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Muito além do microscópio

Para Paulo Saldiva, o saber médico precisa atuar em conjunto com outras áreas do conhecimento se quiser contribuir, de fato, com o bem-estar dos cidadãos

Para Paulo Saldiva, coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o saber médico precisa atuar em conjunto com outras áreas do conhecimento se quiser contribuir, de fato, com o bem-estar dos cidadãos

TOMAS ALVIM
Coordenador do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

RINALDO GAMA
Coordenador de Conteúdo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

A ideia de que todas as mazelas urbanas poderiam ser resolvidas com o microscópio ou uma bureta ganhou notoriedade no século XIX, sobretudo a partir dos trabalhos do cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) e do médico alemão Robert Koch (1843-1910). Não vingou. Por um motivo simples: a saúde dos cidadãos depende da atuação conjunta de muitos, muitos saberes. E tal confluência de conhecimentos precisa ser alinhada e alinhavada por uma política pública que congregue, ela mesma, diferentes agentes: governos, iniciativa privada e sociedade civil (aí incluídos, claro, os acadêmicos).

Imagem mostra Paulo Saldiva, coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São PauloEsse raciocínio, que muito antes da peste do Sars-CoV-2 já se caracterizava por sua notável prevalência na mente do patologista Paulo Saldiva, só se acentuou durante o surto global de covid-19. Mas há um problema. “Hoje em dia os saberes em geral, não só os relativos à medicina, não podem estar separados – e no entanto, as instituições de ensino continuam compartimentando tudo”, diz Saldiva, coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor titular da FMUSP. “Falta universalidade nas universidades. O mundo não cabe dentro dos nossos departamentos. Ele é muito mais complexo”, sublinha. “Muitas das questões relativas às doenças que encontramos nas cidades estão no planejamento urbano – não estão dentro de um lugar com paredes brancas e uma cruz na porta”, avalia. No Insper, onde multidisciplinaridade e transversalidade são princípios norteadores, o patologista tem se sentido à vontade.

Detendo-se no dia a dia da medicina, Saldiva destaca que “em um país desigual como o Brasil, o médico precisará ter cada vez mais um bom entendimento de antropologia social – entender a doença em um espectro mais amplo”. Essa percepção amplificada se revela incontornável especialmente quando se consideram as populações de maior carência. “Eu acho que a gente tem que expor desde o início aos alunos mais bem favorecidos economicamente ‘a vida como ela é’ da desigualdade.  Eles têm que falar em nome daquelas pessoas que vivem nos territórios vulneráveis; tornarem-se instrumentos de redução da desigualdade. Isso é tão importante quanto ser um bom médico. Aliás, ‘ser um bom médico’ é também saber ouvir – é um exercício de alteridade”, afirma o patologista.

Apesar de sua reiterada observação de que “pandemia é coisa de cidade”, e de cerca de 86% da população brasileira viver em urbes, Saldiva­­ ressalta que “infelizmente, estamos mal preparados para pandemias e doenças infectocontagiosas”. Para além da desastrosa condução da luta contra o novo coronavírus por parte das autoridades federais, os dados e evidências são implacáveis: dengue e chikungunya vêm aumentando ano a ano, e a febre amarela está de volta. “Há uma expansão geográfica dessas doenças e nós, médicos, sozinhos, não podemos fazer nada.  Se a gente pegar coisas mais prosaicas, como a própria habitação e a mobilidade urbana, vamos ter a explicação do porquê morreu mais gente pobre do mesmo vírus na mesma cidade durante a pandemia de covid-19: uma questão de impedimento social, não voluntário, em relação ao isolamento”, analisa o médico.

Membro do Comitê de Qualidade do Ar da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciência, o patologista, de 67 anos, faz parte do grupo da USP que realiza as autópsias feitas em pessoas cuja morte, ocorrida na maior cidade do país, resultou de complicações causadas pelo Sars-CoV-2. (Ressalte-se que a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo é o maior centro de autópsias do planeta – são 15 mil por ano –, e que Saldiva foi pioneiro na chamada Autópsia Minimamente Invasiva na pandemia de covid-19.)

