Entre 2015 e 2024, os valores do orçamento da União dedicados às emendas parlamentares saltaram de 3,9 bilhões de reais, em valores corrigidos, para 48,3 bilhões de reais. Isso porque, a partir de 2013, uma série de alterações constitucionais e legais gradativamente tornou obrigatório o pagamento das emendas parlamentares ao orçamento e elevou o seu valor mínimo, além de criar novas modalidades de emendas.
As mudanças também obrigaram o Poder Executivo a reservar recursos crescentes a serem alocados pelos parlamentares e a indexar o valor mínimo obrigatório a ser alocado para emendas ao crescimento da receita, bem como a flexibilizar os requisitos de transparência e controle sobre o uso dos recursos.
Trata-se de um fenômeno raro entre países com boas práticas orçamentárias, como aponta um estudo inédito, de coautoria de Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper. Produzido em parceria com Hélio Tollini, ex-secretário federal de Orçamento e consultor de Orçamentos aposentado da Câmara dos Deputados, o trabalho compara a prática brasileira com as de 11 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“O principal resultado desta pesquisa”, conclui o estudo, “é que o Brasil tem um sistema atípico, em que o Congresso Nacional tem um poder de determinação do orçamento muito superior ao observado nos países analisados. Em todos os demais países estudados, o processo orçamentário é amplamente controlado pelo Poder Executivo. Mesmo nos Estados Unidos, em que o Congresso refaz todo o orçamento, a discricionariedade dos parlamentares é limitada por regras do processo orçamentário.”
Marcos Mendes detalhou o trabalho e analisou esse cenário durante o encontro “Emendas Parlamentares: Desafios e Oportunidades no Orçamento Público”, realizado ao vivo, via LinkedIn, no dia 29 de outubro, em diálogo com Mariana Almeida, diretora executiva da Fundação Tide Setubal e professora do Programa Avançado em Gestão Pública do Insper.
“O conjunto das políticas públicas passa pelo orçamento, que é formulado e executado pelo Executivo, mas passa pelo Legislativo e pelas emendas parlamentares. É um espaço de disputa, que envolve um jogo de versões, um assunto hermético, que oferece dificuldades para a leitura”, lembrou Mariana Almeida. “Por isso mesmo, no Insper, temos um curso de planejamento e acompanhamento de orçamento público, com inscrições abertas, voltado para pessoas que não necessariamente trabalham com o tema no dia a dia, mas que podem se beneficiar desses conhecimentos.”
Durante a live, Mendes apontou que, em geral, ao Legislativo cabem as funções de fiscalização e controle, acompanhadas por um debate a respeito das prioridades nacionais e da qualidade do gasto realizado. Não há, em qualquer dos países analisados por ele e Tollini, liberdade e poderes tão amplos e pulverizados para alterar o orçamento quanto os do Legislativo brasileiro.
“Na OCDE, a discussão se volta para decidir quais áreas são prioritárias, como educação ou saúde. No Brasil, os parlamentares picotam os recursos em vários pedaços. Nosso poder político, partidário e eleitoral induz esse comportamento”, ele comentou, além de contextualizar: “Esse aumento das emendas disparou especialmente em 2015 e em 2020. Foi uma reação do Legislativo a situações de conflito com o Executivo, num momento em que os presidentes, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro, encontravam dificuldades em negociar com o Congresso.”
No caso brasileiro, as consequências da seguidas alterações que se sucederam nos últimos anos geram uma série de críticas, que, como aponta o estudo, “envolvem desde a impropriedade de se usar recursos federais para financiar despesas de caráter local, até denúncias de corrupção, ineficiência na provisão de serviços públicos, discriminação de municípios que não têm representantes no Congresso, desequilíbrio na disputa eleitoral e aprofundamento do déficit fiscal crônico”.
Uma das principais defesas da expansão das emendas é o argumento de que existe um padrão global de estabelecer que a definição das prioridades orçamentárias seja feita pelo Poder Legislativo. Não foi o que o trabalho constatou. A situação, em cada um dos 11 países analisados, é muito diferente da que se observa no Brasil.
