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Enchente no centro histórico de Porto AlegreEnchente no centro histórico de Porto Alegre

 

Só os negacionistas não aceitam: o planeta vem passado por uma sequência de eventos climáticos, cada vez mais frequentes, que causam destruição e mortes.  Nestes primeiros meses de 2025, as chuvas de verão inundaram diversas capitais do Sudeste e Nordeste do Brasil, ao mesmo tempo que temperaturas extremas começaram a ser registradas no Sul. Em São Paulo, dois terços da chuva prevista para todo o mês de fevereiro caíram em apenas dois dias. De 2013 a 2023, 4.300 municípios brasileiros (cerca de 78% do total) registraram algum tipo de desastre que afetou a população, de acordo com o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD).

 

Os efeitos não são sentidos só no Brasil. Em janeiro deste ano, a elevação das temperaturas médias, a redução das chuvas, a velocidade dos ventos e o prolongamento da seca criaram as condições para os incêndios florestais no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, que mataram 30 pessoas e expulsaram de casa outros 200.000 moradores. Cerca de 16.000 estruturas residenciais e comerciais foram destruídas, na contagem do Departamento Florestal e de Proteção contra Incêndios da Califórnia. Os prejuízos podem chegar a 57 bilhões de dólares (330 bilhões de reais). Ciclones e inundações mataram centenas de pessoas nos países da Europa. Em outubro de 2024, chocaram as imagens da destruição causada pelas chuvas em Valência, na Espanha — algumas regiões espanholas registraram, em poucas horas, a chuva equivalente a um ano.

 

Os impactos do aquecimento global já são reconhecidos há pelo menos uma década, culminando no Acordo de Paris. Assim, em 2015, os países signatários do acordo estabeleceram a meta de manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais. Para contribuir com o debate urgente sobre a mitigação dos efeitos e a adaptação das cidades às novas temperaturas extremas, o Centro de Estudos das Cidades | Laboratório Arq.Futuro do Insper está avançando na estruturação do programa Cidade +2°C. O programa será um dos destaques do Laboratório no ano em que o Brasil sediará a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, em Belém (PA).

 

Segundo Tomas Alvim, coordenador-geral do Centro de Estudos das Cidades | Laboratório Arq.Futuro, há dois temas centrais na discussão sobre os centros urbanos, que são a segurança e as mudanças climáticas. “Qualquer reflexão atual que se faça sobre os desafios do desenvolvimento urbano passa necessariamente por esses dois eixos”, diz Alvim. “A segurança é um assunto que temos tratado no Núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública, que já está estruturado, e para as mudanças climáticas estamos organizando o programa Cidade +2°C. Com isso, endereçamos esses dois eixos transversais a todas as abordagens sobre desafios urbanos que vamos desenvolver a partir do Laboratório.”

 

Há outra razão para se preocupar com a vida urbana, complementa o sociólogo e professor Élcio Batista, coordenador do programa Cidade +2°C. Estima-se que aproximadamente 70% da população mundial viverá em cidades até 2070. No Brasil, 85% já moram em centros urbanos. “As cidades são centros de oportunidades, serviços, conhecimento, criação de prosperidade e riqueza. Portanto, têm uma capacidade enorme de atrair as pessoas”, explica Batista. Dado o contexto das mudanças climáticas, essa concentração populacional impõe o desafio de tornar as cidades mais resilientes, adaptativas e sustentáveis, mantendo-as atrativas para o desenvolvimento dos seres humanos em sociedade.

 

Um estudo da Casa Civil do governo federal estima que 8,9 milhões de pessoas vivem em áreas de risco geohidrológico em 1.942 municípios brasileiros. Uma em cada quatro cidades está localizada em áreas suscetíveis à desertificação, conforme o Ministério do Meio Ambiente. Esses são alguns números que a arquiteta e urbanista Hannah Arcuschin Machado, coordenadora-adjunta e pesquisadora-líder do Cidade +2°C, destaca para explicar a dimensão e a interligação dos efeitos das mudanças climáticas à vida da população.

 

O foco do Cidade +2°C será nas ações de adaptação dos centros urbanos. “Entendemos que existe mais conhecimento produzido sobre a mitigação das emissões que causam o aquecimento global do que sobre a adaptação das cidades frente às mudanças climáticas, em seus diversos setores”, comenta Hannah. “Mitigar é fundamental, mas não basta. Precisamos adaptar também, porque o cenário de aquecimento global já está dado.”

 

Embora haja avanços no planejamento para a adaptação, a implementação ainda é insuficiente em relação à magnitude dos riscos climáticos, segundo o Relatório sobre o Gap de Adaptação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Hannah observa que faltam dados sobre os resultados e a eficácia da implementação das medidas de adaptação. “Essa é uma lacuna que o programa Cidade Mais +2°C visa endereçar. Portanto, vamos contribuir com a produção de conhecimento visando fortalecer a implementação de medidas de adaptação nas áreas mais estratégicas, que tenham uma relação de baixo custo e alto benefício, evitando perdas de vidas e perdas econômicas, com uma lente de justiça climática”, pontua Hannah.