Sua rotina nos últimos 20 meses é de devastar qualquer um, física e mentalmente. Não por acaso, nesse período, o patologista, ex-ateu confesso, passou a rezar. Engana-se, todavia, quem porventura enxergar nisso algum indício de desesperança na medicina. Melhor pensar em como o filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) se referia aos confrontos entre ciência e religião: para ele, eram “batalhas sombrias”. Ou então lembrar da origem da palavra “espírito”, que – como enfatizam os neoateístas – vem do termo latino spiritus, tradução do grego pneuma, que quer dizer “respiração”. Haja fôlego.

Ciclista nas raias do ativismo, Paulo Hilário Saldiva pedala ao redor de 150 km por semana, nas triangulações entre sua casa, no tradicional bairro do Bixiga, até a Faculdade de Medicina da USP, que fica na avenida Doutor Arnaldo, perto da Paulista, e o campus central da USP, no Butantã. Não é isso, entretanto, que o mantém com todo o gás. “Eu tenho uma alma urbana. Não sei se nasci assim ou se a cidade de São Paulo me transformou nisso. Você não tem como ser indiferente à capital paulista. Ela é muito intensa. Saiu daquele período de degradação, que vigorou principalmente do final da década de 50 até início dos anos 80, e está começando a ser reconstruída. Eu talvez não veja, mas os jovens que estão vindo verão uma cidade melhor do que esta sobre a qual nós estamos falando agora”, concluiu o médico na entrevista a seguir, testemunho de uma esperança, por assim dizer, “ativa” – e não mero sinônimo de espera. Acompanhe.

O senhor tem chamado a atenção – como em um texto recente publicado na revista Piauí – para o fato de que “pandemia é coisa de cidade” (aliás, esse foi o título do artigo). Diante de tal constatação, e considerando que o Brasil tem cerca de 86% de sua população vivendo em cidades, não é difícil concluir que a preparação para casos de grandes surtos epidêmicos deveria ser uma prioridade no país. Em face do cenário da covid-19 por aqui, como o senhor analisa essa questão?

A Piauí, como sabemos, não é um compêndio de clínica médica.  Mas o fato é que eu poderia ter dito que doença mental é coisa de cidade; obesidade é coisa de cidade; o infarto e o AVC também são mais frequentes nas cidades. Sim, as cidades são pontos de atração de “febres”, como costumamos falar; são pontos de atração de doenças crônicas degenerativas. São reflexos de mudanças de uma vida que eu chamo “compasso evolutivo”. O modo urbano de viver representou uma alteração brusca em aspectos como o perfil alimentar, a mobilidade, as próprias relações de trabalho, a forma com que você é solicitado. Tudo isso desemboca em duas coisas: maiores fatores de risco e menor disponibilidade de tempo para você cuidar de si próprio. O “luxo”, entre aspas, de cuidar de si mesmo é o único jeito para você ter uma “sustentabilidade” – sem entrar, claro, em fatores essenciais para a saúde que são conhecidos desde os fenícios, como o tratamento de esgoto. A verdade, porém, é que nós só tivemos um urbanismo sanitário de fato na Inglaterra do século XVII, com uma percepção que era uma combinação de duas ideias centrais: que as doenças eram transmitidas por miasmas e pestilências e, também, que era a pobreza que criava a doença. Então você tinha que melhorar as condições de vida; era uma coisa meio higienista.  O sanitarismo foi, de um lado, um modo de tentar resolver isso, mas sempre com um viés autoritário, que permanece até hoje. Muito da Revolta da Vacina [1904] veio dessa atitude, dos deslocamentos compulsórios. A gente percebe um restinho disso em programas como o Minha Casa Minha Vida, que, por questões de preço, muitas vezes produz moradias em áreas desprovidas de serviços de saúde, educação e transporte.

Por que é tão difícil prevenir para as plebes? Porque a medicina não pode regular sobre isso. Havia uma ilusão de que a ciência sozinha conseguiria debelar as pragas do mundo. Isso foi muito reforçado com [Louis] Pasteur e com [Robert] Koch – aquela ideia de que seria possível resolver as mazelas urbanas com o microscópio ou uma bureta. Não deu certo. Sabem por qual motivo? Porque a saúde terá sempre que dialogar com outro setor sobre o qual não tem gestão.

