Os programas de transferência de renda ganharam papel central no sustento das famílias que geralmente não têm acesso ao sistema de proteção social tradicional. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) mostram que, entre as famílias com renda per capita de até um quarto de salário mínimo, a contribuição dos rendimentos de “outras fontes” – em que também estariam incluídos proventos de aplicações financeiras, aluguéis e bônus, praticamente inexistentes nesses grupos – passou de 20,3% para 37,5% entre 2004 e 2013.
A renda do trabalho perdeu participação – de 73,6% para 57% -, apesar de ter aumentado de maneira significativa no período, especialmente entre os mais pobres, ressalta Sônia Rocha, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). De acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os rendimentos do trabalho avançaram 84,8% em termos reais entre os 10% mais pobres no período, contra 42,1% da média geral da população. “Mesmo com o aumento nos ganhos, os salários ainda são muito baixos – e por isso a tendência é que o trabalho perca participação na renda familiar”, pondera.
Na base da pirâmide, o perfil do chefe de família é daquele que não teve acesso à educação de qualidade, que tem uma ligação precária com o mercado de trabalho – através de bicos e serviços temporários – e que tem chances remotas de conseguir uma vaga com carteira assinada.
“A chance de aumento da renda do trabalho nesses grupos é pequena, especialmente agora“, pondera Naércio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), referindo-se aos impactos da desaceleração da atividade na geração de vagas e nos salários neste ano. Os dados de 2013 da Pnad mostram que 4,3 milhões de famílias, 6,3% do total, têm renda domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo.
Rafael Osório, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acredita que o aumento de participação das “outras fontes” deve continuar crescendo nos próximos anos, à medida que programas como o Bolsa Família conseguirem erradicar a pobreza extrema e se restringirem apenas ao “núcleo duro da pobreza” – àqueles que têm uma ligação precária com o mercado de trabalho e com chances pequenas de aumento da renda do trabalho. “Se der certo, é isso que vai acontecer”, diz.
Os programas de transferência são apenas uma das pontas da fórmula que o Brasil tem usado para tentar acabar com a pobreza extrema, afirma Osório. O mercado de trabalho, com a política de valorização do salário mínimo, o incentivo à formalização e o estímulo ao desenvolvimento da economia de regiões mais carentes é o caminho de “emancipação” daqueles que fazem parte do grupo dos chamados “vulneráveis”.
Por isso, admite o pesquisador, a estagnação da atividade e as perspectivas ruins para o crescimento da economia dificultam a redução da desigualdade no ritmo observado até 2012.
Neste ano, pondera Sônia, do Iets, jogarão contra esse processo a inflação alta – que tem peso maior na renda das famílias mais pobres – e a perda de fôlego do processo de formalização, com aumento de geração de vagas sem carteira assinada e do emprego por conta própria verificado pelos indicadores de curto prazo, como a Pnad Contínua e a Pesquisa Mensal de Emprego.
Além da precarização recente na criação de novos postos, existem diferenças importantes entre os Estados na própria estrutura e no desenvolvimento do mercado de trabalho. Levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego mostra que a taxa de informalidade no país varia de 17,6%, registrada em Santa Catarina, a 56,8%, percentual do Maranhão.
Dadas as dificuldades de inserção dos atuais chefes dessas famílias e das contrapartidas dos programas de transferência – a permanência das crianças na escola e o acompanhamento nutricional e de vacinação até os 7 anos -, a oportunidade de ascensão social via aumento da renda do trabalho ficará para a próxima geração, afirma Menezes, do Insper.
Esse salto, entretanto, depende da qualidade da educação que essas crianças e jovens estão recebendo. Para o economista, o “gancho” que falta aos programas é uma ênfase maior na melhoria do ensino, especialmente no segundo ciclo do fundamental e no médio, e uma política de desenvolvimento infantil que responda às situações adversas que muitos alunos de baixa renda têm de enfrentar em casa – violência doméstica, estresse – e que combatam a evasão escolar.
“Ainda não sabemos se as crianças do Bolsa Família vão conseguir quebrar o chamado ciclo intergeracional da pobreza”, concorda Osório, do Ipea.
Apesar dos ganhos nos últimos anos – traduzidos na redução do índice de Gini de 0,589 para 0,527 entre 2002 e 2013 – a desigualdade segue alta no Brasil. Em 2013, a renda média mensal familiar per capita dos 20% mais ricos era de R$ 3.215, quase 16 vezes maior do que a das famílias entre as 20% mais pobres, de R$ 204. Entre 2004 e 2013, a participação da renda dos domicílios entre os 20% mais pobres no total da renda domiciliar disponível aumentou 13,9%, mas ainda é de 4,1%.
Fonte: Valor Econômico – 19/02/2015