01/04/2020
Maria Aparecida Rhein Schirato, professora do Insper, aborda questões relevantes para entendermos melhor como a nossa saúde mental é afetada por esta crise e como superar esse desafio
ENTREVISTA| CONTEÚDO SOBRE A PANDEMIA DE COVID-19 |ACESSE A PÁGINA ESPECIAL
Seguindo os esforços conjuntos de toda a Comunidade Insper para mitigar o impacto do vírus Covid-19, estamos publicando uma série de entrevistas com professores, gestores e diretores para abordar ações realizadas pela nossa escola, além de dicas e orientações nas mais diversas áreas para colaborar com a superação dos desafios deste período.
Na entrevista a seguir, Maria Aparecida Rhein Schirato, professora do Insper, aborda questões relevantes sobre os cuidados com nossa saúde mental durante a crise causada pelo novo coronavírus:
1) Por que uma crise como a gerada pelo novo coronavírus é tão estressante para todos?
Primeiro, existem motivos externos aos indivíduos e que os assustam. Estamos acompanhando os noticiários, o que está acontecendo nos países desenvolvidos, com menos desigualdade social. E apesar de haver um grupo de risco, o vírus parece ser muito democrático, qualquer um está sujeito a ele. A gente pode classificar como um momento de guerra mesmo e que gera muita ansiedade.
Uma outra situação é a interna, sobretudo pensando nas pessoas do mundo de hoje, em que se tem muito controle de tudo. Temos nossa agenda programada, controle sobre nossa longevidade, a sensação de que temos tratamento para tudo. Tudo isso gerou no homem contemporâneo, sobretudo nas classes mais altas, uma sensação de onipotência. De repente, vem um vírus e nos deixa absolutamente impotentes.
Classificamos isso fundamentalmente como a dor da ferida narcísica. A frustração é enorme: estou vivendo um momento em que não sou mais dono de mim, estou obrigado a ficar confinado por determinações alheias à minha vontade, já não posso realizar o que quero e me sinto dependente de pessoas que nunca imaginei que seriam meus fornecedores em algum favor, alguma delicadeza.
É uma dor narcísica muito grande. Tanto que existe uma tendência a subestimar o perigo, até negá-lo, pois ele é muito assustador. E temos um pouco, também, a tendência de achar que nunca vamos passar por isso.
É uma confluência de sentimentos. Um mundo externo assustador, um mundo interno rasgado por uma ferida narcísica, uma ansiedade absurda, pois a qualquer momento você se sente à frente da ameaça, uma certa carência afetiva também, pois estamos longe das pessoas que amamos e não podemos estabelecer grandes contatos. Além disso, percebemos que estamos muito desprovidos de recursos. Quando escutamos um médico, por exemplo, falar que a vacina, no momento, é o isolamento em casa, se percebe que os recursos são escassos, e tudo isso gera medo.
E essa confluência é estressante. O estresse se caracteriza pela situação em que tenho que suportar estímulos e provocações que estão além do meu limite. Então, não é que estamos superando limites, estamos esticando nossa capacidade de suportar.
2) O que podemos fazer para amenizar esse estresse?
A primeira coisa é pensarmos que isso vai passar. Como tudo passa. Isso também desconfigura mais uma perda: a sensação que nós podemos congelar os momentos bons, de glória, de dinheiro, de destaque. Quando publicamos tantas mensagens nas redes sociais, é quase uma forma de nos mantermos perpetuamente em evidência. Então, de certa forma, perdemos a noção de que esse período vai passar. Até porque temos recursos da moda, da dermatologia, da ciência, para a eterna juventude, para congelar o tempo.
Então, essa noção, de que o tempo passa, não é uma noção muito próxima do homem contemporâneo. E o tempo passa, sim. E está passando de uma forma muito irônica. A pessoa entre 30 e 50 anos de idade, por exemplo, tem que afastar seus filhos para preservar seus pais. É necessário, de certa forma, distanciar o seu futuro de sua história. Estamos tendo contato com o tempo em um momento em que percebemos que, na verdade, não somos todos tão contemporâneos. Temos gerações. E essas gerações significam o passar do tempo.
Então, por exemplo, os meus filhos, aqueles que eu coloquei no mundo para dar continuidade ao meu poder, à minha sabedoria, a todas as conquistas, são ameaças para minha história, que são meus pais. Essa divisão interna, de ter que separar filhos dos pais, faz com que tenhamos um contato com o tempo muito doloroso. É necessário recuperar essa noção, de que o tempo passa. E isso vai passar.
Também devemos pensar que não podemos tudo. E por mais que tentemos blefar, impressionar, faltam-nos muito recursos para ter o controle de tudo. É necessário também nos apropriamos de nossa finitude, de nossa impotência e fragilidade.
