04/08/2022
A descarbonização da economia deve atentar para a garantia de condições para uma vida digna, diz o professor VinÃcius Picanço
Leandro Steiw
A economia de net zero prega o valor lÃquido zero na emissão de gases de efeito estufa. Ou seja, deve ser nula a quantidade de carbono equivalente emitida pelo homem na atmosfera, descontada a porção removida em processos naturais e por meio de ações e tecnologias de captura e armazenagem de carbono. Ousada e necessária, a meta proposta pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), das Nações Unidas, opera com outros fatores além do balanço de dióxido de carbono.
No atual estado das coisas, a conta só fecha se as cadeias de suprimentos forem repensadas. “Se agregarmos todas as cadeias que representam os mais diferentes setores econômicos de todos os paÃses e olharmos para o global, o net zero é uma distração, porque não vamos conseguir manter as atividades emitindo zero carbono no curto prazoâ€, diz VinÃcius Picanço, professor no Insper nas áreas de Operações e Sustentabilidade em programas de graduação, pós-graduação e educação executiva. “A ideia é que se descarbonizem as cadeias de tal forma a se sustentar ao longo do tempo, oferecendo as condições mÃnimas para que as pessoas, especialmente as mais vulneráveis em paÃses pobres, vivam e se desenvolvam.â€
Segundo o professor, neste ponto, o papel das economias é muito importante. Um debate importante em sustentabilidade é a ideia de suficiência. “O que é suficiente para as pessoas? Temos que garantir o mÃnimo de condições para que elas tenham boa alimentação, saúde, moradia, ou seja, que uma série de aspectos sociais esteja coberta para que elas consigam viver uma vida dignaâ€, afirma.
O desafio do net zero é considerar também as pessoas que, atualmente, não têm nem esse básico de sobrevivência. “Perto de 1 bilhão de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza no globoâ€, lembra Picanço. “Esse número foi diminuindo ao longo do tempo, mas a pandemia da covid-19, as guerras e os desastres climáticos têm feito esse número crescer. E precisamos dar condições de vida para essas pessoas também.â€
Considerando o avanço de patamar social dessas pessoas e ainda o das pessoas que já têm acesso aos mais diversos produtos e serviços, as economias devem garantir que as emissões sejam muito baixas. Porém, enquanto houver atividade humana, haverá algum nÃvel de emissão de carbono. Para Picanço, racionalizar essa emissão significa mirar uma emissão de carbono que a Terra ou os próprios sistemas naturais consigam absorver.
Picanço explica: “O olhar sistêmico de cadeia é muito importante, porque todos os direitos sociais e o acesso material que essas populações têm são frutos de supply chain. O alimento chega à mesa de uma famÃlia por conta de uma cadeia de suprimentos, assim como o medicamento que chega à prateleira de uma farmácia para alguém comprar ou dentro de um hospital para ser servido. Enfim, podemos estender para qualquer produto ou serviço que nos rodeia. Se queremos fazer essa transição, de não deixar ninguém abaixo do nÃvel de pobreza extrema, garantir produção suficiente e ainda viver dentro dos limites planetários, principalmente dos limites de emissão de carbono, precisamos olhar para a diversidade das cadeiasâ€.
O Fórum Econômico Mundial lista oito cadeias de suprimento responsáveis por cerca de 50% das emissões globais de dióxido de carbono: alimentação, construção, moda, bens de consumo (os chamados fast moving, de venda rápida e custo relativamente baixo, como bebidas e alguns produtos de conveniência), eletrônicos, automotiva, serviços profissionais (basicamente consultorias e auditorias, que geram grande pegada de carbono por causa das constantes viagens de deslocamento) e transporte de carga.
A outra metade das emissões é gerada por múltiplas atividades econômicas. “Verificada a enorme desigualdade de impacto que causam, provavelmente, aquelas oito cadeias deveriam ser o foco de polÃticas assertivas para uma transição inicialâ€, afirma Picanço. “Mas há também a segunda metade de emissão de carbono concentrada em outras cadeias — que são menores, têm atividade menos intensa ou são mais eficientes do ponto de vista energético. Qualquer que seja o motivo, esse é o primeiro ponto. As cadeias importam e existem cadeias e cadeias: umas impactam mais do que outras pelo próprio desenho e natureza do produto ou serviço que se desloca por elas.â€
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Antes de o discurso de ESG tomar a dimensão atual, muitas empresas já tinham iniciativas de descarbonizar a cadeia por meio da compensação de carbono, comenta Picanço. Os denominados mecanismos offset consistem, basicamente, na compra de créditos para a emissão de gases que provocam o efeito estufa. Quem paga transfere a responsabilidade pela queda na emissão para terceiros, em um ponto qualquer no mundo. “É um passo à frente, mas também é uma distraçãoâ€, diz o professor. “O offset de carbono, no qual muitas empresas pautaram as suas estratégias, começa a dar um pouco mais de consciência para as pessoas, mas tem um poder limitado, porque a emissão continua existindo.â€
Segundo Picanço, a lógica que dominou as cadeias permitia à s empresas investir em projetos que capturassem carbono em outros lugares do planeta — na incapacidade de reduzir a emissão de carbono porque a sua tecnologia era poluente ou por falta de eficiência. “É um mecanismo muito tÃmido para o nÃvel de desafio que temos, pensando em Acordo de Paris, de limitar o aquecimento global em 1,5°Câ€, afirma. “Não se ataca a raiz do problema, que é a alta emissão de carbono das nossas atividades. Então, as cadeias precisam passar por um redesenho, à s vezes, bastante dramático.â€
De fato, um dos relatórios mais recentes do IPCC indica que a meta de 1,5°C de aquecimento global acima dos nÃveis pré-industriais — por volta de 1750 — está fora de alcance se a redução de gases não for imediata e profunda. “Alguns ajustes finos são possÃveis, fazendo pequenas mudanças na cadeiaâ€, diz o professor do Insper. “De repente, troca-se o transporte em aviões por ferrovias, e já se obtém uma emissão muito menor; ou se contrata energia renovável, o que derruba muito a emissão de carbono.†São as chamadas low-hanging fruits, pequenas ações de fácil alcance, simples execução e resultado considerável.
