14/06/2016
Por Carlos MeloCientista Político e professor do Insper
Está claro que este não é mesmo o melhor momento para se meter a valente. Enfrentar o interesse de grupos corporativos, incrustrados no Estado, pode aumentar o desastre. Eles são capazes de criar um enorme mal-estar para o governo que luta, antes de tudo, por sua própria continuidade.
De forma que trombar com políticos, juízes e com o funcionalismo seria o mesmo que pedir para aumentar as dúvidas a respeito da manutenção do governo. No quadro em que se está, abrir um período de greves, protestos, boicotes e de interrupção de atividades essenciais corresponderia a apagar o incêndio com baldes de gasolina.
Mas, a constatação do evento, em si, não explica e muito menos justifica os fatos; nem tampouco a covardia é o contraponto adequado à temeridade. Entre uma e outra, há a coragem. A situação se assemelha a um pesadelo em que precisamos reagir, pedir socorro, mas o grito está contido, amordaçado no corpo, por um sonho profundo. Em certos momentos, é imperioso soltar voz.
O contexto é o seguinte:
1) Interesses particularistas desde sempre tomam conta do Brasil e, neste momento, não há força capaz ou disposição para enfrentá-los. Em pouco menos de um mês, eventos em série têm submetido e emparedado o novo governo, mais paciente das circunstâncias do que ator da história;
2) A capacidade de enforcement do governo Temer tem se mostrado baixíssima; o presidente e sua equipe ainda não conseguiram se posicionar estrategicamente de modo a fazer valer sua vontade e conduzir o processo, como as circunstâncias exigem — de recuo em recuo, o governo parece andar de costas;
3) Os pronunciamentos do presidente interino são formais, racionais, rebuscados e solenes — em excesso. Não comunicam de modo superior e eficaz a natureza e a profundidade do problema que se vive; não estabelecem elos com o todo social; não ousam pelo menos constranger parte, que seja, dos interesses corporativos.
A literatura sobre o corporativismo é farta, o problema é complexo; disse certa vez Sérgio Buarque de Holanda que “no Brasil, a democracia sempre foi um lamentável mal-entendido”. Há tempos se sabe que, consolidando privilégios como se fossem direitos, esses grupos deturpam o sentido de igualdade; retiram renda e poder da maior parte da população.
Numa sociedade complexa e fragmentada, é natural que os diferentes interesses se manifestem; é mesmo justo que as minorias queiram assegurar direitos; defenderem-se de uma espécie de “ditadura da maioria”. Enquanto isto não perverter o processo, não há mal algum.
Mas a minoria não deveria ser, afinal, mais forte e importante que a maioria; num processo de negociação ela, a minoria – os mais diversos e fragmentados grupos — pode e deve garantir respeito e tolerância às suas particularidades, mas de modo algum isto acarretaria submissão do interesse geral ao particular; do mais ao menos.
Respeito à diversidade é fundamental, mas não deve implicar na hegemonia de grupos fragmentados sobre o todo. A exceção não deve se transformar em regra simplesmente – ou fundamentalmente – porque a minoria se mobiliza mais, é mais articulada, mais aguerrida e impositiva que a sociedade desorganizada.
Instituições servem para reconhecer direitos específicos, mas também para garantir o interesse de todos; servem para defender a liberdade dos particularismos, mas sobretudo para impedir que a democracia degenere por um regime de oligarquias e de grupos que submetem o cidadão comum; que comprometem o equilíbrio geral e atropelam o futuro de todos.
Todavia, grupos dessa natureza se incrustam no sistema político. Por seu poder de mobilização, ao mesmo tempo cooptam e são cooptados por partidos, por governos e, ao fim, pelo Estado – garantem um bom cabedal de votos, a principal moeda de troca, na compra do poder.
Ao lado do clientelismo, isto sempre houve no Brasil, não é de hoje e nem do ontem mais imediato. Mas é possível que com o PT no poder tenha-se agravado a situação, pelo forte componente corporativista da legenda. A democracia “basista” do petismo rapidamente evoluiu para defesa de interesses “setoriais”.