Indo mais direto ao ponto central da pergunta, eu diria que, infelizmente, estamos mal preparados para pandemias e doenças infectocontagiosas. Vamos pegar os indicadores. Dengue e chikungunya estão aumentando ano a ano; nós temos também a volta da febre amarela. Há uma expansão geográfica dessas doenças e nós, médicos, sozinhos, não podemos fazer nada, porque existem fatores envolvidos, como o uso e a ocupação de solo, questões de regulação e gestão, que não contam com nossa interferência. Se a gente pegar coisas mais prosaicas, como a própria habitação e a mobilidade urbana, vamos ter a explicação do porquê morreu mais gente pobre do mesmo vírus na mesma cidade durante a pandemia de covid-19: uma questão de impedimento social, não voluntário, em relação ao isolamento.

Nós, médicos, não opinamos sobre o limite de velocidade nas avenidas, não opinamos sobre a sinalização semafórica, a punição dos crimes ao volante com bebida incluída. E não ter prevenção leva a uma demanda excessiva do sistema de saúde, que hoje vive em colapso. Só para dar um exemplo, o Hospital das Clínicas não conseguiu retomar metade das cirurgias eletivas que ele tinha antes da pandemia.

Existe agora uma demanda reprimida gigantesca; uma demanda de doenças, de hipertensão, de diabetes descompensado. Estamos com um problema enorme que é receber para tratamento indivíduos com, por exemplo, um câncer muito avançado, devido a essa demanda reprimida. E não temos como compensar isso – não apenas porque há escassez de funcionários mas também porque a doença já avançou demais.

Retomando um pouco, o senhor pontuou que a ideia de que a medicina resolveria tudo vem da época de Pasteur. Uma vez constatado o erro dessa premissa, a solução estaria na transversalidade, no cruzamento de diferentes áreas do conhecimento e da própria gestão pública – em última análise, da política – no auxílio para que a saúde pudesse exercer o seu verdadeiro papel? Seria isso?

Foram os próprios médicos que contribuíram para criar a expectativa colocada em cima da medicina e da ciência. Na Enciclopédia Francesa [1755-1772] escreveram filósofos, pensadores de um modo geral, e médicos, porque o médico era a pessoa que representava melhor o ideal iluminista do momento, quando a medicina começava a dispor de alguns recursos terapêuticos mais eficientes. Antes, os médicos não punham a mão no doente. Praticava-se uma medicina de biblioteca; o que tínhamos eram eruditos que liam livros e supervisionavam tudo de longe. O barbeiro de Sevilha fez mais coisas para os sevilhanos do que os médicos de Sevilha daquele tempo. Então começaram a surgir as anestesias, você já podia abrir um tórax; surgiram as vacinas, enfim, tudo isso foi subsidiando a imagem de que o médico iria poder fazer tudo. Eu penso que isso esteja magnificamente retratado no Frankestein – O Prometeu Moderno [1818], da britânica Mary Shelley [1797-1851]: o indivíduo que transpassa o limite nítido do divino e então é punido. Havia ali a ideia de que o médico poderia fazer tudo, entretanto a realidade mostrou que não era bem assim. O que acabou impulsionando o desafio de uma boa formação médica.

O auge disso se deu quando do aparecimento do famoso Relatório Flexner [1910], preparado pelo educador estadunidense Abraham Flexner [1866-1959] por encomenda de Andrew Carnegie [empresário americano, nascido na Escócia, 1835-1919], magnata das ferrovias e filantropo. O bilionário pediu para Flexner avaliar primeiramente o ensino médio. Depois, percebendo que a medicina dos Estados Unidos era ruim, solicitou uma avaliação das escolas médicas. O educador usou como parâmetro a Johns Hopkins, que era uma faculdade com padrão europeu. Visitou uma centena de escolas e viu que para se formar um bom médico era preciso acesso à ciência que se praticava no momento, professores profissionais e uma prática clínica supervisionada em hospitais. Colocou tudo isso no relatório, que não era normativo, porém os pais que queriam ver seus filhos transformados em bons médicos passaram a mandá-los estudar em instituições que seguiam o documento de Flexner. Essa migração de estudantes para as escolas de medicina que atendiam os princípios de Flexner provocou a falta de demanda e o fechamento de muitas instituições de ensino médico – infelizmente, muitas daquelas que aceitavam mulheres e negros; demorou quase 70 anos para recompor esse quadro.

