08/04/2016
Como converter milhares de militantes de um partido em cidadãos capazes de pensar por conta própria?Corriam dias quentes de março e eu tentava ler o livro de Tony Judt, Quando os fatos mudam, recém-lançado no Brasil. É o derradeiro livro de Judt, morto em 2010. O livro é, de certo modo, seu testamento intelectual. No texto de abertura, escrito pela esposa e também historiadora Jeniffer Hogan, há um retrato intimista do autor. A tônica é dada pela frase título do livro, que funcionava como uma espécie de: “Quando os fatos mudam, eu mudo a minha cabeça. E quanto a você?”.
A ideia é simples: não adianta brigar com os fatos. Judt foi um socialista, na juventude, mas – como boa parte de sua geração, nascida no imediato do pós-guerra – viu o universo soviético naufragar, saboreou passo a passo a “revolução de veludo”, em Praga, a queda do muro de Berlim e a formação da União Europeia, da qual sempre foi um entusiasta.
À época em que assistia à grande transformação do final dos anos 1980, Judt mudava-se para Nova York e lançava seu grande estudo Passado imperfeito: intelectuais franceses 1944-1956. Nele, fazia seu acerto de contas com a intelectualidade francesa – ou parte dela, bem representada por Sartre – que havia se dobrado ao pensamento esquemático da Guerra Fria. Que havia negado o horror soviético.
É possível dizer que mesmo Judt, com sua crítica feroz ao liberalismo “contestador” dos anos 1990, sua defesa por vezes intransigente da social-democracia europeia, tenha se recusado a enxergar alguns elementos – ou fatos – evidentes sobre a crise do Estado contemporâneo. Talvez tenha lhe escapado algo sobre a profundidade revolucionária da globalização econômica, as possibilidades da revolução tecnológica em curso, o rápido processo de redução da pobreza, no plano global, e a emergência da ideia de abundância. Haveria muito a discutir, sobre as posições que Judt defende nos artigos que compõem o livro.
Diálogos
À medida que minha leitura avançava, minha atenção se voltava para a revelação dos diálogos de Lula, no âmbito da Operação Lava-Jato. Da prosa sedutora de Judt eu escorregava para as vulgaridades de Lula. De certo modo, eu observava aquele espetáculo triste à luz do mantra de Judt: “quando os fatos mudam, mudo minha cabeça.”
Não me impressionavam, confesso, os palavrões e as piadas vulgares de Lula. Me lembrei, por um momento, da Clara Ant, que havia visto durante uma hora, em um programa na Globo News, no domingo, defendendo o chefe. Lula dizia que ela havia achado um “presente de deus” encontrar cinco homens em sua casa, numa madrugada dessas. Pena que eram homens da “federal”. Aquilo parecia grotesco, mas seguramente seria perdoado.
Não haveria textos horrorizados do blogueiro Sakamoto, nem da jornalista Eliane Brum, contra o “machismo” e o “velho ranço patriarcal de nossa elite política”. Por óbvio, nada seria perdoado se um tipo retrógrado como o Serra (me lembrei do horror das deputadas petistas quando Serra brincou que Katia Abreu era “namoradeira”) dissesse uma coisa daquelas. Mas o Lula, afinal, era o Lula, e tudo ficaria bem.
As questões que me chamaram atenção diziam respeito à tentativa de obstruir o trabalho da Justiça. Uma ligação ao ministro da Fazenda, pedindo para a Receita Federal pegar mais leve com o seu Instituto; outra ao ex-deputado Sigmaringa Seixas, para cobrar alguma “reciprocidade” do procurador-geral Rodrigo Janot, nomeado “pela gente”; outra ainda para que a presidente intercedesse por um processo seu no Supremo, junto à ministra Rosa Weber.
Não era preciso ir muito mais longe escutando aquilo tudo. Minha questão era: como seria possível fazer uma interpretação “em boa-fé” daqueles diálogos? Eu andava, por aqueles dias, conversando com um bom amigo e filósofo, simpático ao governo, e nosso ponto era exatamente como fazer uma avaliação “equilibrada” dos acontecimentos políticos. Exatamente o desafio que Judt se propunha.
Sob qualquer ângulo, não havia dúvidas: Lula usava de sua influência para interferir no trabalho da Justiça. Para quem está no poder, imagino, é tentador fazer isso. É só pegar o telefone e ligar para algum conhecido. Se você tiver algum conhecido importante, e menos zeloso em relação a certos valores, pode surtir algum resultado.
O problema é que aquilo tudo era inaceitável. Era o mesmo que o sujeito ser pego na Lei Seca, numa noite qualquer, e ligar para o secretário da Segurança do Estado para escapar da multa ou do recolhimento do veículo. Com um detalhe: em uma escala muito, mas muito pior.
O interessante foi dar uma olhada, nos dias que se seguiram, nos blogs e artigos escritos por muitos intelectuais ligados ao governo. Gente que passou os últimos dez ou vinte anos defendendo “valores republicanos” e criticando os “velhos hábitos da política brasileira”. No episódio de Lula, todos, sem exceção, optaram por se calar. Boa parte fez mais: decidiu atacar a Justiça. O problema não era o conteúdo escandaloso dos grampos, mas a sua “divulgação”.
Tudo aquilo me fez pensar que aprender com os fatos, afinal de contas, é muito difícil. Por muitas razões, a política incentiva um tipo de adesão passional que obstrui o pensamento crítico. Talvez seja este o maior desafio que a crise brasileira nos coloca: como converter milhares de militantes de um partido em cidadãos capazes de pensar por conta própria? Confesso que não tenho uma resposta para esta pergunta.
Fonte: Revista Voto Online – 05/04/2016