John Milton opôs-se à censura prévia de livros na Inglaterra. Seu compatriota John Locke concentrou-se na defesa da tolerância, enquanto o norte-americano James Madison, nos princípios estabelecidos na Primeira Emenda à Constituição dos EUA. Já o também britânico John Stuart Mill marcou com a obra “Sobre a Liberdade”, de 1859, a consolidação da ideia moderna de liberdade de expressão.
Em momentos distintos, entre os séculos 17 e 19, esses autores construíram argumentos centrais em torno do direito à livre expressão na sociedade, segundo análise do cientista político Fernando Schüler.
Seu trabalho, “A Invenção Improvável: o Nascimento da Ideia Moderna de Liberdade de Expressão, de John Milton a John Stuart Mill”, foi publicado neste mês na Revista Famecos, da PUC do Rio Grande do Sul.
Nele, o pesquisador e professor do Insper traçou um breve panorama da evolução do tema na sociedade a partir de quatro momentos centrais nesse processo. Confira a seguir quais são eles.
‘Areopagítica’
A obra de John Milton (1608-74) foi apresentada ao Parlamento inglês em novembro de 1644, poucos meses após o líder parlamentar Herbert Palmer exigir a queima de um “livro perverso” no qual o poeta discorria a favor do divórcio.
Em “Areopagítica”, Milton defende a liberdade de impressão de livros e a revogação de uma normativa que estabelecera, em 1643, um sistema de licenciamento redundando na censura prévia das obras.
Para o autor inglês, livros constituem um tipo de organismo que ganha vida própria, produzindo efeitos imprevisíveis e para além do tempo de seus autores. Eliminá-los, portanto, equivaleria a assassinato.
A censura, argumenta, é estranha à tradição das liberdades inglesas. Impede, ainda, a construção de conhecimento e o aperfeiçoamento dos indivíduos.
Por outro lado, o livre mercado de ideias, com a confrontação aberta ao erro, conduz à verdade.
Nesse processo, o homem comum exerce sua capacidade de discernimento, dispensando o filtro de censores. Estes últimos, acrescenta o inglês, estão sujeitos à falibilidade humana, assim como os governantes que os escolhem.
A seu ver, não a compete a ninguém julgar, organizar e administrar o conhecimento difuso da sociedade.
John Milton oferece ainda um argumento pragmático: a censura, em geral, revela-se inútil, uma vez que livros representam uma parte limitada do universo da cultura.
‘Carta sobre a Tolerância’
John Locke (1632-1704) produziu o ensaio sobre a tolerância, em latim, durante seu exílio holandês, no inverno de 1685-86.
A versão em inglês saiu no fim da década, época em que vigorava o sistema que estabelecia a censura prévia de publicações na Inglaterra.
A carta de Locke, explica Fernando Schüler, sintetiza a visão madura do filósofo inglês acerca da tolerância e da liberdade de pensamento. Por isso, o professor do Insper concentra sua análise nela.
Ao abordar as relações entre Igreja e Estado, o filósofo inglês argumenta que não compete a governos tratar de assuntos espirituais, por serem de natureza privada e não afetarem o bem público.
Ações coercitivas do Estado nesse campo, na visão dele, resultam nulas, pois o indivíduo jamais poderia crer por imposição. A religiosidade serve como matéria de persuasão e de convencimento.
Na obra, que se revela um ensaio de tolerância evangélica, Locke define a Igreja como uma associação livre e voluntária entre os homens, ou seja, com espaço para a dúvida e interpretação no universo teológico.
Já a intolerância às diversidades de opinião, que não podem ser evitadas, é apontada como a fonte de tensão e guerras em torno da religião no mundo cristão.
Nesse ponto, destaca Schüler, John Locke apresenta o argumento da tolerância como condição para a estabilidade política.
Primeira Emenda à Constituição americana
Coube ao político e advogado James Madison (1751-1836) sistematizar e condensar as duas centenas de proposições que viriam a compor a “Bill of Rights” [carta de direitos].
A carta, que entrou em vigor no fim de 1791, reúne as dez primeiras emendas à Constituição americana, das quais a primeira assegura a liberdade de religião, expressão, imprensa, reunião e petição aos governos.
A Primeira Emenda consagra um tipo inédito de proteção à liberdade, no âmbito do Estado moderno, diz Fernando Schüler.
O cientista político destaca que, embora exista a visão de que a história da liberdade de expressão fora pequena até ali, a melhor leitura seria a de que a Primeira Emenda representa o ponto culminante da garantia do direito à livre expressão, produto de um longo caminho de maturação.
Em 1798, sua força é posta à prova. “The Sedition Act” [lei de sedição] torna crime expressar “qualquer escrito falso, escandaloso e malicioso” contra o governo, o Congresso ou o presidente. Ainda no mesmo ano, o ato é declarado inconstitucional.
Pouco depois, James Madison argumenta, em um documento, que o tema fora resolvido pela Primeira Emenda. Portanto, não cabia ao Congresso legislar sobre a imprensa e a opinião.
Para o político, que mais tarde se tornaria o quarto presidente americano (1809-1817), o mais amplo direito à livre expressão está na natureza de um governo republicano. E mesmo que uma minoria faça mau uso desse direito, ele deve ser assegurado.
‘Sobre a Liberdade’
Publicada em 1859, a obra de John Stuart Mill (1806-1873) consolida a fundamentação moderna da liberdade de expressão. Nela, estão reunidos argumentos como o da preservação de uma arena livre para o embate de ideias.
O confronto de opiniões, na visão do autor, oferece a melhor possibilidade para alcançar a verdade, mesmo que não possa assegurar que será obtida.
Além disso, trata-se de uma forma de lidar com a falibilidade a que todos os indivíduos estão sujeitos, entre eles censores e as autoridades a quem respondem.
O filósofo britânico argumenta ainda que a busca pela verdade deve ser constante, com espaço permanente para a dúvida e para o respeito ao contraditório.
Esse processo, a seu ver, mostra-se benéfico à sociedade, ao, por exemplo, preservar um ambiente cultural de formação e revisão de visões de mundo e assegurar que minorias possam se manifestar.
No entanto, na avaliação de Mill, quando a opinião expressa em um determinado contexto produz um risco real e objetivo contra outras pessoas, como o de um ato de violência, o limite da liberdade de expressão é ultrapassado.
Se publicada na imprensa a opinião de que negociantes de milho deixam pobres famintos, esta opinião encontra-se protegida. Mas, se for dita a uma multidão enraivecida em frente à casa de um negociante de milho, esse ato resultaria em punição.