27/02/2014
Entre tantos talentos “invisíveis” na rede pública de ensino, muito potencial se perde. Seja por falta de estrutura, desvalorização do professor ou então porque o aluno carece apenas de mais incentivo.
É o que fazem projetos em Fortaleza, oriundos da iniciativa privada: dão oportunidades. Descobrem jovens potenciais, oferecem bolsas de estudo, pagam transporte e material escolar. Os recursos vêm de doação de pessoa física e organizações parceiras. Mas não envolve só dinheiro – eles também apoiam, aconselham e orientam.
Oportunize
Um dos projetos é o Oportunize, mantido por 18 amigos, a maioria servidores públicos. No primeiro ano, 2005, eles selecionaram dois alunos de escola pública para estudarem em escola particular. Tudo foi custeado, até curso de redação particular. Até o ano passado, ofertaram 29 bolsas integrais. A maioria já cursa nível superior. “Se é possível fazer a diferença? Na verdade, é fácil, pois há tanta desigualdade que, quando nos permitimos fazer um mínimo que seja, o benefício é imediatamente sentido. E quanta alegria esse mínimo tem espalhado…”, afirma o promotor de Justiça Hugo Mendonça, idealizador do Oportunize.
Primeira Chance
A Primeira Chance, fundada em 2011, é outra dessas iniciativas. Os idealizadores preferem não falar de si. Mantêm o foco no projeto. Mas explicam que a ideia surgiu de um grupo de pessoas com um sonho em comum. Incomodava saber de alunos brilhantes e dedicados, com potencial desperdiçado devido às limitações da formação básica. Eles, então, foram atrás. Selecionaram jovens de escola pública bem colocados em olimpíadas, enviaram cartas.
Insistiram para encontrar, nesses perfis, capacidade e dedicação para batalhar. Após processo seletivo – prova e entrevista -, o estudante aprovado se torna bolsista em uma escola particular. Atualmente, apoiam 12 bolsistas vindos de diversos municípios do Ceará, que estudam em Fortaleza. O custo, por bolsista, é R$ 4 mil por ano. Cada estudante é também acompanhado por um mentor, responsável por acompanhar o desempenho do bolsista e orientar suas possibilidades de carreira.
Instituto Semear
A origem do Instituto Semear é de 2010, da iniciativa do cearense Antonio Cesar, estudante do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Hoje, a semente está presente em São José dos Campos (SP) – primeira cidade, São Paulo, Rio de Janeiro e, desde o ano passado, em Fortaleza.
A inquietação veio da grande evasão nas universidades. O objetivo, explica Leonardo Martins, membro do Semear, é “dar suporte e orientar esses jovens que vêm de níveis sociais desfavorecidos financeiramente para que não desistam do ensino superior”.
Na Capital cearense, são oito membros voluntários, entre graduandos e recém-graduados, e 11 bolsistas, no caso, os jovens-semente, que são acompanhados por mentores. É oferecida bolsa de R$ 2.500 anuais.
“Todo gesto de solidariedade transforma vidas. Buscamos potencializar esses jovens para que futuramente eles possam transformar outras vidas e assim continuar o que chamamos de ciclo virtuoso”, diz Leonardo. Uma corrente do bem que, bem semeada, vai cultivando novos sonhos e renovando conquistas.
Os estudos e o sonho de morar na Alemanha
Na escola pública em que estudava em Parajuru (distrito de Beberibe), Wenderson Matos foi instigado a participar de olimpíadas escolares. A primeira medalha veio na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). “Ganhei o bronze e aquilo me deu vontade de estudar. Vi que estudando eu ia ter resultado. Passou a fazer sentido”, explica o jovem de 17 anos.
Foi ele mesmo que avaliou que, para o ensino médio, o melhor seria estudar na Capital. Foi aprovado em primeiro lugar em uma escola profissionalizante. Quando soube da associação Primeira Chance, mandou e-mail. Foi chamado para fazer prova, entrevista, até receber a ligação parabenizando que havia sido aprovado.
A partir daí, Wenderson foi matriculado nas turmas ITA/IME de um colégio particular. O objetivo, então, era tentar aprovação em Engenharia. Ele admite que sentiu a diferença. “O nível era muito alto, caiu a ficha que precisaria estudar para acompanhar”. Até que vieram as aprovações nos vestibulares. Pôde escolher entre IME (Instituto Militar de Engenharia) e Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa).
