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Decadência e Reconstrução: um livro para refletir sobre a gestão pública

Ex-aluna do Insper, a jornalista Malu Delgado conta a experiência de escrever com os professores Carlos Melo e Milton Seligman uma obra finalista do Prêmio Jabuti

Ex-aluna do Insper, a jornalista Malu Delgado conta a experiência de escrever com os professores Carlos Melo e Milton Seligman uma obra finalista do Prêmio Jabuti

 

Leandro Steiw

 

Malu Delgado, uma das autoras do livro "Decadência e Reconstrução"
A jornalista Malu Delgado: lições do Espírito Santo para o Brasil (Foto: Stefan Schmeling)

 

O livro Decadência e Reconstrução foi escolhido como um dos dez finalistas do 63º Prêmio Jabuti, na categoria Ciências Humanas. A repercussão anima a jornalista Malu Delgado, coautora com os professores do Insper Carlos Melo e Milton Seligman da obra que conta o processo de reerguimento do Espírito Santo após o desmantelamento da rede de corrupção e violência que vigorou no estado na década de 1990. Mesmo sendo lançado em plena pandemia de covid-19, o livro instigou diversas conversas virtuais com estudiosos de políticas públicas, lideranças políticas e empresariais capixabas, representantes do Ministério Público e da área do Direito. “Foi importante para refletirmos sobre esse momento do Brasil, que é de desânimo geral”, diz Malu.

Graduada em Comunicação Social e Jornalismo pela PUC-MG e com mestrado em América Latina na University of London, Malu trabalha há mais de duas décadas com jornalismo político. Durante a carreira, ainda no jornal Estado de Minas, cobriu a Câmara Municipal e o governo estadual, antes de se mudar para Brasília e se tornar setorista do Jornal do Brasil no Congresso Nacional. “Acho que quem trabalha no jornalismo político não pode não entender de gestão de políticas públicas”, observa. Nada mais natural que, depois de anos em redações, ela decidisse cursar uma pós-graduação na área. Ela explica:

“Até pela experiência que tive com o livro Decadência e Reconstrução e do meu contato com professores do Insper, me despertou a vontade de estudar políticas públicas. O Insper estava abrindo o PAGP, o Programa Avançado em Gestão Pública. Eu me interessei, me inscrevi e acabei começando. Já conhecia um pouco o universo do Insper porque eu tinha tido a chance de trabalhar com alguns professores, até como pesquisadora, e tinha sido uma experiência superinteressante.”

 

A tal da democracia

A pós-graduação foi concluída em dezembro de 2020, coincidindo com o lançamento do livro e abrindo novas possibilidades de aplicação. “Atualmente, o que me interessa muito é a questão da democracia. Para mim, esse é um estudo crucial. Estou avaliando se volto a estudar esse tema na linha de pesquisas da Comunicação ou das Políticas Públicas. Um dos tópicos que mais me instigam hoje é o letramento midiático e em que medida isso tangencia a democracia, até porque vejo ligações profundas entre esses dois temas no mundo atual”, afirma. Malu justifica como a pós-graduação pode ajudar a estudar democracia, tema que ela explorou em sua dissertação de mestrado, defendida em Londres, em 2009, durante uma licença não remunerada na Folha de S.Paulo, para onde havia se transferido após a passagem por Brasília:

“Acredito que um mestrado e uma pós-graduação aprofundam esse debate. No PAGP, tivemos algumas cadeiras que avaliavam a questão da liderança, o papel de uma liderança política, a transparência pública, a questão orçamentária, o orçamento público. Na visão macro, o PAGP aborda vários aspectos desse cotidiano do poder, com o qual eu tive e tenho experiência como jornalista. Isso além do debate sobre política pública em si. Você começa a entender algumas questões contemporâneas e a desmistificar um pouco esse debate fora da esfera institucional e político-partidária”, diz Malu. Para os jornalistas, ela acrescenta, “é muito interessante compreender o universo da política pública, para que se possa ter um olhar mais técnico”. “Naquele meio político-partidário, o jornalista ouve um discurso, uma retórica e uma narrativa muito contaminados, porque os partidos têm as suas visões e, muitas vezes, essas visões não são nem um pouco fundamentadas tecnicamente. E isso vale tanto para a centro-direita quanto para o campo da centro-esquerda. Quando se fala de privatização, por exemplo, é um debate muito contaminado. Ou quando você se fala de reforma administrativa, outro campo minado. Essas discussões precisam ser técnicas.”

