Como transformar ciência em decisão estratégica? Como fazer com que dados, evidências e pesquisa aplicada saiam do universo acadêmico e passem a influenciar diretamente o desenho de sistemas de saúde mais eficientes, humanos e sustentáveis? Essas são algumas das perguntas que orientam o livro da engenheira de produção Ana Paula Beck da Silva Etges, professora do Insper. Lançado internacionalmente no final de 2024 , The History Behind Science and the Science that Makes History in Healthcare Business busca responder a essas questões por meio de histórias reais — projetos que uniram academia, gestores e profissionais de saúde em soluções concretas para velhos problemas do setor.
“Eu sempre senti que os artigos científicos conversam muito bem entre pares, mas não com a sociedade como um todo”, diz Ana Paula. “O livro é uma releitura de projetos de pesquisa que atuei, mas com uma linguagem acessível, voltada para líderes, gestores e pessoas que querem entender melhor os caminhos possíveis para inovar em saúde e em sistemas complexos.”
O conteúdo da obra reflete a trajetória da autora: professora do Insper em cursos de MBA de Gestão de Saúde e programas executivos voltados a empresas da área da saúde, professora do programa de pós-graduação em epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora e pesquisadora do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Ana Paula é também sócia da PEV, empresa de consultoria que atua em projetos no Brasil, Portugal e Estados Unidos. Recentemente, ela participou de um evento no Insper ao lado da cardiologista Carisi Polanczyk (chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Moinhos de Vento), do oncologista Victor Piana de Andrade (CEO do A.C. Camargo) e da economista Isabela Brandão Furtado (professora do Insper), ocasião em que autografou exemplares da obra.
A ligação de Ana Paula com o setor da saúde começou ainda no mestrado, quando teve contato com a indústria de radiofármacos. Mas foi ao coorientar uma tese de doutorado de uma gestora de riscos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre que ela mergulhou de vez no setor. A partir daí, sua tese de doutorado em gestão de riscos corporativos e governança em organizações de saúde consolidou esse caminho.
“Na época, me chamou muito a atenção como os modelos de decisão em saúde, especialmente os de incorporação tecnológica, eram feitos com dados de custo muitas vezes vindos de outros países. Isso não refletia a realidade do Brasil. Foi aí que comecei a me dedicar à medição de custos em saúde de forma mais profunda”, explica.
O livro traz justamente esse olhar técnico aplicado a questões práticas. Um dos capítulos mais emblemáticos trata de projetos voltados ao AVC (acidente vascular cerebral) no Brasil. A partir de estudos de custos realizados em parceria com hospitais de referência e com a Rede Brasil AVC, Ana Paula e sua equipe propuseram novos modelos de remuneração mais sustentáveis para o Sistema Único de Saúde (SUS).
“Mostramos que é possível tomar decisões com base em ciência, melhorar o cuidado, reduzir desperdícios e ainda garantir sustentabilidade financeira. Esse é o coração do conceito de valor em saúde”, resume.
A obra também aborda casos na oncologia, insuficiência cardíaca, obesidade e ortopedia, explorando como redesenhar linhas de cuidado usando ferramentas como design thinking e gestão proativa de dados em tempo real. Além disso, discute o papel da liderança médica e multidisciplinar na transformação de sistemas, e encerra com uma visão de futuro: que história queremos contar sobre a saúde em 10 anos?
Para Ana Paula, um dos maiores desafios do sistema de saúde brasileiro é sair da lógica fragmentada e centrada no volume de procedimentos — o chamado fee-for-service — para um modelo que privilegie a jornada do paciente e os resultados em saúde.
“Hoje, o sistema remunera quem faz mais exames, cirurgias, internações. Mas não necessariamente quem cuida melhor. Precisamos de uma visão integrada, com foco em prevenção, diagnóstico precoce e desfechos clínicos reais. Só assim vamos alcançar o estado de uma população mais saudável com o recurso financeiro disponível”, afirma.
A sustentabilidade financeira é outro ponto central. Ela lembra que o Brasil já gasta em torno de 9 a 10% do PIB em saúde (somando os sistemas público e suplementar), o que está próximo da média internacional. O problema, diz, não é o quanto se investe, mas como se investe. “Temos que transformar esse investimento em saúde de verdade. O foco não pode ser só em ampliar o acesso à tecnologia, mas em garantir que ela efetivamente gere valor ao longo de uma linha de cuidado.”
Ana Paula diz que boa parte dos projetos relatados em seu livro foi desenvolvida dentro do SUS. Ela faz questão de destacar o potencial do sistema público como campo de inovação. “O SUS é o maior sistema de saúde universal do mundo. Apesar dos desafios, ele permite implementar estratégias de valor em grande escala. Temos bases de dados importantes, profissionais engajados e muitas iniciativas bem-sucedidas. O livro mostra que é possível inovar dentro do SUS”, afirma.
Ela também destaca aprendizados que a pandemia da covid-19 — outro tema abordado na obra, deixou ao SUS. Ana Paula coordenou um dos maiores estudos econômicos sobre a pandemia no país, e afirma que esse foi um marco na compreensão da importância de sistemas universais, da regulação da telemedicina e da necessidade de planejamento de longo prazo.
“Ficou claro que nenhum país estava preparado. Estive em um fórum da OMS na Europa em maio deste ano, e a mensagem foi unânime: precisamos repensar os sistemas de saúde para os próximos 40 anos. A pandemia mostrou que não dá mais para manter modelos muito voltados a tratamento e novas tecnologias de alto custo. A saúde do futuro é preventiva, integrada e centrada no indivíduo”, diz.
A atuação de Ana Paula fora do Brasil também reforça essa perspectiva global. Em Portugal, ela atuou em projetos de reestruturação de linhas de cuidado para obesidade e cirurgia de catarata, financiados por fundos europeus. Nos Estados Unidos, participa de projetos de base científica no setor da saúde e, recentemente, apresentou as experiências brasileiras no seminário da Harvard Business School sobre valor em saúde.
Com trânsito entre a academia, a consultoria e a prática hospitalar, Ana Paula tem se dedicado a formar profissionais e gestores capazes de atuar nesse novo cenário. Além de sua atuação no Insper, segue como professora e orientadora na UFRGS e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
“O livro é um convite para todos que querem entender como ciência, estratégia e liderança podem — e devem — caminhar juntas. Ele não é apenas uma coletânea de estudos, mas uma proposta de mudança. Que história vamos contar sobre a saúde daqui a dez anos? Essa resposta está em nossas mãos”, conclui.