Quando Flexner fez seu relatório, a medicina evoluía a cada 50 anos. Então, o que você sabia na formatura levava até o fim de sua prática profissional. Depois, na segunda metade do século XX, a coisa caiu para 15 anos. No início dos anos 2000, eram cinco. E agora está em sete meses. Ou seja: aquela conclusão do Flexner de que o médico precisa saber toda a base da ciência do momento para praticar a medicina, esquece! Desde que se especializa, você não faz mais olho, você faz retina. Estuda um pedacinho, alguns milímetros e se torna o chefe daquilo. Hoje, com um aplicativo na mão, eu consigo fazer diagnóstico de um monte de coisa sem precisar saber aquilo a fundo porque existem os algoritmos que me orientam. Ser um bom médico, portanto, vai implicar em outros valores. Você terá de entender as realidades do paciente, terá de ouvir o paciente. Em um país desigual como o Brasil, o exercício da medicina depende de onde você está. Atender uma pessoa colocando-a na maca pode ser válido se essa for a única alternativa, mas se for porque a vaga está reservada para alguém que possa pagar, deixa de ser. O médico precisará ter cada vez mais um bom entendimento de antropologia social – entender a doença em um espectro mais amplo.

Existe algum lugar em que uma formação assim para o médico já começa a ser dada?

Existe. Nos Estados Unidos, por exemplo, Harvard conta com um bom projeto, a Johns Hopkins também, a Universidade da Califórnia, a Brown University – que teve como presidente, entre 2001 e 2012, Ruth Simmons, a primeira mulher negra a assumir a direção de uma Universidade da chamada “Ivory League” dos EUA. Eu a conheci pessoalmente e posso dizer que ela é uma força da natureza. A Brown fica num lugar muito pobre e Ruth veio desse meio; então, tinha um olhar diferenciado para as questões de formação e atendimento às comunidades carentes.

Eis um medo que eu tenho das escolas médicas privadas: com uma mensalidade altíssima, quem se forma lá pode não ter essa sensibilidade com relação à realidade dos mais necessitados. Não que isso seja uma norma, óbvio. Eu mesmo vivi numa situação muito privilegiada e senti uma transformação quando entrei numa escola pública. Eu acho que a gente tem que expor desde o início aos alunos mais bem favorecidos economicamente ‘a vida como ela é’ da desigualdade.  Eles têm que falar em nome daquelas pessoas que vivem nos territórios vulneráveis; têm que se tornarem instrumentos de redução da desigualdade. Isso é tão importante quanto ser um bom médico. Aliás, ‘ser um bom médico’ é também saber ouvir – é um exercício de alteridade tipo Martin Buber [pensador austríaco (1878-1965), conhecido sobretudo por sua “filosofia da relação”, notabilizada com a publicação de  Eu e Tu, em 1923, no qual ele afirma: “Toda vida verdadeira é encontro”]. Não é ter pena; é se colocar no lugar da pessoa que está passando por um problema. Ter pena é muito fácil; o mais difícil é sentir solidariedade e amor.

Já que se falou de desigualdade, o senhor tem defendido a ideia de que o Sistema Único de Saúde, o SUS, acabou se tornando um modelo de atendimento capaz de reduzir as disparidades sociais no âmbito da saúde. Ao mesmo tempo, todavia, ele ainda possui fragilidades. O senhor poderia falar um pouco sobre as vitórias e os defeitos do Sistema?

O SUS se baseia no modelo canadense, no inglês e em algumas características do modelo alemão, em que a medicina privada tem pouco espaço. Os médicos, ao longo do tempo, passaram a constituir uma sociedade muito poderosa, ciosa de seus próprios interesses. Quando o então presidente americano Franklin Roosevelt [1882-1945] criou o programa New Deal [1933-1937], ele queria fazer na área da saúde uma coisa parecida com o que havia no Canadá e na Inglaterra e não conseguiu, por força da associação médica do seu país. Hoje, o Brasil gasta cerca de 9 % do PIB com saúde. É a mesma proporção que Uruguai, Argentina e Chile. A Alemanha e o Canadá destinam algo em torno de 11%; o Reino Unido pouco mais de 10%, enquanto os Estados Unidos estão, junto com Tuvalu e as Ilhas Marshall, na Oceania, entre os países que gastam 17% ou mais do seu PIB com saúde – e apresentam uma performance significativamente pior do que Alemanha, Canadá e Reino Unido.