E vamos fazer um exercício que é doloroso demais: o da humildade. É hora de ser humilde e falar: estou aqui e vou fazer tudo o que posso para poupar a mim e àqueles que amo. Mas o desfecho não depende de mim. É uma grande oportunidade de crescimento. Com toda a dor que esse momento traz, se apoderar da própria fragilidade, da noção de que o tempo passa, da limitação dos recursos, é um exercício de humildade fantástico.
3) Você acha que esse momento vai trazer a percepção de que é necessário cuidar tanto da saúde mental como da física?
Sim. Sobretudo porque temos também a tendência, por sermos muito pragmáticos, de termos a sensação de que nossa saúde está na farmácia. Se não durmo, tomo remédio para dormir. Se estou ansioso, tomo remédio para me acalmar. E assim em diante. Então, jogamos muito com nossa saúde mental por conta de todos os recursos externos que estão aí. Então, fazemos uma dicotomia entre a saúde física – a estética, a medicina plástica, a academia, e a saúde mental – a farmácia. Terceirizamos nossa responsabilidade de assumir o controle de nossa vida.
Na medida em que a nossa saúde mental se sente provocada por tudo isso, devemos tomar cuidado, porque isso se reflete em nosso corpo. Podemos passar por processos psicossomáticos que geram sintomas que, de fato, podem gerar um quadro patológico.
Então, é um momento no qual devemos pensar: tudo que tenho em minhas mãos, é minha vida. E ela está frágil, ameaçada, e preciso cuidar bem dela. Não adianta terceirizar com remédios, com cirurgias plásticas. Agora sou eu, e eu. E tenho que cuidar da minha saúde. Tentar ter um gesto reflexivo de nutrição. Não dá pra ficar esperando que suportes externos me nutram. Eu tenho que cuidar do meu tempo, aceitar minha limitação, que a morte realmente está nos rodeando, e cuidar para que esse exercício de posse da própria existência seja o nosso empoderamento.
O nosso único poder hoje é assumir a própria vida com a fragilidade que ela tem. Acho que isso diminui bastante a tensão psíquica, e, por consequência, a dor. E faz com que fiquemos, apesar de tudo, em paz.
4) É importante compartilharmos experiências positivas nesse período, como histórias de pessoas que se recuperaram?
Essa divulgação é fundamental. Isso vai nos trazer um elemento fundamental para essa nutrição afetiva que precisamos, que é o compartilhamento. É importante compartilhar essas experiências exitosas e positivas, porque isso nos alimenta afetivamente, nos nutre e nutre o outro. No momento em que divulgo que alguém superou a doença, está bem, estou dizendo que isso passa.
Em uma época em que as redes sociais são tão ativas, temos pouco compartilhamento, o partilhar comumente. Na verdade, compartilhar, para nós, acabou se tornando simplesmente repassar fotos e mensagens. Agora, vamos repassar experiências, dolorosas e exitosas, de quem superou a dor.
Então, esse compartilhamento nos nutre. Faz com que nós vejamos aquele nosso amigo, para quem enviamos a mensagem, como alguém igual, que também está sofrendo, e estamos oferecendo um pouco de luz, de calor.
Além disso, é preciso evitar o compartilhamento de mensagens catastróficas. Já temos bastante choque de realidade nesse momento.
5) Como podemos ajudar nossos amigos e familiares a superar este período?
A primeira atitude é ouvir. Quando a pessoa estiver brava, depressiva, irritada, o melhor é ouvir. Esse movimento catártico de falar, de alguma forma alivia a tensão. Se você ouvir a mensagem, o desabafo, já está ajudando bastante. A pessoa não se sente tão só. Estamos isolados, mas podemos diminuir a solidão.
E, depois de ouvir, tentar falar: isso vai passar. A China já está voltando à normalidade, estão sendo realizados esforços para termos uma vacina. E, também, que tal começarmos a pensar em uma grande celebração da vida no final do ano? Com uma festa menos materialista, e mais humana.
E não importa qual a crença, estamos próximos da Páscoa, que significa passagem. Vamos entender essa passagem como uma passagem para um estágio muito melhor. Onde vamos nos descobrir como pessoas, organizar melhor nossas casas, descobrir riquezas que estão perdidas. Vamos descobrir que existem pessoas que têm paciência para nos ouvir, nos passar uma boa mensagem. E que precisamos desenvolver a paciência com nossa intolerância, nossa irritação e exercitarmos nossa humildade.
Maria Aparecida Rhein Schirato é Doutora e Mestra pela Universidade de São Paulo, docente do Insper desde 2008, com experiência em Consultoria e Gestão de Conflitos, Modelos de Gestão, Desenvolvimento de Liderança e Treinamentos Comportamentais. É diretora da Rhein-Schirato Consultores Associados há 30 anos. Possui formação em Filosofia, Psicologia e Psicanálise e é autora de livros e artigos ligados à sua área de especialização.