06/04/2022
Uma das maiores especialistas nas relações entre o Brasil e a China, Larissa Wachholz fala sobre como o agronegócio pode tirar proveito da parceria entre os dois países
Tiago Cordeiro
Quando o assunto é China, Larissa Wachholz é uma autoridade. Ela tem mais de dez anos de experiência no mercado asiático. Entre 2008 e 2013, morou em Pequim, onde trabalhou com o desenvolvimento de negócios e relações institucionais. Foi diretora da assessoria financeira Vallya entre 2013 e 2019, período em que foi responsável pela assessoria estratégica de operações com empresas chinesas em diferentes setores, como energia, infraestrutura e máquinas e equipamentos.
Larissa foi assessora da ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para assuntos de China. É mestre em Estudos Contemporâneos da China pela Renmin University of China e tem especialização em Relações Internacionais e em Finanças Corporativas pela London School of Economics e pela Peking University. É também senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Atualmente, além do contínuo foco nos temas chinesas, Larissa é sócia da Vallya Agro, uma assessoria de estruturação financeira de projetos para o agronegócio.
Na entrevista a seguir, Larissa compartilha sua visão sobre o futuro das relações entre o Brasil e a China, especificamente no agronegócio. E avalia os impactos do conflito na Ucrânia para os planos de Pequim.
A China, de alguma forma, se beneficia do conflito entre a Rússia e a Ucrânia?
Qualquer ganho que a China possa ter seria marginal e nem de longe compensaria os riscos de um envolvimento direto no conflito. A economia chinesa é das mais globalizadas no mundo. Cerca de 130 países têm a China como seu maior parceiro comercial. Sua liderança entende que o país precisa de estabilidade e não de caos para continuar o seu projeto de desenvolvimento econômico. Não é, portanto, do interesse chinês qualquer envolvimento direto que possa levar a sanções econômicas contra o país. Um possível ganho, como apontam alguns analistas, poderia vir do uso mais ostensivo do yuan em transações comerciais. Talvez fosse uma oportunidade para encorajar transações sino-brasileiras em moeda local.
De que maneira o conflito na Ucrânia pode afetar as exportações brasileiras do agronegócio para a China?
No curto prazo, não vejo grande impacto. No médio prazo, tenho algumas hipóteses. A primeira é que a capacidade brasileira de produzir e exportar em larga escala, mesmo em um cenário internacional turbulento, será valorizada pela China. A segunda é que, a depender do tempo que durem a guerra e as sanções, e dos estragos que causem à economia russa, há chances de a Rússia buscar aproveitar melhor seu potencial agrícola como estratégia de desenvolvimento econômico. Caso isso venha a acontecer, especialmente em um cenário de restrições às exportações russas para o Ocidente, a China e a Índia seriam destinos esperados para a produção agrícola russa. E isso a um preço reduzido, pela ausência de opções de outros mercados. Em um cenário como esse, teríamos mais um concorrente com bom potencial no mercado internacional. Dito isso, a China tem uma preocupação de diversificar ao máximo suas parcerias internacionais nos temas que considera estratégicos: segurança e energia. Penso que os chineses buscariam manter, portanto, relações comerciais abrangentes com vários países.
A China tem planos de se tornar autossuficiente na produção de alimentos. Isso seria possível?
A posição chinesa de autossuficiência na produção de alimentos não é nova, pelo contrário. Tradicionalmente, a China busca produzir internamente 95% de sua necessidade de grãos considerados estratégicos, como arroz, trigo e milho. A China é, portanto, uma grande potência na agricultura, o maior produtor agrícola no mundo. E isso apesar de apenas 10% do território chinês, aproximadamente, ser formado por terras agricultáveis. Ocorre que a China é, também, o maior consumidor mundial de produtos agrícolas e o maior importador individual. O motivo é o tamanho da demanda, que cresce conforme avançam o desenvolvimento econômico, a urbanização e o desejo de uma dieta mais diversificada por parte da nova classe média. A demanda do mercado chinês é tão grande que, mesmo com números de produção interna que beiram a autossuficiência, a China continua importando para complementar ou diversificar a disponibilidade de alimentos dentro do país.
O que limita os planos do país de aumentar sua produção agrícola?