Uma pergunta então fica no ar: qual a razão do pior desempenho do sistema de saúde do Brasil quando comparado com o Chile e Uruguai? Primeiramente, temos que ressaltar a desigualdade social e econômica do nosso país. O desempenho do sistema de saúde de qualquer nação depende muito da vulnerabilidade da população que dele se utiliza. Temos significativa fração do nosso povo vivendo em condições de pobreza e subemprego, o que, em si, aumenta em muito a sua carga de doenças. Por outro lado, a distribuição dos recursos de saúde é também desigual, devido ao que chamo de uma progressiva “privatização branca” do SUS. Isso não começou agora; o início do processo vem de algum tempo e se acentuou a partir do governo Temer [31 de agosto de 2016 a 1 de janeiro de 2019]. O sistema federal vem reduzindo progressivamente o investimento, ao mesmo tempo que cria novos programas de saúde e atribui mais despesas ao estados e municípios. Atualmente o SUS atende 7 em cada 10 brasileiros e recebe 48% dos recursos totais investido em saúde em nosso país. Em outras palavras, mais da metade dos gastos de saúde, fruto da contribuição para a previdência privada, são aplicados para 30% dos brasileiros.

Há que considerar que, mesmo com o subfinanciamento relativo do sistema público, o SUS representa um avanço tremendo para a população brasileira e deve ser apoiado e aprimorado. Muito eficiente na atenção primária, o SUS deve e pode melhorar o fluxo da rede para tratamento de doenças de maior complexidade. Por exemplo, se você pede um hemograma, ele até sai rápido. Contudo, se uma gestante precisar fazer um exame de infecção urinária – fundamental para evitar prematuridade ou contaminação fetal –, demora um mês e meio, dois, para chegar. Tarde demais! Se precisar de um ultrassom, demora muito também. Um exame de tomografia? Entra numa fila enorme.

Nesse contexto, surge o “corujão da saúde”: o uso de horários ociosos dos hospitais para “tirar o atraso”. Exame dá lucro – e médico ruim pede muito exame, o que deixa a conta mais alta. Exame feito, a pessoa é detectada, por exemplo, com um problema grave, mas não há capacidade resolutiva no sistema. E aí? Entra em cena, então, a “ambulancioterapia”: o prefeito comprou ambulâncias, pôs seu nome na faixa na hora de entregar e, numa situação assim, de maior complexidade, o doente vai para o Hospital das Clínicas, vindo de uma cidade a mais de mil quilômetros de distância. Estou falando HC não porque o considere o centro do mundo, mas porque vivo lá. Todos os hospitais públicos de excelência apresentam o mesmo cenário.

O SUS funciona bem até você controlar uma hipertensão, diabetes ou fazer uma cirurgia de média complexidade, porém se você precisar de transplante, de uma quimioterapia, de algo que exija um investimento maior, não tem para todo mundo, porque não há financiamento para todos. Cada marca-passo que você põe num coração, hoje, você recebe um valor abaixo do custo do equipamento. Então, não estamos falando apenas de financiamento, mas também um problema de fluxo e de gestão. Dá para melhor bastante, mas é necessário reorientar os investimentos e – por que não? – fazer com que a população em geral acredite mais no SUS. Acho que a atuação do sistema público durante a pandemia aumentou a credibilidade do sistema, só que é preciso ir além. Os sistemas de saúde dos países com melhor desempenho são aqueles com maior participação e cobertura pública e parcerias público-privadas.

O senhor frisou que muita coisa é delegada aos municípios e eles não recebem para isso.

E nem têm quadro técnico.

Um bom caminho não seria integrar mais as esferas?

Veja o programa Saúde da Família. Ele surgiu com o propósito de você aumentar a capacidade resolutiva do sistema por meio de uma abordagem multidisciplinar. Entretanto, para dar certo, é preciso formar uma rede; para que aquele médico que está na ponta tenha uma referência. Na Amazônia a coisa é completamente diferente porque você tem pequenas comunidades que estão distantes centenas de quilômetros e separadas por água. Nessas condições você não consegue consolidar Unidade Básica de Saúde, então o pessoal está trabalhando com um ambulatório flutuante, um posto flutuante, com hospitais de atendimento secundário, que fazem cirurgias e também flutuam. Quer dizer: você tem uma rede flutuante que funciona.

