafio superado pelos quatro demonstra o êxito dessa metodologia. “É impressionante o que eles conseguem fazer com dois anos de curso, se comparar com outras faculdades”, diz Hage, doutor em Engenharia Elétrica pela USP.
A primeira evidência de transmissão de energia elétrica pelo ar ocorreu no século 19. O engenheiro e inventor sérvio Nikola Tesla (1856-1943) conhecia as relações entre corrente elétrica e campo magnético e mostrou que uma bobina percorrida por uma corrente alternada poderia induzir força eletromotriz em uma segunda bobina posicionada próxima à primeira. Esse trabalho impulsionou tecnologias voltadas à geração de energia elétrica na modalidade alternada e de projetos de transformadores de tensão com núcleos de ferro. Durante quase um século, porém, a transmissão por indução foi considerada possível para pequenas distâncias, por causa da dispersão do campo magnético no ar e o consequente baixo acoplamento entre duas bobinas. A evolução dos dispositivos eletrônicos, somada ao desejo de eliminar o emaranhado de fios e cabos da nossa frente, animou diversos pesquisadores, entre os quais o professor Marin Soljačić e sua equipe de físicos e engenheiros do MIT. Com o acionamento a distância da lâmpada de 60 watts, eles validaram o modelo de transmissão por acoplamento indutivo ressonante — que foi a técnica utilizada pelos alunos do Insper.
Empolgação inicial
O desafio aos graduandos do 4º semestre pôs em prática os conteúdos de aula. “Sabíamos que, com o circuito WPT, estávamos trabalhando com um circuito parecido a um transformador, sobre o qual aprendemos muito durante o curso de Eletromagnetismo. Então, já tínhamos o modelo magnético, sabíamos como montar esse diagrama do circuito inteiro e fazer os cálculos para verificar qual seria a tensão que queríamos obter no final”, conta a aluna Lívia Sayuri Makuta. “Porque a gente queria fazer um elevador de tensão, ou seja, a tensão de saída seria maior que a tensão de entrada, talvez o dobro ou o triplo. Para construir esse modelo, tivemos que montar e analisar gráficos, para entender de fato como transmitiríamos uma maior potência, com uma melhor eficiência, por meio dos parâmetros que a gente podia controlar.”
Em busca da configuração ideal, o grupo precisou estimar um tamanho de bobinas que levasse à potência e à distância máximas. Na primeira etapa, simulações do modelo eletrodinâmico em computador, usando a linguagem Python, conduziram os alunos na definição das dimensões dos materiais. A execução do circuito WPT num protoboard, uma placa de ensaio para montagem de protótipos, foi a segunda etapa, acompanhada pelas medições de potência. “No começo, até nos empolgamos e pensamos em fazer uma bobina de um metro de diâmetro, mas aí nos limitamos aos 60 centímetros, que por coincidência também foi o diâmetro da bobina que os doutorandos do MIT usaram. Quando analisamos os gráficos, chegamos aos 60 centímetros, porque percebemos que uma indutância mais alta levaria a uma frequência de ressonância menor e, consequentemente, à melhor eficiência e à maior transmissão de potência, considerando as nossas limitações de materiais”, diz Lívia. (Indutância é a razão entre o fluxo magnético e a corrente elétrica que o produziu.)
A solução nem sempre é evidente. “O legal foi justamente esse processo de constante reiteração que precisamos fazer ao procurar uma solução para cada problema. Primeiro, não tínhamos como enrolar o fio porque não existia uma base muito boa de 60 centímetros. Como você vai encontrar um objeto tão específico?”, lembra o aluno Guilherme Dantas Rameh. “Então, buscamos ajuda no laboratório de fabricação do Insper, o Fab Lab, onde montamos a estrutura física da bobina com a ajuda da monitora Eliana Rodrigues Martins. Assim conseguimos fazer a base, enrolar o fio e montar a nossa bobina. Todo o processo de enfrentar um problema e solucionar da melhor maneira possível, ou da mais rápida, ou da mais eficiente, é um dos grandes aprendizados desse tipo de projeto.”
Teoria e realidade
O esforço pela resposta correta exige a habilidade de saber perguntar e ouvir. “No começo do projeto, conhecíamos o funcionamento da transmissão de energia e a modelagem do circuito. Mas não sabíamos a relação para que determinada bobina resultasse em certa indutância. Foi um problema para nós, porque a teoria e a realidade nem sempre batem. Foi o professor Hage que nos orientou que, em frequências muito altas, a resistência do fio aumenta. Além de obter uma indutância alta, tínhamos que evitar uma frequência muito alta para não perder muita energia na resistência do próprio fio da bobina”, recorda o aluno Bernardo Cunha Capoferri. “Desde o começo da faculdade no Insper, os professores falam que a gente tem que aprender a aprender. Então, temos a base para procurar as respostas. E confiaram na gente para descobrir o conceito por trás do experimento.”
O grupo não desperdiçou a ajuda dos monitores nas atividades para as quais eram menos experientes. “A Jenifer Ferreira de Marcena, do Laboratório de Física, Instrumentação e Medição, nos salvou bastante durante o projeto. O Guilherme e eu ficamos com a parte da elétrica, e a Lívia e o Bernardo enrolaram a bobina. Mas eu tinha montado circuitos no protoboard uma única vez, no primeiro semestre do curso, porque logo depois começou a pandemia e não tivemos outras oportunidades. Eu não tinha experiência manual com elétrica e pude aprender de fato como funcionam os componentes do protoboard”, diz o aluno Henrique Martinelli Frezzatti. “Isso foi importante, porque colocar a mão na massa é muito bom.”