Segundo a jornalista, uma das coisas para as quais o PAGP abriu o seu olhar é a questão da evidência. “Você não pode implementar, avaliar e planejar uma política pública sem que isso tenha alguma base em evidência. Acho que a imprensa brasileira é muito superficial nesse discurso. Às vezes, temos algum espaço de colunistas, de analistas, para avaliar as políticas públicas, mas a grande verdade é que a imprensa brasileira não cobre política pública. Ela cobre a retórica, a narrativa. Agora, os debates mais aprofundados, por exemplo, eu quase não vejo”, afirma.

Malu diz que a pós-graduação em políticas públicas a ajudou a aprofundar sua visão macro e a avaliar questões como orçamento, transparência e liderança. “Tudo isso tem relação com a democracia. Acho que esses são pilares democráticos. Por exemplo, quando você entende um pouco disso, você vê a deterioração democrática no atual governo. Começa com a questão da disponibilidade de dados, a dificuldade de ter acesso a dados, transparência. A questão orçamentária, que a gente está vendo agora nesse orçamento secreto. Tudo isso é um emaranhado de princípios que sustentam uma democracia. Nesse sentido, as coisas se relacionam.”

 

Brasil em transe

Malu Delgado trabalhava como jornalista freelancer, após uma temporada na revista piauí, quando encontrou o professor Carlos Melo, do Insper, uma das fontes cativadas na editoria de política do jornal O Estado de S. Paulo. Ela recorda: “Era naquele momento em que o Brasil estava em transe, por causa da Lava-Jato, do impeachment da Dilma. O deputado Eduardo Cunha havia acabado de ser preso. Eu conversava muito com o Carlos, estava fazendo alguns projetos independentes. Num dia que a gente foi tomar um café, eu perguntei: ‘Carlos, o que vai acontecer neste país, para onde a gente vai, que loucura que é essa?’”.

A perplexidade pode até ser um esporte nacional, mas ganha outra dimensão para alguém que testemunhou, profissionalmente, grandes acontecimentos em Brasília. “Logo que cheguei a Brasília, houve a cassação do Luiz Estevão, o primeiro senador da República cassado, e acompanhei todo o processo. Acompanhei o processo da CPI do Narcotráfico e várias CPIs importantes naquele início dos anos 2000. Eu também peguei o finalzinho do governo Fernando Henrique, a primeira vitória do Lula, depois de vários anos de tentativas e eleições. E foi um momento muito rico politicamente, foram muitas transformações”, narra Malu.

Melo sugeriu que eles pesquisassem algo sobre a questão da liderança política. A intenção era fazer estudos de caso para discutir nas aulas do Insper. “Existia na época um núcleo de Relações Governamentais no Insper, que tinha o Milton Seligman, e o Núcleo de Liderança Política, no qual o Carlos Melo estava bastante envolvido, porque liderança política é um tema que o Carlos sempre estudou”, afirma Malu. E, no meio do caminho, surgiu a ideia do Espírito Santo, que passara por um processo de denúncias, investigações e prisões que culminou com uma espécie de intervenção federal mais branda no estado: a Missão Federal. Malu estava no Jornal do Brasil, cobrindo o Congresso Nacional, quando ocorreu a CPI do Narcotráfico, em 1999.

“Não lembro exatamente como,  mas a ideia de pesquisar sobre o processo do Espírito Santo surgiu a partir da ascensão da Lava-Jato e de paralelos e conexões que fizemos com o Brasil atual. Acho que era aquele exemplo da  degeneração absoluta institucional nos três níveis de poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. Conversando, a gente falou como isso já havia acontecido no Brasil, em outras esferas, e foi lembrando o caso do Espírito Santo. Decidimos ver o processo daquela época, por que no Espírito Santo deu certo, como o estado se tornou uma referência fiscal, como fizeram um ajuste fiscal bem-sucedido. Na época da CPI do Narcotráfico, o Espírito Santo era o patinho feio, porque havia envolvimento de políticos, bicheiros, policiais, desembargadores no crime organizado. Houve esse envolvimento muito grande do poder com o narcotráfico também.”

 

O processo é penoso

As conversas começaram a incluir o professor Milton Seligman e chegaram à direção do Insper, que decidiu financiar parte do trabalho. “Agradeço demais a disponibilidade e o acolhimento para a pesquisa, porque eu não era docente ou funcionária do Insper. Ganhei uma espécie de bolsa, durante um tempo, para fazer a pesquisa com o Carlos e o Milton”, diz Malu. A pré-produção começou em 2016: contatar as fontes, ver quem queria falar ou não, montar um roteiro, pesquisar sobre os fatos daquele período. A primeira viagem em 2017 deu início a um exaustivo trabalho de campo.