O Congresso Nacional é de certo modo um lócus onde esses grupos estão instalados e de lá controlam o Poder Executivo: ruralistas, industriais, evangélicos, sindicalistas, artistas, o agora novamente chamado “Centrão” — este, menos por conciliação de extremos do que por configurar um núcleo de negócios e interesses específicos.
Enfim, uma vasta gama de grupos que, antes de compreenderem e defenderem o interesse do país – de alçar o longo prazo –, se debruça em questão mais imediatas e particulares, mesquinhas; desvencilhadas da sociedade, até mesmo da realidade. No momento em que o país amarga um desemprego de quase 12 milhões de pessoas, o governo distribui recursos para os seus. Não faz muito sentido, mas, pior que isso, não pega bem.
Com efeito, se interpor a força das corporações não é tarefa simples, menos ainda agradável. Na política – sobretudo, na política pequena em que o país se enreda –, se indispor com grupos fortes e organizados é bom negócio, traz esses desgastes. Mas, daí até ceder em uma série de aspectos cruciais para o interesse geral da sociedade é outra coisa: acarreta na perda do apoio essencial, das ruas.
A menos que seja tão somente um mero representante desses grupos restritos, o governante que age deste modo tende, no longo prazo, a ser sugado por esses interesses, que ao final jogarão no lixo o bagaço de poder que ainda restar. Há, na história, pencas de presidentes que acabam, assim, abandonados pelos grupos e pelo povo.
De forma que, ainda que não deva comprar todas as brigas de uma vez – pela fragilidade intrínseca do poder e do mandato que recebeu –, Michel Temer corre riscos: livra-se da espada de Dâmocles sobre sua cabeça, no Senado; mas, sujeita-se à guilhotina da opinião pública. A Operação Lava Jato surge neste contexto como mero carrasco.
Temer parece se sentir na obrigação de saldar dívidas de jogo, que assumiu durante o processo de impeachment, e que propiciaram os votos que afastaram Dilma Rousseff. O sistema político, em virtude disto, enfia-lhe goela abaixo tudo o que deseja: cargos, verbas, aumentos salariais e até a imposição de um líder – que deveria ser do Governo e não da Câmara.
Contudo, ao ceder, o presidente confina-se ao gueto, arrisca-se perder – ou jamais conquistar – a interlocução com a sociedade mais ampla, desorganizada e vulnerável que, desde sempre, o olha com evidente desconfiança, mas que seria seu principal suporte. Isto faz esmaecer a ilusão e a rala esperança que vários outros setores cultivavam com o afastamento de Dilma.
Sim, houve para toda a gente – perdedores ou vitoriosos – um custo do impeachment, se não valer a pena por que continuar arcando com o desgaste?
A incapacidade de enforcement – o executar, o fazer valer uma determinação –, às vezes, deriva mais da prática de conceder em série do que do contrário. Alguns governos cedem porque não detém poder. Mas, em outros, é possível compreender, o que se dá é o contrário: o governo cede e são as inúmeras concessões que fragilizam o poder.
Como já disse, combater isto não é simples, sobretudo, com a tradicional força de corporações de toda natureza que há no Brasil. Por isso, pelo menos dois instrumentos são indispensáveis para romper esse ciclo: 1) projeto mais amplo que vislumbre a totalidade do país e seu futuro; 2) coragem, disposição e habilidade de vocaliza-lo, persuadindo forças mais gerais, capazes de constranger interesses menores e varrer singularidades.
Michel Temer ainda não conseguiu externar esses requisitos: não vocaliza o cidadão comum e a esperança. Mais fala aos grupos do que à nação. Vai se transformando num avanço para os particularismo, mas — aos olhos da sociedade – fica a imagem do retrocesso, que aparenta dar dois passos atrás para andar um adiante; devagar, voltará ao longe? Entende-se seus limitações, mas é para frente, com certa ousadia, que se anda.
Fonte: Jota – GO – 08/06/2016