O governo chinês estabeleceu a segurança alimentar como prioridade absoluta para 2022, uma preocupação que tem sido apresentada de forma reiterada nos últimos anos. O grande desafio é garantir o acesso a grãos para a alimentação animal e a produção de carne e lácteos. Para alcançar esse objetivo, a aposta tem sido em tecnologia e diversificação de produtos, como grãos para alimentação animal, e de fornecedores internacionais. Aumentar a produção chinesa, entretanto, é muito desafiador. Além de terras agricultáveis, os recursos hídricos também são limitados. Acadêmicos e especialistas chineses estão entre os que demonstram certo ceticismo com a possibilidade de as metas de autossuficiência serem, de fato, alcançadas. Por outro lado, qualquer mudança percentual na produção chinesa, por ser a maior do mundo, causa grande impacto nos mercados internacionais e na cadeia global de alimentos. A mensagem que fica para o Brasil é que a oportunidade de permanecer como um fornecedor de alimentos de confiança da China está dada, mas devemos ser mais ativos no diálogo sobre abertura de setores ainda restritos e diversificação de produtos, o que pode ser feito de forma coordenada com os chineses. A China já deixou claro que depender de poucos fornecedores é motivo de preocupação para ela. Então, precisamos estar atentos ao risco de perder mercado para outros países que decidam explorar melhor esse potencial.
Qual a importância da China para o agronegócio brasileiro? E qual a importância do agronegócio brasileiro para a China?
A China é o maior cliente internacional do agronegócio brasileiro. Em 2021, exportamos ao país asiático 41 bilhões de dólares, ou 34% em nossas vendas externas no agro. O Brasil é o maior fornecedor de produtos do agronegócio para a China, responsável por aproximadamente 20% de tudo o que o país asiático importa. Pela soja em grãos ou pela proteína animal diretamente, a nossa pauta exportadora no agronegócio reflete uma grande transformação que está ocorrendo na dieta da emergente classe média chinesa: o incremento do consumo de proteína animal. O desenvolvimento econômico chinês e o consequente aumento da renda levaram a um salto no consumo per capita de carnes do país, entre bovinos, suínos e aves: de 5 quilos por ano em 1960 para 63 quilos por ano atualmente. A segurança alimentar, um tema estratégico para os chineses, atualmente reflete não apenas uma preocupação com calorias consumidas, mas também com qualidade nutricional e diversidade. A população mais jovem na China entende que um prato variado e nutritivo inclui proteína animal, o que torna esse assunto estratégico para a sociedade e a liderança do país.
Existe espaço para o agro brasileiro fortalecer ainda mais a relação comercial com os consumidores chineses?
Existe, com certeza. A inserção das carnes na pauta exportadora já foi um grande avanço em termos de diversificação e valor adicionado. O potencial da carne bovina, por exemplo, é imenso. Devemos continuar mirando novas aberturas de mercado para frutas, castanhas e outros produtos que atendam ao anseio da população chinesa por uma dieta diversificada. Os chineses valorizam alimentos importados, são consumidores curiosos e abertos a novidades. Vejo grande potencial para frutas e legumes processados, além dos produtos frescos. Novos meios de compras também precisam estar no radar. O comércio eletrônico pode ser uma plataforma valiosa para a promoção da imagem do Brasil como fornecedor de alimentos e bebidas para os chineses, sobretudo em produtos de nicho. É isso que outros países exportadores de alimentos e bebidas de alto valor agregado fazem, como a Alemanha com vinhos e a Nova Zelândia com carnes, lácteos e mel. Até 2024, cerca de 58% das vendas de varejo na China devem ocorrer via comércio eletrônico.
Como alcançar esse objetivo de ampliar o comércio com a China?
Esses esforços exigem recursos financeiros. Podemos estimular a atração de capital chinês para o setor por meio dos novos instrumentos disponíveis no Brasil, como os FIAGROs, Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais. É um bom instrumento para aproximar o agronegócio de seu maior comprador, criando novas fontes de recursos para o financiamento do setor. Uma exposição maior do capital chinês ao agro nacional certamente criará oportunidades comerciais adicionais e ajudará a perpetuar os canais de comércio já estabelecidos, evitando atritos — como fechamento de mercados, de fábricas etc. — e aumentando a estabilidade. Precisamos ir além do óbvio, fazer uso da capacidade de planejamento e visão de longo prazo da China para trabalharmos com eles na estruturação de novas cadeias produtivas e de novas formas de acessar o consumidor chinês.