Na segunda-feira, 19 de agosto, em aula magna do curso de Direito do Insper, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), abordou três dos grandes temas que, segundo ele, definirão o futuro da humanidade: a inteligência artificial, a democracia e a mudança climática. Diante de uma plateia atenta, composta por estudantes, professores e convidados, Barroso destacou a importância de refletir sobre esses assuntos, que, em sua visão, representam os maiores desafios para a nova geração de líderes e pensadores.
Na abertura do evento, o presidente do Insper, Guilherme Martins, expressou sua gratidão pela presença do ministro, destacando a importância de sua participação em um diálogo com a comunidade do Insper. Ele relembrou a participação virtual do ministro no lançamento do curso de Direito em 2020, em plena a pandemia, e ressaltou o caráter inovador da graduação, que visa formar líderes para o setor público e privado. “Trata-se de um curso com uma proposta inovadora dentro da ideia de graduação do Insper, uma graduação em tempo integral, que visa formar jovens para liderar organizações tanto no setor público quanto no privado no Brasil”, disse Martins.
Ao dar as boas-vindas a Barroso, o professor Diego Werneck destacou que o ministro é um exemplo notável de juiz que já possuía uma biografia pública sólida antes de sua nomeação ao STF. Indicando ao tribunal em 2013, Barroso trouxe consigo uma carreira destaca na academia e na advocacia. “Considero importante enfatizar, especialmente para as gerações mais jovens, que esta é uma aula magna de um ministro que, muito antes de chegar ao tribunal, já era reconhecido pelo que dizia, escrevia e defendia. E esse reconhecimento não se deu pela posição institucional que ocupava ou pela autoridade formal que exercia, mas pela substância e repercussão das ideias que expressava”, disse Werneck.
Barroso iniciou sua palestra com um tema que tem estado no centro das discussões globais: a inteligência artificial. “Estamos vivendo a quarta revolução industrial, impulsionada pela inteligência artificial, e essa transformação será tão ou mais impactante que o surgimento da internet”, disse o ministro. Ele explicou que, assim como a terceira revolução industrial trouxe a transição da tecnologia analógica para a digital, a quarta revolução está sendo marcada pela combinação da inteligência artificial com biotecnologia e avanços na internet, indo além da internet das coisas e chegando à chamada “internet de dois sentidos”.
Segundo Barroso, a inteligência artificial tem o potencial de revolucionar vários aspectos da vida cotidiana, desde a comunicação até a medicina. “A IA é capaz de tomar decisões mais rápidas e com mais precisão do que um ser humano em muitas áreas”, destacou. Ele mencionou que a inteligência artificial já está presente em muitos aspectos do nosso dia a dia, como em aplicativos de navegação e plataformas de streaming. “Ferramentas como o ChatGPT, DeepL ou Google Translate estão surpreendendo com a qualidade das traduções e com a capacidade de se comunicar de maneira quase humana”, exemplificou.
Contudo, Barroso alertou para os riscos associados a essa tecnologia. Ele citou o experimento AlphaZero, da IBM, no qual um programa de inteligência artificial aprendeu sozinho a jogar xadrez, sem ser programado com jogadas específicas, e acabou derrotando todos os grandes mestres. “Isso acende um alerta sobre o futuro da IA. Precisamos de um código de ética para garantir que a tecnologia sirva à humanidade, e não o contrário”, enfatizou. Barroso também ressaltou que a IA pode perpetuar preconceitos e discriminações presentes na sociedade, se não for adequadamente monitorada.
O ministro abordou também a questão do deepfake, tecnologia que permite criar vídeos falsos, mas extremamente realistas, nos quais pessoas aparecem dizendo coisas que nunca disseram. “Isso é extremamente perigoso. Vivemos em uma era em que não podemos mais acreditar plenamente no que vemos e ouvimos. A liberdade de expressão perde todo o seu significado quando não se pode confiar na veracidade das informações”, alertou.
Mudando o foco para a democracia, Barroso fez uma análise das dificuldades que o sistema democrático enfrenta no mundo atual. Ele começou relembrando a trajetória histórica da democracia constitucional, que se consolidou como a ideologia vitoriosa do século 20, derrotando alternativas como o comunismo, o fascismo e o nazismo. “A democracia constitucional é como uma moeda com duas faces: de um lado, soberania popular e governo da maioria; do outro, poder limitado, estado de direito e respeito aos direitos fundamentais”, disse.
No entanto, Barroso destacou que, apesar de seu sucesso histórico, a democracia passa por um momento de crise em diversas partes do mundo. “Estamos vivendo o que muitos autores chamam de 'recessão democrática'. Líderes eleitos democraticamente estão desconstruindo, tijolo por tijolo, os pilares da democracia”, afirmou, citando exemplos de países como Hungria, Polônia, Rússia e Filipinas, onde o populismo autoritário tem ganhado força.
