08/07/2015
O encontro ocorreu no início de junho na sede da Anfavea, a associação que reúne as montadoras de automóveis. Luiz Moan, o presidente da casa, empunhou o microfone, pediu desculpas pela rouquidão provocada por uma gripe e começou a desfiar o seu rosário: “As vendas de carros em maio foram as menores em oito anos.
No acumulado do ano, a queda chegou a 20% [em relação a 2014] As de caminhões, no mesmo mês, caíram mais de 50% e, no acumulado, recuaram ao patamar de 1999 [19.847 unidades]. Antes que ele seguisse com a lista de más noticias do setor, um repórter interrompeu: “Moan, essa sua gripe é a mesma do Levy? “. Dias antes, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, alegara uma forte gripe para não comparecer à divulgação do ajuste fiscal, que trouxe efeitos dolorosos à economia no curto prazo. “O espirito é esse”, retrucou Moan, levando a plateia às gargalhadas. Não que houvesse motivo para risadas. A enfermidade que abateu a economia brasileira atingiu em cheio as montadoras. Falta de confiança dos consumidores. juros em alta, inflação, aumento no desemprego, restrição ao crédito, fim da isenção tributária do setor e investimentos congelados devem derrubar as vendas de carros em 20% e a produção em 18% em 2015, em relação ao ano passado.
Traduzindo em números absolutos: 2,6 milhões de carros vendidos, ante 3,3 milhões de 2014. O recuo de agora, entre tantos já vividos pelo setor, é especialmente preocupante quando se olha para a quantidade de montadoras instaladas no Brasil. São 43 (que fabricam carros de passeio), número inferior apenas ao da China. Elas foram atraídas pela promessa de um mercado de 5 milhões de unidades novas por ano, em 2020. Mas dobrar tamanho num prazo de cinco anos parece altamente improvável, na opinião de especialistas. Sobretudo quando se olha para as previsões econômicas no mesmo período. Diante do quadro, sofrem menos as montadoras que vendem para o consumidor de classe media alta – e têm novidades para apresentar ao mercado. É o caso da Honda, cujo recém-lançado utilitário HR-V tem fila de espera de até 120 dias para a compra. Quem é muito grande, como Fiat, GM, Volkswagen e Ford, tem penado para se adaptar ao novo cenário. As 28 importadoras também vêm sofrendo muito com o câmbio. Mas quem talvez simbolize melhor a gravidade do momento vivido pela indústria automobilística seja o grupo PSA. Dona das marcas Peugeot, Citroen e DS, a empresa viu suas vendas se reduzirem quase pela metade entre janeiro e maio de 2015, quando comparadas ao mesmo periodo do ano anterior. Cabe lembrar que o mercado encolheu 19,3%. Se a situação só se resumisse aos primeiros cinco meses do ano já seria preocupante. O problema é que a retração do PSA tem sido maior do que as vendas do setor há cinco anos (leia quadro à pag. 65). O PROBLEMA FRANCÊS No final de maio, a matriz anunciou uma injeção de capital de R$ 2,6 bilhões. Era preciso promover uma profunda reestruturação no grupo, mudar a forma como a PSA vinha encarando o mercado e a relação com os consumidores. Consultores e especialistas apontam alguns motivos para as derrapadas do grupo nos últimos quatro anos. A lista inclui erros estratégicos no posicionamento das marcas e no planejamento da capacidade de produção, passando até mesmo por um certo desencanto do consumidor. “Há até uma frase já clássica, mas não necessariamente verdadeira, de que quem gosta de carro francês é mecânico”, diz um dos especialistas. O português Carlos Gomes, presidente do PSA na América Latina desde 2010, reconhece apenas ter sido ruim a tentativa de popularizar a Peugeot pelo preço. “Em determinada altura, a marca foi à procura de volume, renegando um pouco suas raízes”, afirma. “Não se pode dizer que a experiência tenha sido um grande êxito e voltamos ao posicionamento original.” No mais, diz ele, a retração vivida pelo PSA faz parte de tim processo maior, ligado ao direcionamento da matriz de busca da rentabilidade. O grupo passou por uma situação difícil internacionalmente. entre 2012 e 2013. Precisava se capitalizar. No inicio do ano passado, associou-se à chinesa Dongfenge ao governo