Já na nossa realidade mais próxima, a rede funciona melhor nos estados que têm mais folga financeira e mais competência instalada; não sendo assim, o que se faz é “ambulancioterapia”. E isso prejudica todo o planejamento e a previsão orçamentária do atendimento, porque você não consegue determinar o tamanho da sua demanda, afinal ela deixou de ser só daqui mesmo ou da região vizinha.

É possível resolver isso? Sim. Vou dar um exemplo: transplantes. A fila de transplantes do Brasil é muito eficiente. Temos muitos doadores por causa das elevadas taxas de mortalidade em jovens saudáveis por acidentes e outras causas de violência. O Brasil é uma máquina eficiente de reciclar órgãos de pessoas que morreram antes do tempo, pois tem uma fila única organizada – por uma associação entre a rede pública e o sistema privado.

A coisa foi estruturada pelo Ministério da Saúde em 2010 e possui um sistema centralizado de gestão, de busca e captação de órgãos, que ordena a fila de espera de acordo com a gravidade dos casos. Participam as secretarias de saúde, a rede de hospitais públicos e privados, as empresas aéreas que fazem o transporte de longa distância e, em alguns locais, o resgate e corpo de bombeiros. Funciona como um relógio, 24 horas por dia, sete dias por semana, sem burocracia, carimbos ou indicações políticas para os cupinchas de estimação de algum parasita. Um organismo totalmente “desvermifugado”. Outros bons exemplos são o Programa Nacional de Imunização e também a Vigilância Epidemiológica. Funcionam muito bem. O setor de saúde, então, está melhor que a segurança pública. Se for detectado um caso de uma paciente com um agente infeccioso de alto impacto em alguma parte do Brasil, a informação é repassada para todo o país instantaneamente. No entanto, se você cometeu um crime em algum estado e mudar para outro é capaz de nunca saberem. A polícia não consegue cruzar bem os dados, mas a saúde já mostrou que é possível fazer isso com muita eficiência.

O senhor falou que maus médicos pedem muitos exames, e isso, claro, pesa no custo da saúde. E destacou que gastamos menos da metade do orçamento para a área com 70% da população. Nos EUA, frisou o senhor, o orçamento da saúde é elevado e isso não resolve nada – ou resolve pouco. E no Brasil, afinal de contas, estamos gastando menos do que deveríamos ou se trata apenas de melhorar o gasto do dinheiro público com a saúde?

Proporcionalmente, nosso gasto é pequeno para o sistema de saúde público e relativamente elevado para a saúde complementar. É como você colocar a cabeça no gelo e o pé no fogo; na média você está bem. Foi como eu disse anteriormente, a distribuição é desigual, o que acentua ainda mais as vulnerabilidades de quem menos tem.

Dependendo de onde você esteja, há também um problema de redes de doenças crônicas. Precisamos de recursos para acompanhamento de pacientes crônicos. Na saúde mental isso tem funcionado bastante. Dá para pensar também em soluções tecnológicas: você conseguir monitorar parâmetros físicos on-line. Mas a grande mudança terá que ocorrer na questão da igualdade. Do contrário, não sobrará recursos para todos. Pensem em realidades como o envelhecimento da população – a gente não está preparado para isso. Na verdade, não estamos preparados para deficiências de qualquer natureza, sejam físicas ou mentais; temos aí os exemplos da zika e agora das sequelas da covid-19.

Não adianta ficar inaugurando hospital, cortando fita, se não existir sustentabilidade econômica e principalmente política, no sentido amplo do termo. Há, por exemplo, a proliferação de escolas médicas ruins. Teve muito curso de medicina bom aberto nos últimos tempos, mas também foram criadas faculdades ruins por questões meramente políticas. O Brasil ainda tem um longo caminho para percorrer no campo da saúde; um é na gestão e outro é político, basicamente.