 

O Cidade +2°C abre oportunidades de pesquisa em mobilidade, habitação, saneamento, áreas verdes, finanças, logística e energia, entre outros setores. “Os riscos climáticos variam de acordo com o local. Algumas cidades estão suscetíveis à desertificação, e outras, à inundação. Há ainda cidades que estão sujeitas aos dois. Na Amazônia, por exemplo, o problema histórico são as inundações dos rios, porém recentemente estamos vendo secas gravíssimas. Essa é uma camada de complexidade para a agenda de pesquisa em adaptação, porque o problema é mais específico para o local”, afirma Hannah, também doutoranda em Ciência Ambiental na Universidade de São Paulo.

 

 

 

Modelo transversal

 

Para Batista, o momento desafia o Laboratório a incrementar a sua capacidade de produzir conhecimento sobre os impactos do aquecimento global e de gerar modelos preditivos que apontem cenários nas cidades num futuro com 2°C acima da média. O Cidade +2°C objetiva precisamente promover a gestão do conhecimento, ser capaz de prototipar e testar soluções urbanas e construir coalizões intersetoriais entre as diferentes instâncias de governo, os setores público e privado e o terceiro setor. “As cidades chegaram ao que são por conta do conhecimento e da capacidade humana de explorar a natureza de uma forma que, hoje, está se vendo insustentável”, diz Batista. “Mas é justamente a nossa capacidade de conhecer, experimentar e inovar que nos fará superar esse momento de crise.”

 

O Cidade +2°C está sendo estruturado para funcionar de forma transversal, integrando os cinco núcleos (Arquitetura e Cidade; Economia Urbana, Cidades Inteligentes e Big Data; Habitação, Real Estate e Regulação; Mobilidade Urbana; e Urbanismo Social e Segurança Pública) e as duas iniciativas (Mulheres e Territórios; e Saúde Urbana) do Laboratório. A coordenação espera engajar professores e alunos do Insper nas atividades. Batista adianta que um aspecto importante do programa é o foco no “como”: como adaptar, como transformar, como financiar, como medir e como inovar.

 

A previsão é que sejam gerados relatórios técnicos, policy papers, modelos preditivos, ferramentas digitais, eventos com especialistas e programas e projetos experimentais. “Será uma grande oportunidade, principalmente pensando no Brasil e em algumas outras partes do mundo, de aproveitar o tema da adaptação climática para enfrentar a questão da desigualdade social, econômica e espacial nos territórios”, afirma Batista, que foi secretário-chefe da Casa Civil do governo do Ceará (2015-2020) e vice-prefeito de Fortaleza (2021-2024). “Embora imaginemos que eventos extremos afetam todas as pessoas da mesma forma, a realidade se mostra bem diferente. As populações mais pobres tendem a ter maiores prejuízos com a perda de bens e recursos. A infraestrutura já deficiente e os serviços de saúde, educação e proteção social nas regiões periféricas levam mais tempo para serem retomados, aumentando as desigualdades.”

 

Os desafios corporativos também são imensos. Os eventos extremos têm desmobilizado ou inviabilizado diversas operações de saneamento, do agronegócio, da indústria e dos transportes. Em Porto Alegre, o aeroporto Salgado Filho ficou cinco meses e meio parcialmente fechado por causa da enchente histórica de maio de 2024. O governo gaúcho estimou um prejuízo mensal de 400 milhões de reais à economia do estado. Em Valência, na Espanha, 4.500 empresas perderam instalações, equipamentos, máquinas e mercadorias com as inundações do ano passado. As empresas terão que repensar estrategicamente as suas perspectivas futuras diante de eventos semelhantes.

 

As cidades sempre enfrentaram adversidades climáticas. Entretanto, duas condições se agravaram nos últimos anos, sublinha Batista: “A primeira é que aqueles eventos que as cidades estavam acostumadas a vivenciar, seja de forma ordinária, seja de forma extraordinária, agora são extremos e frequentes. Inundações se tornaram grandes inundações. Em Fortaleza, por exemplo, as ondas de calor superfortes são capazes de causar não só danos à infraestrutura da cidade como também infringir danos à saúde das pessoas, devido à desidratação e ao golpe de calor, com agravamento de doenças crônicas e, inclusive, problemas de saúde mental. A segunda condição se refere a alguns eventos que são novos, completamente extraordinários nas nossas cidades: tornados no sul do Brasil, quando se estava acostumado a chuvas envolvendo ventanias. Essas duas condições estão na ordem do dia da reflexão sobre as cidades”.

 

 A COP30 será realizada em novembro. Batista vê uma excelente oportunidade para o Cidade +2°C colaborar com dados e análises sobre o rápido processo brasileiro de urbanização no século 20, que se acelerou sobretudo a partir dos anos 1950. “Alguns dos lugares ainda vão passar por esse processo de urbanização acelerada, como a África, por exemplo”, considera Batista. “Nos últimos 40 anos, foi a vez da Ásia. A Índia está passando por esse momento agora. Com a COP no Brasil, o Cidade +2°C pode dar uma grande contribuição baseada nas vivências do século passado.”

 



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