francês. A expectativa era receber até € 3 bilhões por 28% de suas ações. Num primeiro momento. o aporte foi de € 1,5 bilhão. Ao mesmo tempo, foi lançado pela cúpula o plano “Back to the race”, que traçou um piano para valorizar marcas e reduzir custos fixos e variáveis. Os primeiros efeitos já começaram a aparecer. O resultado operacional no primeiro trimestre foi de € 1,3 bilhão, com fluxo de caixa de € 2,2 bilhões e as dívidas quitadas. As ações do grupo, que estavam em €8 em janeiro do ano passado, beiravam os C 20 cm meados de junho. Além dos números positivos, a alta das ações foi baseada no fato de os mercados europeu, americano e africano terem boas perspectivas. O PSA tem, neste momento, dois problemas. Um chama-se Rússia. O outro é a América Latina e, em especial, o Brasil. “Adoraria dizer que a crise na matriz teve impacto em nosso desempenho comercial no país”, diz Gomes. “Seria uma resposta mais fácil, mas ela não é verdadeira.” Na verdade, os problemas no Brasil são genuinamente brasileiros, e eles começaram com uma certa confusão entre as marcas. Só no país a Citroën é considerada uma marca premium, graças à sua chegada pelas mãos do empresário Sergio Habib, hoje à frente da MC Motors. O consumidor também tem a imagem de que o Peugeot é um carro mais barato. Com o reposicionamento das marcas, iniciado há um ano e meio, no mesmo momento em que o mercado mergulhava na crise, a perda de participação foi inevitável. “Quem tem RS 70 mil não compra um Peugeot”, diz um especialista. “Com esse valor, ele compra um Honda, um Jeep e até um Ecosport, mas não um Peugeot.” O mesmo raciocínio ele aplica à Citroën: os modelos que substituíram os antigos não ocuparam a mesma faixa de preço, indo sempre um pouco mais para cima. Esse reposicionamento das marcas significou ao PSA sair do mercado de entrada, o dos carros mais baratos. São exatamente os que respondem por quase metade das vendas no pais e mais cresceram com a ascensão da nova classe média. “Não fazemos carros abaixo de R$ 35 mil ou R$ 40 mil”, diz Gomes. Ao mesmo tempo, começaram a ser trabalhadas as novas imagens das marcas. Apesar de estarem sob o guarda-chuva do grupo, elas não têm um diferencial de preço entre si, mas de estilo. “A Peugeot nasceu na fronteira entre a Alemanha e a França e quer ter o que de melhor cada país oferece: a robustez alemã e a emoção dos latinos, valorizando sobretudo o prazer de dirigir”, diz Gomes.
Já a Citroen quer ter uma imagem ligada à inovação. É um desafio e tanto de comunicação, ainda mais quando se considera que, para voltar ao lucro, o PSA restringiu ao máximo os custos. Ou seja, não vai anunciar de maneira estrondosa seu novo posicionamento. “Não vamos acelerar a comunicação, porque pode ser mortal”, diz Gomes. “Vai demorar mais tempo. Não é agradável ouvir gente dizendo que não compra francês porque um primo que comprou um carro no século 18 teve um problema, mas as condições de mercado nos levam a isso.” Segundo ele, o objetivo de alcançar o equilíbrio financeiro até 2017 está mantido, mesmo com a piora do mercado. “Trabalhamos no menor ponto de despesas para estar imunes às volatilidades da América Latina”. diz. Para chegar lá, o PSA anunciou investimentos de R$ 250 milhões nos próximos dois anos, na tentativa de utilizar mais peças nacionais, reduzindo, assim, sua exposição ao No. Outra iniciativa foi o encerramento da produção em dois turnos em suas fábricas, no Brasil e na Argentina. “Temos nesse momento um bom tamanho: uma organização ágil, compacta, com boas estruturas industriais e de pesquisa e desenvolvimento”, afirma Gomes. “Queremos agora aproveitar os lançamentos e fazer deles alavancas de crescimento pelos próximos cinco anos. ” Ao mesmo tempo em que trabalha na reestruturação de suas contas, a cm-presa cria alternativas para ajudar a rede de concessionárias. Uma delas foi permitir que revendas das duas marcas instaladas na mesma cidade usassem uma estrutura comum de suporte. Além disso, houve redução de 20% no número de lojas. “para dar mais volume de vendas aos concessionárias que permanecem ativos”. Luiz Carlos Bianchini, presidente