Mário Sheffer, especialista em Saúde Pública e professor da Faculdade de Medicina da USP, escreveu recentemente o seguinte no blog que foi convidado a manter no site do jornal O Estado de S. Paulo durante a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a covid-19: “O mau comportamento de planos de saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) durante a crise sanitária justificariam a abertura de uma nova CPI. Operadoras tiveram autorização da ANS para manter reajustes abusivos, negaram testes de covid e se omitiram de compartilhar leitos nos momentos de colapso do SUS. Lucraram com a pandemia, perderam poucos clientes e aproveitaram para ir às compras, expandiram suas redes de clínicas e hospitais.” Qual o seu entendimento do problema?

Sheffer está absolutamente certo. Não foram todas, mas grandes corporações médicas expandiram, sim, durante a pandemia. Eu pressinto que vai vingar um “covidão”, assim como tivemos o “mensalão” e o “petrolão”. Muita gente aproveitou o regime emergencial para fazer um pé de meia. Quando chegar a hora, essas pessoas vão ser recebidas por aquele que não se diz o nome como “sócias” e não como “condenadas”, uma vez que cometeram perversidades que nem mesmo a categoria dos demônios teria aceito: o “Código de Ética” do Inferno não aprovaria.

No primeiro ciclo de palestras realizado pelo Arq.Futuro, em 2011, tivemos a presença do arquiteto e urbanista carioca João Filgueiras Lima [1932-2014], o Lelé, que, injustamente, nunca recebeu o Pritzker Prize. Na ocasião ele fez uma apresentação seminal e falou sobre os arquitetos algo muito semelhante ao que o senhor disse a respeito dos médicos. Para Lelé, o arquiteto precisa parar de ser um especialista; tem de ser mais generalista. Precisa olhar as pessoas, ter uma sensibilidade mais larga dos problemas da cidade antes de propor uma solução. No trabalho do senhor, chama a atenção essa procura da sensibilização do médico para outras áreas e a sua aproximação com os territórios vulneráveis. É essa convergência que cultivamos, o senhor sabe, no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Nossa pergunta: como converter isso em políticas públicas?

Essa pergunta é a mais difícil de responder. Eu vou pegar um exemplo de um indivíduo inteligente, Peretz Lavie, que foi presidente da Technion University entre 2001 a 2019. A Technion foi fundada em Haifa em 1924 antes do estabelecimento do Estado de Israel e era mantida por doações principalmente vindas dos Estados Unidos. Quando, após a Guerra dos Seis Dias [1967], Israel começou perder suporte tecnológico militar da França, a questão passou a ser esta: ou criar tecnologia ou morrer. A Technion foi a escolhida para dar conta disso. Passada a fase de desenvolvimento militar, a Technion University passou a ser um dos mais relevantes centros globais de produção tecnológica, notadamente em saúde. Para tanto, foram quebradas as barreiras entre disciplinas e departamentos formais, através de polos de criação e desenvolvimento absolutamente multidisciplinares. Pois mesmo na Tecnhion, que era uma universidade pequena, foi difícil derrubar as barreiras da disciplinaridade. Peretz me confidenciou que seria mais fácil estabelecer a paz entre Israel e Palestina do que produzir entendimento entre diretores de faculdades e departamentos.

Atualmente, os saberes em geral, não só os relativos à medicina, não podem estar separados – e no entanto, as instituições de ensino continuam compartimentando tudo. Falta universalidade nas universidades. Elas continuam superficialmente separando o conhecimento em caixas. Nós, no IEA da USP, até fizemos uma proposta para que o aluno de medicina pudesse se formar com uma graduação em inovação e tecnologia em saúde.  Propusemos mesmo um programa com esse perfil para a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], mas não prosperou.

Na França, onde não se estava conseguindo mudar esse cenário de compartimentação do conhecimento, o governo central começou a incentivar o trabalho das universidades em rede, abordando temas estratégicos. Agora, ou elas se agrupam ou perdem força – quero dizer, perdem dinheiro. Não vejo esse movimento ainda acontecendo na universidade brasileira, sobretudo por uma questão cultural; teriam de mudar alguns paradigmas. Mas esse é o futuro. O mundo não cabe dentro dos nossos departamentos. Ele é muito mais complexo.

O núcleo que o senhor coordena no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper está programando um curso de educação executiva em Saúde Urbana e iniciando uma pesquisa com o uso de dados de autópsias. O senhor poderia comentar essas iniciativas?

