06/04/2022
A aproximação entre a Rússia e a China pode resultar em grande cooperação no setor — tendência que exige crescente atenção do Brasil
Niels Sondergaard, Leandro Gilio e Marcos Sawaya Jank
No dia 4 de fevereiro, enquanto o mundo voltava as atenções à iminência de um conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia, o presidente russo, Vladimir Putin, assinava uma declaração conjunta com o seu par chinês, Xi Jinping, sobre o início de uma “nova era” das relações internacionais entre os dois gigantes asiáticos. Tal documento defendia um direcionamento alternativo ao modelo das democracias liberais — direcionamento defendido há muito tempo por esses países — e também estipulava a cooperação sino-russa nos campos de defesa, tecnologia e economia.
No presente contexto, com a ocorrência do ataque russo à Ucrânia, a China vem se mantendo como um dos poucos parceiros de Moscou. A boa relação entre os dois países teve início no Tratado de Nerchinsk, de 1689, pelo qual a Rússia czarista e a China imperial chegaram a um acordo sobre as suas fronteiras ao longo do Rio Argun. Apenas durante a Guerra Fria, houve um período marcado por desconfiança e animosidade, ocorrendo em 1969 uma breve guerra em volta do Rio Ussuri. Com a declaração assinada em fevereiro, houve um claro sinal no sentido da consolidação da parceria sino-russa.
No contexto da crescente bifurcação da ordem mundial ditada por Estados Unidos e China, os interesses de Moscou têm vindo ao encontro dos de Pequim com cada vez maior frequência. No campo econômico, desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, tem ocorrido um crescente isolamento comercial russo, o que não tem se refletido na relação com a China — as trocas comerciais entre os dois países aumentaram em 50% desde então.
A crescente relação de comércio entre a Rússia e a China também abrange o agronegócio. Em 2015, os países concordaram em estabelecer um fundo de desenvolvimento de projetos no agronegócio, com capital inicial de US$ 2 bilhões. Em 2019, a China retirou restrições à importação de soja russa, o que também ocorreu com a carne bovina em 2012. Mais recentemente, a China também abriu o seu mercado de trigo, antes restrito apenas a algumas áreas produtoras, para todas as regiões russas.
As exportações do agronegócio russo para a China responderam por apenas US$8,2 bilhões em 2020, com destaque para madeira (US$ 3 bilhões), peixes e frutos do mar (US$ 1,5 bilhão), papel e celulose (US$ 1 bilhão), óleo de girassol (US$ 0,56 bilhão) e soja em grão (US$ 0,26 bilhão). No entanto, esse valor total quase dobrou ao longo dos últimos 8 anos e o futuro da relação entre a Rússia e a China no agro deve ser observado com atenção pelo Brasil e por outros países exportadores de commodities agropecuárias. Os quase 100 milhões de hectares de terras agricultáveis russas não exploradas e a crescente demanda chinesa por alimentos — e parceiros comerciais regulares e confiáveis na área — criam claras complementaridades entre os dois países.
No cerne dos cálculos chineses está a questão da segurança alimentar. Com fortes subsídios, o país asiático tem conseguido cobrir quase toda a demanda interna de trigo (90,6%) e milho (94,1%) com produção doméstica. No entanto, o país segue fortemente dependente de importações de soja — até o momento, o Brasil e os Estados Unidos são os dois mais importantes fornecedores desse produto.
Apesar das exportações modestas de soja russa para a China, de 0,54 milhão de toneladas em 2021, existem planos oficiais para elevar esse volume a 3,7 milhões de toneladas até 2024. Embora tal previsão ainda esteja longe de ameaçar o mercado de exportações brasileiras, as atenções devem se voltar para a trajetória e o potencial de crescimento da produção russa de oleaginosas e cereais no longo prazo.
Lançando olhar sobre sua própria história, o Brasil compreende que componentes como terra, tecnologia e gestão podem resultar em aumentos drásticos em produtividade. Considerando a alta dependência da balança comercial brasileira pela exportação de proteínas vegetal (soja) e animal (carnes bovina, suína e de aves) para o mercado chinês, todos os desdobramentos futuros e com potencial de impacto sobre esses fluxos de comércio deverão ser observados de perto.
No seu décimo-quarto plano quinquenal, de 2021, a China apresentou a ambição de elevar o grau de autossuficiência na produção dos alimentos hoje fornecidos pelo Brasil — ou seja, reduzir a dependência do Brasil nessa área. Embora haja um efeito de curto prazo, a combinação de aumento de produção doméstica e maior concorrência da Rússia poderá impactar as exportações brasileiras no futuro.
O comércio internacional não é somente determinado por leis de oferta e demanda. Na prática, uma série de variáveis geopolíticas, institucionais, culturais e regulatórias acaba por moldar os fluxos de mercadorias. Com a China, a variável política é especialmente importante, uma vez que o país tem longa tradição em utilizar instrumentos comerciais para atingir objetivos diversos.
Ao longo dos últimos anos, partes das forças políticas que sustentam o presente governo brasileiro não entendeu tais circunstâncias, ou fez pouco caso delas. Alguns países têm tomado escolhas conscientes de absorver os potenciais danos econômicos ao criticar a China, porque julgaram necessário chamar atenção para transgressões chinesas, como as ações contra a população uighur na província de Xinjiang.
No caso brasileiro, porém, os ataques à relação com a China não parecem ter caráter diplomático estratégico, podendo ser avaliados como investidas aleatórias advindas das redes sociais que aparentemente captam a atenção do Planalto. A aprovação tácita por parte de alguns membros do executivo brasileiro eleva os potenciais custos potenciais futuros desses ataques.
Em 2022, parece se tornar cada vez mais claro que vetores centrais que balizarão o mundo neste século são a crescente rivalidade geopolítica, as mudanças climáticas e as questões de segurança alimentar, que podem se traduzir no aumento do protecionismo comercial. Os três se relacionam às agendas econômicas e políticas com as quais o agronegócio brasileiro está fortemente conectado. Torna-se então cada vez mais necessário definir estratégias — não somente de curto, mas também de médio e longo prazo — para que seja possível entender, agir e mitigar riscos.
Niels Sondergaard é pesquisador do Insper Agro Global.
Leandro Gilio é pesquisador do Insper Agro Global.
Marcos Sawaya Jank é professor de Agronegócio Global do Insper.