“Fizemos várias entrevistas com empresários, políticos e representantes da sociedade civil. Então foi um grande resgate. Algumas pessoas deram depoimentos anônimos, porque não queriam aparecer, não queriam se expor. Era um assunto traumático para muitos. Muitos políticos, por exemplo, sofreram ameaças de morte, ficaram mais de seis, sete anos com acompanhamento contínuo de segurança da Polícia Federal. As pessoas tinham essa história na memória, porque foi um momento traumático para o setor empresarial, produtivo e político no estado. E sobretudo para a sociedade, que foi a mais prejudicada naquele período todo.”

As pesquisas e os depoimentos deixaram claro como o curso da decadência à reconstrução da política não é simples. “No Espírito Santo, foram anos de trabalho, conversas e coalizões para resolver a crise. É lógico que existe um ápice, quando as pessoas acordam e resolvem trabalhar coletivamente, mas o processo de transição é lento e penoso. Acho que o livro mostra que o processo é possível, desde que os atores, os stakeholders, tenham de fato a vontade de fazer essa mudança”, analisa Malu.

 

Uma eleição no caminho

Em 2018, acumulando pesquisas, viagens, gravação e transcrição de entrevistas e organização de um vasto material, a história estava pronta para ser escrita. Mas o lançamento não seria fácil, como recapitula Malu: “Quando terminamos de escrever, eram as eleições de 2018. Um cenário complicadíssimo no Brasil. Achamos temerário tentar lançar o livro naquele momento. Não queríamos que as pessoas entendessem a pesquisa como alguma questão política. Queríamos que entendessem como um exemplo de algo que deu certo e com um fundamento para ter dado certo, e que na verdade houve vários atores responsáveis. Não deu certo só por causa de fulano ou  beltrano. Deu certo porque houve uma coletividade envolvida. Em 2018, existia certa perplexidade no Brasil. Em 2019, começou o governo Bolsonaro numa situação supertensa, e não mexemos mais com o livro.”

Faltava também conseguir algum patrocínio ou uma editora para publicar. O projeto ficou na gaveta por quase um ano. “Em 2020, voltou um pouco essa reflexão da Lava-Jato, uma discussão sobre o papel do Judiciário, a parcialidade de Sergio Moro, o julgamento do Supremo. A coisa ganhou de novo um fôlego, e nos animamos a tentar novamente desengavetar o livro”, conta a jornalista. Surgiram os apoios da editora BEĨ e da Fundação Brava. A publicação renasceu, com as devidas atualizações dos fatos ocorridos durante a pausa do projeto. O esforço foi recompensado pela indicação entre os dez finalistas do 63º Prêmio Jabuti, na categoria de Ciências Humanas.

“A importância do estudo de caso é algo que a gente vê muito no meio acadêmico. O estudo de caso nos traz muita clareza sobre as coisas. E essas coisas podem ser aplicadas no universo macro. Então, acho que o Espírito Santo pode se tornar uma referência macro, para as lideranças políticas, para as lideranças empresariais e para a sociedade civil.”

 

Algo pode dar certo

Para Malu, Decadência e Reconstrução estimula o leitor a fazer paralelos daquela época com as crises contemporâneas, com outros obstáculos ainda maiores em relação à ameaça democrática. Ela cita um trecho do prefácio escrito pelo jornalista e cientista político Sérgio Abranches: “Entender a lógica que leva ao fracasso e aquela que permite o resgate, com sucesso, de sistemas políticos falidos é essencial para evitar o caminho do desastre socioeconômico e político e a penosa via do resgate. Em qualquer campo da vida coletiva, destruir é mais rápido do que reconstruir”. Os fatos recuperados no livro podem ser inspiradores, como Malu exprime:

“Isso define tudo sobre o livro, sobre a decadência, que foi o que o estado viveu, e a reconstrução. Os processos de reconstrução são penosos, lentos, mas  absolutamente necessários e gratificantes. Acho que o Espírito Santo é um caso de sucesso. Dá certo alento para nós, brasileiros, vivendo tudo o que estamos vivendo hoje neste país. Vamos acreditar que em algum momento alguma coisa pode dar certo.”

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O Programa Avançado em Gestão Pública do Insper (PAGP) está com as inscrições abertas. Para saber mais, clique aqui.

 

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