O curso de Saúde Urbana é um cartão de visita e um convite para um diálogo entre o urbanismo e a saúde. Para mim, muitas das questões relativas às doenças que encontramos nas cidades estão no planejamento urbano – não estão dentro de um lugar com paredes brancas e uma cruz na porta. Usei a imagem do cartão de visitas, mas o curso, além disso, é um trampolim, uma forma de começar. Tenho no horizonte, também, um podcast em que médicos, enfermeiros e pacientes – todos habitantes, claro, da cidade – falem sobre um mesmo problema, sempre sob o mote da alteridade, do eu e do tu, em um diálogo com urbanistas, com arquitetos, garantindo a interdisciplinaridade.

Que é também a espinha dorsal da pesquisa, não?

Sem dúvida. Ela está sendo tocada pelo Núcleo de Saúde Urbana em conjunto com o de Mobilidade e o de Urbanismo Social, coordenados, respectivamente, pelos nossos colegas Sérgio Avelleda e Carlos Leite.

Eu costumo tratar a cidade como um organismo de vida saudável e doente, com algumas doenças específicas. Então a pesquisa vai nessa direção. Você liga necrose do miocárdio com trânsito local; olha o caminho que foi percorrido, segue uma fibra no meio do corpo da pessoa para chegar na rua.

Assim, se a saúde pudesse ser um dos elementos organizadores das políticas urbanas, acredito que muita coisa avançaria. Atualmente temos essa avalanche de dados e a inteligência artificial que pode cruzar todos eles. Se a gente ensinasse fisiologia urbana na universidade, como a cidade funciona, suas disfunções, suas disfuncionalidades, suas distopias, poderíamos progredir. Vamos ver. A vontade é grande; o sonho é grande.

Muito se discute sobre o futuro das cidades. Elas, no fundo, são insubstituíveis. Quem faz a opção de morar no interior idílico, porque não aguenta mais a vida urbana, perde o que elas têm de mais espetacular: o encontro, a diversidade, a troca; tudo aquilo que levou o economista americano Edward Gleiser a afirmar que a cidade é a maior invenção da humanidade. Pois bem: o senhor atua em um centro de autópsia que não para de trabalhar durante a pandemia; tem uma vida acadêmica intensa e, ao mesmo tempo, é um ciclista nas raias do ativismo, que mora em um bairro tradicional, de muita atividade popular. O senhor é um autêntico cidadão urbano, portanto pode falar com propriedade. Qual mensagem deixaria para todos os que vivem na cidade?

Eu tenho uma alma urbana. Não sei se nasci assim ou se a cidade de São Paulo me transformou nisso. Você não tem como ser indiferente à capital paulista. Ela é muito intensa. Eu vejo vários indicadores na cidade que mostram como ela saiu daquele período de degradação, que vigorou principalmente do final da década de 50 até início dos anos 80 – quando a gente asfaltou o rio, destruiu tudo que tinha de bom –, e está começando a ser reconstruída. Não adianta fazer bons planos diretores, como alguns que tivemos. Além da qualidade deles, é preciso também ter persistência e combatividade, e essa combatividade tem que envolver “o bom combate”.

Acho que São Paulo está fazendo isso, por linhas tortas, porém dentro do que a gente queria. Eu percebo o aumento nos índices de áreas verdes, as mudanças nos transportes públicos, na distribuição de recursos. Existem leis que obrigam a atribuição de mais recursos para os lugares de maior vulnerabilidade social. Enfim, está se criando um arcabouço, tanto legal como de cidadania, que vai fazer com que a cidade reverbere e se recupere. Ela não vai ser a cidade que muitos sonharam nas décadas de 20 e 30. Ainda bem que Oswald de Andrade [1890] morreu em 1954 – ele sonhava ainda com uma cidade que ia ser moderna, que ia ser um pouco antropofágica, no entanto não viu a destruição; eu acho que ele não aguentaria isso. Contudo, a gente está se reconstruindo aos poucos. Noto a cidade começando a sair daquele looping de mergulho e começando a subir. Eu talvez não veja, mas os jovens que estão vindo verão uma cidade melhor do que esta sobre a qual nós estamos falando agora.

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