Barroso foi enfático ao criticar o uso abusivo da religião para fins políticos, algo que tem sido uma ferramenta comum no arsenal do populismo autoritário. “Quando se captura a religião para colocá-la a serviço de causas políticas, e se afirma que o adversário é a encarnação do demônio, estamos diante de uma manipulação perigosa e indesejável da fé das pessoas”, disse. Ele ressaltou que essa prática é incompatível com os valores democráticos, que exigem respeito à pluralidade de ideias e à liberdade de pensamento.
O ministro também apontou para o perigo do populismo extremista, que busca minar as instituições democráticas ao se apresentar como o único representante legítimo do povo. “Num cenário democrático, ninguém pode se proclamar o único representante do povo. A democracia é, por definição, plural, e todos devem ser ouvidos e respeitados”, afirmou. Barroso relembrou sua própria experiência durante a ditadura militar no Brasil para reforçar a importância de preservar as instituições democráticas. “A democracia é difícil, dá trabalho, mas a alternativa, que é a ditadura, é muito pior. Eu falo com a experiência de quem viveu de perto uma ditadura”, comentou.
Outro tema central de sua aula magna foi a mudança climática, que Barroso classificou como “uma das questões definidoras do nosso tempo”. Ele destacou que o aquecimento global e suas consequências não são mais problemas distantes, que afetarão apenas as futuras gerações, mas realidades que já estão impactando o mundo hoje. “Estamos enfrentando a maior seca da Amazônia, grandes queimadas no Pantanal e trágicas inundações no Rio Grande do Sul. Nada disso é uma fatalidade; tudo é consequência da ação humana”, alertou.
Barroso apontou três grandes desafios para o combate à mudança climática: o negacionismo, o efeito retardado das ações atuais e a necessidade de soluções globais. “Apesar de quase 100% dos cientistas concordarem que a ação humana e a queima de combustíveis fósseis são as principais causas do aquecimento global, ainda há muito negacionismo e ignorância”, lamentou. Ele também destacou que as ações tomadas hoje só terão pleno impacto daqui a 25 ou 50 anos, o que torna difícil mobilizar a sociedade para mudanças imediatas.
Além disso, Barroso enfatizou que a crise climática exige soluções globais, pois seus efeitos não respeitam fronteiras nacionais. “A poluição na China não afeta só a China, e o desmatamento da Amazônia não prejudica apenas o Brasil. Estamos todos interconectados, e é preciso uma ação coordenada internacionalmente para enfrentar esse desafio”, disse. Ele citou tratados internacionais como o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris, que estabelecem metas para a redução de emissões de gases de efeito estufa.
Barroso destacou que o Brasil está em uma posição privilegiada para liderar a transição energética global, graças à sua matriz energética predominantemente limpa. “O Brasil tem tudo para ser uma das grandes lideranças ambientais do mundo. Nossa energia elétrica é gerada principalmente por hidrelétricas, e temos grandes potenciais em energias renováveis, como a solar, a eólica e a biomassa”, ressaltou. Ele lembrou que o Brasil se comprometeu, no Acordo de Paris, a alcançar um desmatamento líquido zero até 2030, uma meta ambiciosa, mas fundamental.
No entanto, Barroso alertou para os desafios que o Brasil enfrenta na Amazônia, como o desmatamento, a exploração ilegal de madeira, a mineração ilegal e o tráfico de drogas. “A Amazônia está sob ameaça, não de outro país, mas do crime organizado. Precisamos agir com urgência para proteger essa região vital, não apenas para o Brasil, mas para o mundo”, enfatizou.
O ministro também destacou o papel crescente do Judiciário na proteção ambiental. “O Judiciário tem começado a atuar mais ativamente na defesa do meio ambiente, reconhecendo-o como um direito fundamental. Isso é importante porque, muitas vezes, a política se move por objetivos de curto prazo, enquanto as medidas para a transição energética e o enfrentamento da mudança climática exigem uma visão de longo prazo”, explicou.
Encerrando sua palestra, Barroso fez um apelo pela recuperação da civilidade no debate público. “O que perdemos no Brasil foi a civilidade, a capacidade de conviver com quem pensa diferente e tratá-lo com respeito e consideração”, disse. Ele argumentou que a pluralidade de opiniões é essencial para uma sociedade saudável e que ninguém tem o monopólio da verdade, da virtude ou do patriotismo. “Como disse Vinícius de Moraes, ‘bastar-se a si mesmo é a maior solidão’. O que nos enriquece é o outro, especialmente aquele que pensa diferente de nós”, ponderou.
Barroso também chamou a atenção para a necessidade de simplificação da linguagem no direito. “No passado, a complexidade da linguagem jurídica era vista como sinal de inteligência, mas hoje a clareza é fundamental. O direito já é complexo por natureza, e a comunicação clara e direta é essencial para torná-lo mais acessível e eficaz”, afirmou.
Em suas palavras finais, o ministro fez uma reflexão sobre os valores que devem guiar a humanidade. “Apesar de todas as modernidades e novidades que já chegaram, e mais as que vêm por aí, o que verdadeiramente deve mover a humanidade são os mesmos valores que vêm desde a Grécia, atravessam os Evangelhos e toda a literatura filosófica: o bem, a busca sincera pela verdade possível em uma sociedade aberta e a dignidade da pessoa humana.”