O redesenho citado por Picanço também envolve o produto, pois as cadeias se definem pelo tipo de mercadoria — funcionam distintamente para perecÃveis, empacotadas ou frágeis, por exemplo. É intuitivo, portanto, que o design do produto e seus componentes afetam a complexidade da cadeia: quem são os fornecedores, onde estão localizados, quanto geram de poluentes, quais as alternativas de parceiros, como medir o resultado das polÃticas de redução de carbono. “Esta é a fronteira do desafioâ€, afirma. “A raiz é o redesenho das cadeias e dos produtos e a adoção de tecnologias que sejam mais verdes e sustentáveis.â€
Não se trata de um embate entre cadeias que produzem mais ou menos gases do efeito estufa, pondera Picanço. Estudos mostram que em torno de um terço da emissão das oito cadeias mais poluentes pode ser reduzido com a utilização de tecnologias ou práticas já existentes, tais como processos mais eficientes, mecanismos da economia circular e substituição de combustÃveis fósseis por fontes renováveis. “As demais são tecnologias que ainda vamos desenvolver e práticas que vamos implementarâ€, diz o professor. A inércia da implantação implica mudança na gestão de supply chain.
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A invasão da Ucrânia pela Rússia mexeu com a cadeia da indústria porque os dois paÃses são fornecedores importantes de metais usados como matérias-primas. As restrições sanitárias contra a covid-19 fecharam os portos da China, que controla 60% da demanda mundial de terras-raras, elementos quÃmicos fundamentais em lâmpadas de LED, lasers, componentes de computadores e motores de carros elétricos, entre outros. O isolamento social e o trabalho hÃbrido estimularam a compra de computadores, tablets, monitores, webcams e celulares.
Estratégias de economia circular são uma das respostas para a falta de matéria-prima. Materiais recicláveis encontrados no lixo eletrônico, um volume gigantesco de produtos que passaram pelas mãos dos consumidores e tem pequeno ou nenhum valor de mercado, podem voltar para a cadeia. Não é pouca coisa. Segundo dados das Nações Unidas, foram quase 54 milhões de toneladas em 2019, antes da pandemia. Desconhece-se o destino de 83% do lixo eletrônico mundial — que é incinerado, depositado em aterros sanitários, fica armazenado em residências ou é reciclado em operações informais.
A recuperação de equipamentos inoperantes foi apelidada de mineração urbana. “Recolhem-se nos centros urbanos produtos que estão hibernando, descartados, porque os componentes são os mesmosâ€, afirma Picanço. “Esses insumos darão vida a novos produtos. É uma estratégia que fecha o ciclo da cadeia circular, não só pensando na sustentabilidade, mas também na própria sobrevivência da indústria de eletroeletrônicos em momentos de risco de desabastecimento e uma série de questões.â€
O professor cita também a indústria de alimentos. “É uma estatÃstica tenebrosa, mas já se provou que 30% do que se produz de alimento no planeta é desperdiçado ou perdidoâ€, diz. Desperdiçado significa que ele está pronto para ser consumido, mas é descartado na ponta de consumo. E a perda ocorre ao longo do processo — por exemplo, acidente no transporte e acondicionamento na temperatura inadequada.
Com 25% das emissões globais, a indústria de alimentos é a campeã entre as oito cadeias crÃticas. “A própria decomposição desses produtos gera uma enorme emissão de carbono. Se atacarmos a questão de perda e desperdÃcio, essa cadeia terá um perfil de impacto muito menorâ€, afirma. “Estou dizendo que é fácil atacar? Não. Se fosse fácil, já estaria resolvido. É um desafio que inclui a questão de emissão de carbono, da fome, da ineficiência. Temos tecnologia e práticas para enfrentá-lo e avançarÃamos nessa caminhada para o net zero.â€
Para Picanço, um legado positivo dos dois últimos anos foi o debate sobre a retomada verde na construção da economia pós-pandemia. “A urgência de algumas transformações ficou mais evidente, mas a velocidade da implementação do net zero decepcionouâ€, diz. “Há um fenômeno do qual não vamos conseguir nos livrar se não fizermos nada, que é fenômeno de mudanças climáticas. Esse vai perdurar, como se fosse uma pandemia ou uma guerra persistente, porque vai gerar efeitos negativos muito parecidos com o que estamos vendo hoje.â€
Professor VinÃcius Picanço
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