15/06/2022
Os múltiplos significados da demissão da executiva que se tornou símbolo de mulher bem-sucedida no mundo predominantemente masculino da tecnologia
David Cohen
Durante muito tempo Sheryl Sandberg foi a face mais notória de um certo tipo de feminismo (sim, já não se consegue mais falar do feminismo como uma única frente). Tendo trabalhado na equipe que tornou o Google uma impressionante máquina de fazer dinheiro com publicidade online, ela foi contratada em 2008 para fazer o mesmo pelo Facebook, como uma espécie de supervisora de seu fundador, Mark Zuckerberg, então com apenas 23 anos — e sob sua tutela a empresa se tornou trilionária.
Do auge de seu valor de mercado, em setembro passado, até aqui, a cotação em bolsa do Facebook, agora rebatizado como Meta, caiu a cerca da metade (de US$ 1,1 trilhão para US$ 530 bilhões) — e, embora o mercado como um todo tenha refluído, a desvalorização tem muito a ver com o distanciamento do modelo que Sandberg implementou, o que esvaziou sua influência. Não à toa, ela anunciou no dia 1º de junho que pretende perseguir outras metas: dedicar-se à filantropia, atuar mais na fundação Lean In, em prol da autonomia das mulheres, que fundou em 2013, e se casar com Tom Bernthal, um ex-jornalista e produtor de notícias da NBC que fundou e dirige uma consultoria de marketing (os dois, mais os dois filhos dela e os três dele, estão morando juntos em sua casa na Califórnia desde o início da pandemia).
Mais do que uma número 2 da companhia, Sandberg era a capitã dos negócios. Virou símbolo de mulher bem-sucedida num universo masculino (a tecnologia, ainda mais do que outros setores) e, ao lançar um livro sobre sua trajetória, repleto de conselhos para quem quisesse seguir seu exemplo, passou a ser uma campeã da causa feminina.
Com a passagem do tempo, porém, as críticas às ideias do livro — Lean In, algo como “incline-se para dentro”, que na versão em português é Faça Acontecer: Mulheres, Trabalho e a Vontade de Liderar — se fortaleceram. Por dois motivos. O primeiro é que o movimento de luta pela igualdade de gênero avançou em outra direção. O segundo motivo é que o Facebook sofreu uma perda de prestígio extraordinária, e a imagem de Sandberg ficou arranhada.
É sempre necessário tomar cuidado com as generalizações, mas o próprio fato de haver tão poucas mulheres em cargos com esse tipo de exposição dá à trajetória de Sandberg um simbolismo extra. Seu pedido de demissão, apresentado após 14 anos de coliderança do Facebook, oferece, portanto, múltiplas chaves para interpretar as conquistas femininas no mercado de trabalho.
É comum que, no momento de despedida, os executivos colham apenas elogios de seus chefes. Mesmo nesse contexto, a mensagem de Zuckerberg sobre Sandberg se destaca. Em um post no Facebook, ele disse: “Sheryl arquitetou nosso negócio de anúncios, contratou gente brilhante, forjou nossa cultura e me ensinou a administrar uma companhia”.
Não há nenhum exagero nesses elogios. Quando Sandberg foi contratada, a empresa faturava cerca de US$ 150 milhões. No ano passado, a receita foi de US$ 118 bilhões — um número quase 800 vezes maior. Além de montar o modelo que permitiu esse salto na arrecadação, ela era responsável pela área legal, pelas relações públicas e pelos recursos humanos em uma empresa que passou de 500 para 78.000 funcionários e conta hoje com quase 3 bilhões de usuários mensais ativos (é a rede mais usada do planeta).
Sandberg também criou políticas que combatem discriminações no trabalho, como treinamentos, extensão de licenças, até um programa de apoio a funcionárias que queiram congelar óvulos para ter filhos mais tarde.
É um retrospecto tão impressionante que seria difícil encontrar um sucessor à altura. A Meta não vai nem tentar. As atribuições de Sandberg serão distribuídas entre quatro executivos: Andrew Bosworth, o chefe de tecnologia; Nick Clegg, presidente de assuntos globais; Chris Cox, chefe de produtos; e Javier Olivan, chefe de operações (o cargo de Sandberg, porém agora com tamanho “normal”, similar ao de outras empresas).
Uma coisa os quatro executivos têm em comum — são todos homens.
Por mais bem-sucedida que tenha sido Sandberg, fica claro que ela representa muito mais uma exceção do que o prenúncio de uma nova era com maior representação das mulheres no comando das empresas.
