A chegada do DeepSeek, o modelo de IA generativa de código aberto desenvolvido pela empresa chinesa homônima, sugere novos rumos nos negócios e na sociedade com uso da inteligência artificial (IA). “DeepSeek: como a IA chinesa superou o mundo” foi o tema da Masterclass Insper do dia 25 de fevereiro. Os convidados foram os professores do Insper André Santana, especializado em inovação, tecnologia e inteligência artificial, e Marcelo Nakagawa, especialista em inovação, empreendedorismo e negócios digitais. A apresentação foi de Michel Fornaciali, coordenador do Programa Avançado em Data Science e Decisão do Insper.
Fornaciali lembrou que o lançamento do DeepSeek desafiou os gigantes da tecnologia, como OpenAI, Google e Anthropic. Parte da novidade está na aposta da empresa chinesa em uma tecnologia de código aberto (“open source”) e na inovação colaborativa, além do baixo custo de processamento de dados. Como explicou Santana, as “big techs” adotam uma estratégia pautada na relação entre a utilização de suas ferramentas de IA generativa e o retorno financeiro. Quanto maior o uso da tecnologia, maior o ganho. Porém, em termos de processamento, a geração de cada unidade básica de informação do DeepSeek (os chamados “tokens”) custa quase 60 vezes menos do que a do GPT-1, o grande modelo de linguagem pioneiro da OpenAI, lançado em 2018.
Essa diferença chocou a comunidade acadêmica e o mundo dos negócios, disse Santana: “O GPT-4o tem uma fragilidade na comparação com o DeepSeek, que é o processo de construção da resposta de treinamento. O GPT constrói essas respostas, do ponto de vista técnico, consultando uma base de conhecimento com bastante informação e preocupado em trazer a melhor resposta que consegue encontrar nessa base de dados. O efeito colateral é consumir muito recurso computacional. Já o DeepSeek não sai buscando informação em tudo quanto é canto. Ele é mais eficiente. É como se o DeepSeek estivesse refletindo dentro desta sala quem tem a maior probabilidade, por exemplo, de falar sobre negócios e inovação. Ao invés de perguntar para cada pessoa que está aqui dentro, o DeepSeek vai direto no professor Marcelo. Isso torna o processo muito mais rápido e barato”.
E como as empresas devem aderir à IA? Para Nakagawa, um grande desafio é não cair na tentação de seguir a moda da IA generativa sem uma estratégia de transformação digital. “É a questão de como é que se trazem e medem os resultados a partir dessa estratégia”, afirmou Nakagawa. “Hoje, talvez pouquíssimas empresas renovem as licenças deste ano para o outro porque começaram a usar a inteligência artificial quase como um brinquedo. E, às vezes, até de uma forma bastante perigosa, porque colocam informação confidencial nesses sistemas abertos. De 2% a 4% das empresas estão começando a tracionar projetos. Eu sempre cobro primeiro a visão de futuro da companhia: o que você quer ser daqui a cinco ou 10 anos, como a tecnologia digital entra nisso como meio e qual é a estratégia digital que estará atrelada à estratégia corporativa. Pouquíssimas empresas sabem responder essas questões.”
Seguindo a linha da “IA para o Bem de Todos”, mote da proposta de um Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, Santana vislumbra alguns benefícios imediatos na nova tecnologia. “Consigo pensar em alguns casos de uso envolvendo comunicação na área de saúde”, disse Santana. “Penso em times médicos de tratamento de pacientes que envolvem profissionais de áreas diferentes. Os modelos de linguagem acabam servindo como intermediários nesse processo de discussão, garantindo que a informação possa ser mais fluida.” Ele também citou vantagens no combate à fraude bancária e na engenharia de manutenção preditiva, ambas já com resultados conhecidos. Nakagawa acrescentou os tratamentos de saúde apoiados por melhores diagnósticos, as pesquisas de medicamentos e, particularmente no Brasil, o reforço na segurança pública e no combate aos crimes cibernéticos.