da Abracit (Associação Brasileira dos Concessionários Citroën), afirma que a marca tem sofrido também por conta de aumentos feitos no inicio do ano. “As concorrentes só aumentaram em fevereiro e março”, diz ele. “Com o mercado parado, desde o fim de maio os preços voltaram ao patamar de dezembro.” No fim de junho, Francesco Abbruzzesi, principal executivo da Citroen no Brasil, deixou o cargo. Ele foi substituído por Paulo Solti, ex-presidente da Volvo no Brasil. Entre janeiro e maio, as vendas da marca somaram 13 mil unidades, com queda de 47,8% sobre o ano anterior. A força dos lançamentos O PSA não é o único a se reposicionar para enfrentar a turbulência que vem pela frente. Em junho, mais da metade das 29 fábricas de veículos do país estavam, simplesmente, paradas para adequar estoques à demanda. Em 2014, foram cortadas 14 mil vagas no setor. Até meados de junho, havia 25 mil trabalhadores em férias coletivas, licença renumerada ou com contratos suspensos, mas outros foram anunciados desde a divulgação desse número. Segundo Moan, os níveis de emprego do setor hoje equivalem aos patamares de 2010, enquanto a demanda retrocedeu aos de 2006. “O calo apera mais para quem é maior: o ajuste do volume de produção é mais complexo, os estoques e a rede são mais difíceis de regular e há muita pressão por rentabilidade”, diz Leticia Costa, diretora acadêmica do Insper e especialista no setor.
É por isso que a Fiat anunciou no fim de junho, pela terceira vez no ano, férias coletivas para 12 mil trabalhadores em Betim. Suas vendas caíram 32% em 2015, e o percentual só não foi maior porque os revendedores da marca são bastante agressivos em descontos e opcionais gratuitos nos carros. “A Fiat é líder há muitos anos. mas só Deus e ela sabem o esforço para se manter lá”, diz Amos Lee Harris, diretor da Universidade Automotiva. Além de precisar manter o volume alto, a Fiat deve sofrer ma is porque sua linha de produtos está envelhecendo, afirma Leticia. Por outro lado, o grupo ao qual a Fiat pertence, o FCA, sofreu menos exatamente por conta de um carro novo: o Jeep Renegade, da coligada Chrysler, lançado em abril. Na primeira quinzena de maio, ultrapassou o rival direto Renault Duster – e está na cola do segundo colocado do segmento. o Ford Ecosport. O sucesso do Jeep é reflexo da crescente procura pelos utilitários esportivos compactos. “É o produto que o mercado deseja, o segmento que mais floresce e isso não só no Brasil”, diz Luiz Carlos Mello, ex-presidente da Ford e diretor do centro de estudos automotivos da FEI. O líder desta categoria no Brasil éo HR-V. A fábrica da Honda vem trabalhando a plena capacidade, em três turnos, para dar conta da demanda. Além disso, pode manter o preço de seus carros sem descontos, enquanto os concorrentes são obrigados a apelar às mais variadas promoções. Entre as grandes, a que menos tem sofrido é a Ford. Anos atrás, a montadora unificou as plataformas dos carros no mundo todo, com vários lançamentos. “Foi um processo carissimo, mas que está mostrando os efeitos agora, na competitividade da marca”, diz Vítor Klizas, presidente da consultoria Jato Dynamics. A plataforma global pode se traduzir em preços mais altos num primeiro momento, mas, com o tempo, significa tecnologia mais atualizada e modelos mais modernos. Exemplo disto é o novo Ka, lançado em agosto de 2014. Reestilizado, tornou-se um dos modelos mais vendidos no pais nos primeiros cinco meses do ano. É a prova de que, em tempos bicudos, inovação e um design redondo fazem toda a diferença. Criatividade no marketing também. Recentemente, a Ford vendeu um grande lote do novo Ka para a Localiza e lançou uma promoção segundo a qual o consumidor poderia ganhar o carro alugado. “Foi uma estratégia espetacular de test drive”, diz Lee Harris. da Universidade Automotiva. O que a indústria automotiva pede agora é que o governo sinalize com regras claras e rapidez no ajuste da economia. Um terço da queda esperada de 1,5% do PIB em 2015 deverá vir das montadoras, segundo estudos da consultoria Tendências. É peso demais para ser ignorado.
Fonte: Revista Época de Negócios – 06/07/2015