Na década de 1990, o guru de negócios Tom Peters costumava dizer que o futuro era das mulheres. Segundo ele, o mundo dos negócios caminhava para ser mais conectado, mais multitarefas, mais focado em relações humanas… e em todos esses quesitos as mulheres levariam vantagem. A ascensão feminina faria muito bem às empresas, também, inaugurando um novo estilo de liderança.
O histórico de Sandberg, porém, não permite apontá-la como um exemplo nessa direção.
No início, até parecia que seu sucesso alavancaria o gênero. A empresária de mídia Arianna Huffington a chamou de “campeã das mulheres”. O jornalista Casey Newton, que escreve a influente newsletter Platformer, sobre as redes sociais, afirma que durante meia década inúmeras startups falavam abertamente em “encontrar uma Sheryl” para ajudá-las a crescer. Sandberg era um modelo.
Mas um modelo de quê? Conforme crescia, o Facebook ia deixando de ter a imagem de uma startup inventiva cuja missão era apenas conectar as pessoas e passava a ter, também, a imagem de uma empresa agressiva, cuja missão era capturar o tempo e a atenção dos usuários. As duas coisas são verdadeiras, claro, no entanto a percepção foi migrando de um polo (a “empresa do bem”) a outro (uma empresa “do mal”) e Sandberg tem muito a ver com essa passagem. Afinal, para monetizar o serviço do Facebook, o modelo que ela implantou foi justamente vender a atenção das pessoas para anunciantes.
A partir de 2016, a chave virou de forma mais radical. Numa campanha presidencial em que o termo “fake news” ganhou relevância, investigações revelaram que a companhia menosprezou e camuflou a interferência de hackers russos em sua plataforma. Foi ficando cada vez mais claro que a rede social era uma mão na roda para discursos de ódio — um alerta que já havia sido dado por ativistas como a jornalista filipino-americana Maria Ressa, prêmio Nobel da Paz em 2021. Há seis anos, ela reportava ameaças e assédio aos opositores das execuções sumárias em uma guerra extrajudicial às drogas promovida pelo presidente Rodrigo Duterte, e advertia que os acontecimentos nas Filipinas eram um sinal do que poderia ocorrer também nos Estados Unidos.
Sinais semelhantes vinham de Myanmar, da Índia, da Alemanha e de vários outros países. A empresa os ignorou. Seu principal argumento era de que funcionava como uma plataforma, não como uma produtora de conteúdo. Responsabilizar-se pelo que os usuários postam ou censurá-los seria caro e difícil de implementar.
Em 2018, uma reportagem conjunta dos jornais The New York Times, The Observer e The Guardian revelou que a consultoria Cambridge Analytica, ligada à campanha de Trump, utilizava o Facebook para perfilar eleitores (com testes como “em que cidade você gostaria de morar?” ou “a qual casa da escola de Hogwarths, nos filmes de Harry Potter, você pertenceria?”, a empresa montava um panorama de suas preferências e ideologias). Sandberg, então responsável também pelas relações públicas do Facebook, foi criticada pela forma pouco transparente com que a empresa tratou do caso.
Finalmente, houve o ataque ao Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021, por radicais que apoiavam Donald Trump em suas acusações de fraude nas eleições. “Esses eventos foram organizados em plataformas que não têm as nossas habilidades para conter os discursos de ódio, não têm os nossos padrões e não têm a nossa transparência”, declarou Sandberg uma semana depois. Ao mesmo tempo, porém, pesquisadores encontravam evidências de que o Facebook foi essencial para a mobilização e organização dos ataques.
As críticas à Meta, empresa mãe do Facebook, se refletiram sobre Sandberg. “As decisões dela tornaram as plataformas de mídia social menos seguras para as mulheres e as pessoas de cor e até ameaçaram o sistema eleitoral”, opinou a ativista pela equidade de gêneros Shaunna Thomas. Para Shoshana Zuboff, professora da Escola de Negócios de Harvard e autora de livros sobre o impacto da tecnologia na sociedade, o fato de Sandberg ter encontrado formas de monetizar dados pessoais dos usuários a torna “responsável pela destruição da privacidade”.
Talvez Sandberg tenha simplesmente perdido o tempo certo de deixar a empresa. Mais de um analista comentou que ela devia ter pedido demissão bem antes. “Muita gente está perguntando por que ela resolveu sair agora?”, escreveu Kara Swisher, colunista de opinião do New York Times. “Como alguém que observa há muito tempo a mais poderosa mulher do Vale do Silício, eu tenho uma questão mais pertinente: por que demorou tanto?”