1. Alemanha – O Parlamento pode apresentar e aprovar emendas ao orçamento. Nos últimos dois anos, as emendas parlamentares reduziram, em vez de aumentar, as dotações de despesas.
2. Austrália – O Parlamento australiano não pode emendar o orçamento. Em assuntos orçamentários, seu papel é debater e questionar o orçamento proposto.
3. Canadá – As comissões da Câmara dos Comuns e os parlamentares, podem recomendar, mas não impor, realocações ou reduções de despesas. Raramente alguma dessas propostas é aprovada.
4. Chile – O Parlamento não pode emendar o orçamento para aumentar as despesas, mas pode reduzir ou rejeitar unilateralmente qualquer item de despesa ou programa.
5. Coreia do Sul – O Poder Executivo precisa aprovar qualquer aumento pretendido pela Assembleia, a não ser que resultante da aprovação de emenda a alguma proposta de legislação tributária em tramitação, o que não ocorreu nos últimos cinco anos.
6. Espanha – Em teoria, as emendas são propostas unilateralmente pelo Parlamento. Entretanto, em geral, a maioria das emendas aprovadas foram aceitas ou mesmo sugeridas pelo Poder Executivo.
7. Estados Unidos – O processo começa com o Poder Executivo enviando ao Congresso uma solicitação de recursos. O Legislativo tem autoridade para refazer o orçamento. As emendas de interesse individual dos parlamentares estão limitadas a 1% da despesa discricionária (no Brasil, já chegam a 24%).
8. França – Poder Executivo tem forte influência sobre as emendas que são aprovadas. As emendas não podem provocar aumento na despesa total.
9. Itália – Poucas emendas são aprovadas e dependem da concordância do Executivo. Não podem elevar a despesa total e representam valor residual dentro do orçamento.
10. México – Emendas têm valor um pouco maior quando o Executivo não tem maioria no Congresso. Mesmo assim, o Executivo tem amplo controle sobre as emendas aprovadas e o valor total não passa de 5% das despesas discricionárias.
11. Portugal – O processo de proposição de emendas tem alguma semelhança com o brasileiro, no que diz respeito à inexistência de análise de custo-benefício. Porém, emendas aprovadas são em número muito menor que no Brasil e não necessariamente são executadas pelo Poder Executivo.
Quando desejam alterar o orçamento, os congressistas dos países estudados têm que pagar o ônus político de identificar qual despesa será cortada ou qual tributo será elevado para abrir margem para suas emendas. “No Brasil”, aponta o estudo, “os parlamentares evitam esse ônus ao determinar que o Executivo faça a reserva (...) [de recursos], que financia as emendas de execução obrigatória, e ao realizar cortes quase lineares na programação enviada pelo Poder Executivo, visando financiar emendas adicionais àquelas de execução obrigatória”.
Há possibilidades de que esse cenário mude? Durante o encontro ao vivo, Mendes se disse pouco otimista. “Vejo três caminhos. O primeiro é reformar o processo eleitoral. Se mudarmos o sistema eleitoral, seria mais fácil buscar novas estratégias para negociações políticas. Outro caminho seria manter o sistema eleitoral como está e reduzir as emendas, uma mudança pouco provável. O terceiro caminho, que me parece o mais viável, é que o cenário se mantenha como está, com aumento da transparência, uma mudança que tem sido buscada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).”
Enquanto isso, constatam Marcos Mendes e Hélio Tollini, “em um sistema reconhecido por eleger presidentes sem maioria no Congresso, por ter um número elevado de partidos com representação no legislativo, baixa diferenciação ideológica entre partidos, alto grau de individualismo dos parlamentares na condução dos seus mandatos e interesse destes em beneficiar suas bases eleitorais e seus financiadores de campanha, é inevitável que um alto poder de emendar o orçamento gerará pulverização de recursos em pequenos itens de despesa, priorização de projetos políticos individuais em detrimento de políticas públicas de interesse geral, uso de recursos federais para políticas que deveriam ser financiadas pelos governos locais, rigidez da despesa induzindo desequilíbrio fiscal crônico e propensão à corrupção”.
Leia o estudo “É assim em todo lugar? Emendas parlamentares no Brasil e em 11 países da OCDE”