O ciclo da Engenharia
Segundo o professor Hage, experimentos deste tipo fazem o estudante cumprir o ciclo completo da Engenharia. “Você tem um problema, cria um modelo, faz simulações de computador para poder prever e explicar as variáveis que vai medir. Você implementa, monta fisicamente o circuito e, então, tira conclusões desse processo. E aí se abre uma série de possibilidades para continuar o trabalho, como aprimoramentos e aplicações da tecnologia”, afirma. “Longe daquela cultura de sair simplesmente fazendo as coisas, eles usaram o modelo matemático, simularam e fizeram vários cálculos em Python, entenderam como funcionaria o circuito e depois foram para o laboratório com essa bagagem. Isso é Engenharia. Engenharia não é ficar calculando coisas sem aplicação. Assim, a gente juntou teoria e prática neste projeto.”
O dispositivo mais difundido na transmissão de energia sem fio são os carregadores de celulares. Entretanto, a provável expansão mobiliza o Wireless Power Consortium (WPC), uma associação de cerca de 400 empresas que quer estabelecer um padrão mundial de compatibilidade para carregadores e fontes de energia sem fio. Isso inclui o uso do WPT em notebooks, tablets, drones, robôs, carros, scooters, bicicletas, máquinas de automação industrial e cozinhas inteligentes, entre outros. Um desses padrões de carregamento universal é o Qi, adotado em smartphones Android e iOS, com taxas de transmissão de até 7,5 watts — também disponível em 15 watts e, conforme prometido, em 30 watts nos próximos anos.
Outra autoridade no assunto é a WiTricity Corporation, fundada pela equipe do MIT que desenvolveu a tecnologia de frequência ressonante. Uma das obsessões da empresa é a recarga sem cabo dos carros elétricos: na forma mais simples, bastaria parar o automóvel perto da bobina da vaga de estacionamento; na mais complexa, as bobinas estariam sob o pavimento de ruas e estradas, recarregando permanentemente os veículos. Em 2021, a empresa encomendou um estudo sobre o efeito do carregamento sem fio na venda de carros elétricos, ainda dependentes de cabos externos. Dos entrevistados, 81% mostraram-se extremamente interessados na tecnologia e 63% gostariam de dispor de estações públicas de recarga. Se o automóvel tiver um sistema ativo semelhante, a intenção de compra aumenta de 60% para 84% entre os consumidores que já pretendiam adquirir um carro elétrico nos 18 meses seguintes. Por sua vez, a Daihen Corporation emprega a patente da WiTricity em veículos autoguiados que circulam em suas fábricas e armazéns do Japão, destinados ao transporte de pessoas mais velhas ou que não dirigem. A Daihen também especula a funcionalidade do WPT no e5 Tanker, um navio-petroleiro de 3,5 megawatts de potência.
Evolução inevitável
Como deu para perceber, os 8,5 watts alcançados pelos alunos do Insper são suficientes para as aplicações mais cotidianas, justamente as que eles encontrarão na vida profissional. No entanto, a evolução para outras áreas é inevitável. Lívia e Henrique falam na área biomédica, em marca-passos e válvulas cardíacas. Bernardo cita a área militar, em navios e submarinos. “Caminhamos para equipamentos que, colocados na tomada de casa, fazem funcionar por acoplamento eletromagnético tudo o que é elétrico: computador, celular, mouse sem fio, caixa de som, iPad. É uma tecnologia para curto ou médio prazo. Dependerá do custo e do uso, porque o fio é um meio corriqueiro, ao qual estamos acostumados, e é comparativamente barato”, afirma o professor Hage.
A empregabilidade comercial da solução apresentada em aula, porém, não foi uma restrição do projeto. “Não pensamos numa limitação na hora de fabricar a bobina, necessariamente nesse sentido de aplicação em outros meios, porque o nosso propósito era transmitir a maior quantidade de potência na maior distância. Foi para isso que a nossa bobina foi fabricada. Mas vimos que uma bobina de 60 centímetros podia ser encaixada em algum lugar de um carro elétrico”, diz Guilherme. Tempo de execução e custo dos materiais acabaram sendo mais decisivos ¾ quanto maior a bobina, mais eles teriam de investir na compra de fios. “Além dessa limitação financeira, contou muito o tempo disponível. Tivemos uma semana para desenvolver o modelo matemático e mais uma semana para montar e testar a bobina e o circuito”, rememora Lívia.
Do segundo semestre de 2021, não restou apenas o melhor desempenho na competição decidida no dia 29 de novembro. “O projeto agregou bastante conhecimento e uniu bem os conceitos que a gente estudou. E foi divertido de fazer”, diz Henrique. Para Bernardo, o distanciamento forçado pela pandemia reduzira as oportunidades de trabalhar em equipe: “A gente adorou passar o dia inteiro juntos na faculdade, quebrando a cabeça, construindo a bobina, interagindo com os colegas dos outros grupos”. A pressão natural pelo melhor resultado valeu a pena. “Aprendemos eletromagnetismo de verdade. Conseguimos entender os conceitos e ver que a Engenharia não é só Física ou Matemática”, observa Lívia.
A ideia da competição foi motivar os alunos a analisar as variáveis mais importantes para atingir o sucesso. “O grupo do Henrique, do Bernardo, do Guilherme e da Lívia entendeu rapidamente que tinha que fazer uma bobina grande. Eles não tinham o fio do tamanho certo, então foram comprar. Não dava para fazer a estrutura física da bobina com o próprio fio? Eles foram ao Fab Lab, construíram essa estrutura e voltaram para o circuito”, elogia o professor Hage. “Eles tiveram a estratégia de ganhar a competição. Entenderam a lógica da competição e atuaram naquelas variáveis que poderiam resultar no primeiro lugar. Eu achei muito interessante essa postura que eles tiveram e que os diferenciou de outros grupos.”