De acordo com pessoas ligadas a ela na empresa, Sandberg cogitou a saída várias vezes. Em 2016, teria dito a colegas que, caso Hillary Clinton ganhasse a eleição presidencial, provavelmente assumiria o cargo de secretária do Tesouro dos Estados Unidos. No mesmo ano, ela era cotada para assumir o cargo de executiva-chefe da Disney (quando o número 2 da companhia, Tom Staggs, principal candidato a suceder Bob Iger, pediu demissão; Iger acabou estendendo-se no posto até 2021, para preparar outro sucessor prata da casa, Bob Chapek).
Em 2018, com o desgaste dos escândalos da Cambridge Analytica e da interferência russa nas eleições, cujos detalhes emergiam, Sandberg voltou a dizer a colegas que planejava deixar o cargo — mas não queria fazê-lo durante uma crise.
A crise, entretanto, provocou uma mudança significativa na empresa. Até então, Zuckerberg, um executivo-chefe focado em produtos, costumava delegar a gestão a seus comandados, principalmente Sandberg. Em 2017, ele chegou a passar boa parte do ano numa viagem pelos Estados Unidos, o que alimentou rumores de que planejava se candidatar a presidente. Na volta, insatisfeito com a enxurrada de críticas à sua empresa, decidiu exercer mais ativamente o papel de líder.
De acordo com o Wall Street Journal, em 2018, Zuckerberg convocou uma reunião com seus principais funcionários e anunciou que precisava se reinventar como um líder para “tempos de guerra”. Remodelou o conselho de administração para que fosse ainda mais leal a ele, exigiu mais concatenação do Whatsapp e do Instagram com o Facebook (o que levou os fundadores das duas empresas compradas pelo Facebook a se afastar), passou a frequentar mais reuniões, a aceitar mais convites para discursos e até a cativar políticos (ações que eram normalmente feitas por Sandberg).
Em público, Zuckerberg dizia que Sandberg era mais importante do que nunca — na pandemia, sua principal função foi coordenar um programa de US$ 100 milhões de ajuda a pequenas empresas afetadas pelas medidas de isolamento. Ela, por sua vez, afirmava que sempre encorajara Zuckerberg a ter papel mais ativo na gestão. Em privado, porém, ele se mostrava frustrado pelas respostas que ela deu às crises. E ela, de acordo com o New York Times, temia estar sendo afastada das principais decisões e confidenciava a colegas de sua equipe que não concordava com algumas das decisões do chefe.
Quando o Facebook se tornou Meta, em novembro de 2021, ficou claro que o novo foco de atenção de Zuckerberg — o metaverso, uma imersão mais completa no mundo virtual — era algo que ia além do terreno em que Sandberg atua.
A transição não tem sido fácil. De um lado, a companhia tem investido pesadamente em produtos do metaverso. A divisão que produz óculos virtuais e de realidade aumentada, além de outros produtos ainda não anunciados, gastou mais de US$ 10 bilhões em 2021. De outro lado, as receitas de anúncios caíram, em parte por causa de mudanças feitas pela Apple para proteger usuários de seus produtos da propaganda direcionada.
Um sinal a mais da perda de prestígio de Sandberg na Meta é a revelação, feita pelo Wall Street Journal, de que ela estava sendo investigada por usar recursos da empresa para planejar seu casamento. A investigação é um desdobramento de uma outra, derivada da suspeita de que alguns anos atrás ela tenha pressionado um tabloide britânico a parar de publicar notícias sobre seu então namorado, Bobby Kotick, cuja ex-mulher havia conseguido uma ordem judicial para que não se aproximasse dela.
O maior sinal de perda de influência, no entanto, é o consenso entre analistas de que nada vai mudar muito na Meta com a saída de Sandberg.
De acordo com o jornalista Mike Isaac, que acompanha o Facebook há anos para o New York Times, Sandberg não foi empurrada para fora da companhia. Quando Zuckerberg decidiu voltar-se para o metaverso, ela foi apenas colocada numa esteira automática que lentamente se dirigia para a porta de saída. “A nova obsessão de Mark com o metaverso apresenta um desafio inteiramente diferente e um novo modelo para fazer dinheiro”, escreveu ele. “A saída de Sandberg sugere que este não era um trabalho que ela queria fazer.”