Falando em tendências, Santana imaginou o futuro da IA generativa com modelos mais especializados, regulamentados e ambientalmente sustentáveis. Por sua vez, Nakagawa refletiu sobre o bom e o mau uso da inteligência artificial. “O que pode acontecer se você pegar o DeepSeek e rodar em processadores mais rápidos e potentes?”, questionou. “Com a capacidade computacional evoluindo muito, talvez a gente tenha cada vez mais a inteligência artificial para, entre aspas, o mal. Mas eu tenho que trabalhar o meu lado otimista, senão não acordo de manhã.”
Instigado pela afirmação de Fornaciali sobre uma nova dinâmica de mercado estimulada pelo modelo de código aberto do DeepSeek, Nakagawa disse que é preciso esperar para ver como a tecnologia chinesa vai se desenvolver. Nos anos 1980, a característica de sistema aberto funcionou na disseminação do VHS como formato de vídeo doméstico, na disputa contra o Betamax. Mas, já neste século, várias criações de editores de texto e planilhas baseadas em código aberto não conseguiram desbancar a prevalência do Microsoft Office. “Imagino que o DeepSeek vai seguir uma lógica parecida à do Github, que tem um modelo de negócio que vai faturar mais ou menos 1 bilhão de dólares neste ano, com uma parte bastante aberta, mas vários serviços de alto valor agregado”, afirmou Nakagawa.
Os dois professores acreditam que o processo de cocriação proporcionado pelo código aberto joga a favor do desenvolvimento do DeepSeek. Foi uma estratégia que deu certo com outros dois gigantes chineses, a Alibaba e a Tencent. “O maior desafio é como aproveitar esse ecossistema para garantir a sustentabilidade do negócio no longo prazo”, disse Santana. “Nem tudo é só sobre dinheiro. Também é sobre criar autoridade dentro desse mercado. Isso é muito importante para o DeepSeek: mostrar que existe um contraponto aos grandes modelos de linguagem mais tradicionais no mercado.”
Nakagawa considera uma vantagem competitiva a quantidade de cientistas da computação especializados em IA na China — um país com 1,4 bilhão de habitantes. “Os chineses têm mandado muita gente para estudar nas melhores faculdades de computação dos Estados Unidos, e esse pessoal volta para a China. Então, a capacidade computacional da China em termos de qualidade de recursos humanos é insuperável. A China ter uma inteligência artificial nativa era uma questão de tempo. Agora, vamos observar uma enxurrada de novas lógicas e aplicações de inteligência artificial. A gente não deveria ter sido pega de surpresa pelo DeepSeek porque já era uma tendência muito forte”, afirmou Nakagawa.
Para o cenário mundial da IA, Nakagawa previu que o movimento de fechamento da economia e das fronteiras dos Estados Unidos pelo presidente Donald Trump vai render muito mais espaço para a China. “O século 21 é o século da China em tecnologia”, disse Nakagawa. “E talvez a maior maldição do Brasil seja começar a ficar cada vez mais para trás em relação ao número de pessoas capacitadas e cientistas de inteligência artificial de classe mundial. Temos desafios gigantescos de tentar lidar com coisas que, a priori, você não consegue ver porque, muitas vezes, não tem acesso a essas informações.”
Se quiser correr na mesma trilha dos chineses, o Brasil precisaria de um programa de desenvolvimento de país, com políticas industriais bem estabelecidas, e formar um capital humano com grupos de elite não só de cientistas da computação, mas de todas as formações envolvidas no desenvolvimento da IA, arrematou Nakagawa.
Santana seguiu o mesmo fio: “Para o Brasil, acho que é importante ganhar mais corpo na produção de tecnologia voltada para IA. A área de visão computacional parte da nossa capacidade de gerar alguma abstração naquilo que se observa no mundo real. Para poder representar isso através de um modelo computacional, só se a gente se aproximar de pessoas de ciência básica e montar times mais diversos. Nesse primeiro momento, há um pouco mais de dificuldade em criar tecnologia nova para competir com os grandes modelos de linguagem. Mas vejo que o Brasil tem um espaço muito genuíno para pensar em modelos mais especialistas”. De fato, os limites seguem imprevisíveis com a adesão de novos competidores, como o DeepSeek, ao universo da IA.