Esse, segundo o jornal britânico Financial Times, é uma das melhores escolas de negócios no mundo, com o qual a Primeira Chance firmou parceria em 2013. Foi o eleito de Wenderson, que estudará com bolsa – a mensalidade ultrapassa R$ 3 mil. Agora, ele se prepara para morar em São Paulo. “O apoio da Primeira Chance em tudo isso foi dos mais importantes, tenho muito a agradecer. Vou continuar a fazer parte do projeto. É uma rede de amigos”.
Determinado, o menino planeja, no futuro, montar a própria empresa, morar em outro país – como a Alemanha. Agora ele já descobriu que nos seus sonhos cabem um mundo. “Eu não quero estar trabalhando só pra complementar um lugar. Eu quero fazer a diferença”.
A ajuda para cursar uma faculdade
As dificuldades da educação básica oferecida em Cascavel não passam batidas ao olhar de Lívia Santos, 24. Da infraestrutura deficitária à desmotivação dos professores – “a gente via isso no rosto, no olhar” – ela, que sempre lá morou, sabe como foi difícil concluir os ensinos fundamental e médio. “Hoje eu sinto falta por ter tido um ensino fraco, deficiente, que não nos estimulava a ir atrás de um futuro digno. Tenho vários amigos que eram talentosos, mas não deram continuidade e se matam nas firmas pra ter um salário mínimo”.
Com todo o apoio dos pais, Lívia e os irmãos nunca precisaram trabalhar para ajudar em casa. O foco eram os estudos. Mas depois que concluiu o ensino médio, passou três anos sem estudar. “Fiquei muito decepcionada, com falta de perspectiva. Procurava emprego, deixando currículo de porta em porta. Nem sabia qual carreira seguir”. Em 2010, a jovem fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com objetivo de cursar Secretariado na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Não foi aprovada nesse curso, mas conseguiu uma vaga no de Gestão Desportiva e de Lazer, no Instituto Federal do Ceará (IFCE). A partir daí, por meio de um amigo, Lívia soube do Instituto Semear. Ela participa da primeira turma. “Está sendo uma das experiências mais incríveis da minha vida”.
Lívia ressalta que, mais do que a ajuda financeira, também são fundamentais o acompanhamento dos mentores, os encontros mensais, as palestras, o apoio dos outros bolsistas. Toda essa força a impulsiona a acompanhar a rotina de ir e voltar, todos os dias, de Fortaleza a Cascavel. “Quero concluir o curso no IFCE, fazer a segunda graduação em Secretariado na UFC. Também tenho muita vontade de conhecer outros países”.
Psicóloga e aprovada em concurso
Nunca faltou apoio e incentivo dos pais para Géssyka de Sousa, 24, e seus irmãos. A mãe, doméstica, nascida em Morada Nova, com ensino fundamental; o pai, de Quixadá, supervisor de estruturas metálicas, com ensino médio. Mesmo sem terem as melhores condições financeiras, o esforço para a educação dos filhos sempre sobressaiu. “Eles sempre incentivaram o estudo. Cobravam os horários de estudo, lições, iam para reunião. Minha mãe não teve tanto estudo, mas sempre ia atrás de fazer a matrícula, mesmo na escola pública, mas que fosse uma de melhor qualidade”.
Na escola em que estudava na Messejana, Géssyka participou e se destacou nas olimpíadas escolares. Até que veio o convite do Oportunize a participar da seleção em um colégio particular. A menina ganhou uma das bolsas e, durante o 3º do ensino médio, estudava de manhã na escola pública do bairro e de tarde seguia para a escola particular, onde era ouvinte.
A vontade da menina, pela realidade que vivera até então, era de cursar Pedagogia. “Era com o que eu tinha contato, nem pensava ou me questiona sobre outras profissões. Além de que, a concorrência era menor”. No novo colégio, se deparou com a Psicologia. “Fiquei curiosa e o Hugo (um dos idealizadores do Oportunize) perguntou se eu queria conhecer um profissional para tirar dúvidas. Acabei conhecendo, gostei e decidi“.
Foi a 14ª colocada entre 60 aprovados no curso da UFC. Hoje, ela já concluiu o primeiro ano da residência e foi aprovada em um concurso público. “O Oportunize foi quem possibilitou tudo isso. Não é só o estudo, mas também o aprender a estudar, a buscar o conhecimento e ampliar o leque de opções”.
Fonte: O Povo – 24/02/2014