Mostrar a porta de saída a uma mulher poderosa não é raro. Apenas alguns anos atrás havia um grupo de executivas bastante fortes no setor de tecnologia. Desde então, o grupo encolheu. Em 2017, a executiva-chefe do Yahoo, Marissa Mayer, deixou a companhia após sua venda para a Verizon. No mesmo ano, Meg Whitman saiu da liderança da Hewlett-Packard (HP). No início de 2020, Ginni Rometty deixou o cargo de executiva-chefe da IBM e no final do ano afastou-se também da presidência da empresa.
Em todos esses casos, as executivas saíram com suas reputações abaladas. Marissa Mayer não conseguiu recuperar uma companhia problemática. Mesmo assim, foi compensada com US$ 246 milhões, basicamente porque o Yahoo se valorizou muito graças às ações que tinha da gigante do comércio eletrônico chinesa Alibaba. Ginni Rometty foi responsabilizada pela demora da IBM em se adaptar às novas tendências do mercado: computação em nuvem, inteligência artificial e análise de dados. Meg Whitman chegou a ser apontada como a executiva-chefe de pior desempenho dos Estados Unidos pela revista Bloomberg, num ranking que comparava o preço das ações ao desempenho do mercado como um todo durante o mandato do líder.
Mas Sandberg é diferente. Suas digitais estão nos algoritmos que dão ao Google a à Meta uma receita combinada de mais de US$ 300 bilhões em publicidade. Sua capacidade de trabalho e realizações é impressionante. E, enquanto supervisionava múltiplas áreas na empresa, ainda cuidava de dois filhos pequenos e escreveu um livro. Só tirou folga em 2015, quando seu marido, Dave Goldberg, executivo-chefe do site de pesquisas Survey Monkey, morreu repentinamente enquanto se exercitava numa esteira ergométrica. (Para lidar com o luto, Sandberg escreveu um segundo livro, Plano B).
Seu primeiro livro, um manifesto sobre como triunfar num mundo dominado por homens pode ter perdido parte de sua atualidade, mas mexeu com a vida de muita gente. Traduzido no mundo inteiro, vendeu mais de 4,2 milhões de exemplares e levou à criação de centenas de “círculos Lean In”, grupos de mulheres que se encontram regularmente para discutir suas carreiras com base em princípios estabelecidos por Sandberg.
A mudança foi sentida por recrutadores como Eliot Kaplan, um ex-vice-presidente da empresa de contratação de talentos Hearst Publishing que se tornou consultor de carreiras. Antes do livro, disse ele ao New York Times em 2018, as mulheres tendiam a aceitar a primeira oferta que lhes era feita. “Agora, 90% delas quer negociar; em geral dinheiro, mas também tempo de férias, responsabilidades, plano de carreira… algumas chegam a dizer que Sheryl Sandberg manda fazer isso.”
Desde o início houve quem apontasse que as recomendações de Sandberg eram pertinentes apenas para mulheres da elite econômica, capazes de se formar em ótimas faculdades e contratar uma ou duas babás para cuidar dos filhos enquanto se dedicam a conquistas profissionais. Mas uma segunda linha crítica foi a que se impôs: a noção de que Sandberg coloca responsabilidade demais nos ombros das próprias mulheres para atingir o sucesso, e pouco foco em exigir de empregadores e do governo que estabeleçam condições para avançarem — como horários de trabalho mais flexíveis, infraestrutura de cuidados infantis etc.
Em tempos de #MeToo, a sociedade passou a prestar muito mais atenção aos obstáculos estruturais que as mulheres têm de vencer, como assédio, segunda jornada (em casa), discriminação (às vezes inconsciente). É até possível que a própria Sandberg, menos preocupada com esses temas — segundo ela própria, apenas porque já eram bastante frisados por outras pessoas — tenha sido vítima de um mecanismo inconsciente que faz com se cobre mais das mulheres do que dos homens. Afinal, poucos executivos do sexo masculino sofrem danos reputacionais tão grandes quanto os ataques que ela sustentou.
Aos 52 anos, multimilionária, com um novo casamento, ela deverá ter, no entanto, bastante energia para onde quer que decida inclinar-se. De acordo com Zuckerberg, em seu post no Facebook, a demissão dela representa o “fim de uma era” para a empresa. Mas o reverso também é verdadeiro. A saída do Facebook representa o fim de uma era para ela. Provavelmente, o início de outra.