Por Celso Lafer
Dª. Ruth combinava de maneira singular, no seu modo de ser, a qualidade acadêmica da sua formação e vida universitária às virtudes pessoais e republicanas, configuradoras de uma exemplar inteireza de caráter. Era uma personalidade firme, caracterizada por sábia temperança, educada e discreta. É o que transparecia na maneira com a qual se relacionava com as pessoas que com ela tiveram o privilégio de conviver, tanto os mais próximos quanto os mais distantes. Teve uma preocupação concreta com os desafios da inclusão em nosso país, que a norteou nos seus trabalhos e nas tarefas de alcance público que empreendeu. Soube lidar com as transformações da condição feminina no século XX e encontrou em sua vida um equilíbrio próprio entre os seus projetos intelectuais e sua carreira de professora, com identidade e espaço próprio de atuação e os cuidados mais tradicionais da lida com o cotidiano, com a casa, a educação e atenção com os filhos e depois os netos e um convívio com um marido da projeção intelectual e política de Fernando Henrique Cardoso.

Dª. Ruth como intelectual trouxe para a Ciência Política o olhar de uma formação antropológica. Daí a percepção que teve para a relevância da pesquisa do que se passava no âmbito da sociedade civil e o foco que deu aos movimentos sociais, às reivindicações de gênero e ao papel das organizações não governamentais para o entendimento das transformações do mundo contemporâneo. É o que explicita, com clareza e discernimento na reflexão que embasa seu prefácio ao segundo volume da edição brasileira de 1999 de Manuel Castells, O Poder da Identidade. Destaca que a formação de novos atores sociais cuja atuação é fragmentada, ocorre em interação com os aparatos do Estado, redes globais e personalidades públicas centradas em sua lógica própria. Registra as dificuldades da articulação de lógicas diferentes, pontuando que sua coexistência não seria pacífica, mas sim “produtiva” para as transformações da sociedade. Explica que a globalização, que internaliza o mundo na vida das sociedades nacionais, não apaga a presença dos atores políticos, mas cria novos espaços para um processo in fieri. Indica que a criatividade, a negociação e a capacidade de mobilização adquirem grande relevo para operar em sociedades em rede que vivem a diluição da tradicional e hierárquica pirâmide do poder.
Dª. Ruth e FHC sempre tiveram um transitivo e substantivo diálogo no correr da vida, aí incluídos os temas da mudança social. Um diálogo permeado pelo respeito e pelo humor (que é uma qualidade democrática), como posso testemunhar, e que contribuiu positivamente para a atmosfera política de inovação do período presidencial de FHC. Foi neste contexto que Dª. Ruth redefiniu com autonomia, discernimento e criatividade o papel da mulher do Presidente, concebendo a implantação de novas modalidades de políticas sociais, distintas do assistencialismo tradicional vinculado ao Estado.

A Comunidade Solidária e a Bolsa-Escola foram a expressão, em termos de ação, de sua visão de pesquisadora e estudiosa do Brasil, apta na mobilização do setor privado e da sociedade civil. Guiou-se pela ideia-força do “empowerment” como meio de enraizar econômica e politicamente a extensão da cidadania. Trabalhou assim a autonomia das pessoas, afastando as tradicionais práticas da política de clientela. O seu “feminismo prático” no trato da emancipação das mulheres, levou em conta o responsável papel das mulheres na família brasileira. Por isso a elas atribuiu um papel decisivo na implantação da Bolsa-Escola.
O Centro Ruth Cardoso vem dando nas condições atuais do Brasil seguimento à sua visão e às suas propostas transformadoras.
Possui alcance geral e virtualidades inspiradoras a exemplaridade de uma paidéia como foi a de Dª. Ruth. A criação em 2009 do Programa Cátedra Dra. Ruth Cardoso na Universidade de Columbia, fruto de uma parceria Fundação Fullbright, CAPES, a Universidade de Columbia e a FAPESP, na época da minha presidência, é neste sentido um antecedente da criação, no Insper, da Cátedra Ruth Cardoso. Esta, no entanto, passa a ter uma irradiação e uma abrangência própria, posto que inseridas no fértil âmbito das inovadoras propostas de formação e de “empowerment” que caracterizam uma modelar instituição brasileira de ensino e pesquisa como o Insper. É uma iniciativa que cabe celebrar. É uma compatível homenagem com o legado de Dª. Ruth que alegra os seus familiares, antigos alunos, amigos e admiradores, entre os quais me incluo. Evoco, ao concluir, a lembrança sempre presente do privilégio que foi o convívio amigo de muitos anos com Dª. Ruth, cujo conselho, com proveito, busquei na minha vida acadêmica e pública, animado por uma sincera admiração, pela excelência do conjunto de suas virtudes.
Celso Lafer é advogado, jurista, professor, membro da Academia Brasileira de Letras e ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro.
Fotos: Site Fundação FHC