25/05/2022
Não foi só um solavanco. A perda de assinantes — pela primeira vez em dez anos —aponta para sérios problemas no mercado de streaming
David Cohen
Depois de inspirar uma série de concorrentes a lançar serviços com sinal de positivo — Disney+, HBO Plus, Apple TV Plus —, a Netflix parece ter iniciado um movimento na direção do negativo: anunciou em abril, pela primeira vez em uma década, ter perdido 200 mil assinantes no primeiro trimestre do ano. Pior: previu a debandada de mais 2 milhões no segundo trimestre.
Poucas horas depois do anúncio, o valor das ações da companhia já havia caído 35%, uma perda de cerca de 50 bilhões de dólares. Mas isso foi só no primeiro dia. Depois piorou. No mês seguinte, a destruição de valor havia chegado a 70 bilhões de dólares. E isso para uma ação que já estava em queda. Em janeiro, quando a companhia sinalizou que esperava atrair 2,5 milhões de novos assinantes no trimestre seguinte, um número considerado baixo por analistas, seu valor de mercado já havia despencado 30%.
Em suma: uma empresa que em novembro de 2021 era cotada a mais de 300 bilhões de dólares passou a valer, em maio, cerca de 80 bilhões de dólares, um derretimento de quase três quartos de seu valor.
Uma desvalorização desse tamanho lança uma sombra não apenas sobre a Netflix, mas sobre o universo das startups, sobre o mercado de streaming, sobre o futuro da produção de conteúdo. É útil, portanto, dissecar as agruras por que passa a empresa.
O primeiro ponto a considerar é que nem todo esse encolhimento é responsabilidade da própria Netflix. A economia como um todo, em praticamente todo o mundo, se retraiu; e o setor de tecnologia, mais ainda. Nos últimos meses, o valor de mercado de algumas startups bilionárias (conhecidas como unicórnios) caiu entre 20% e 45%.
O cenário de investimentos fáceis, amplamente favorável a empresas novas que privilegiam o crescimento em detrimento dos lucros, deu claros sinais de mudança. No primeiro trimestre, os investimentos de risco nos Estados Unidos caíram 8% (em relação ao mesmo período do ano passado), para 71 bilhões de dólares, de acordo com a consultoria PitchBook. As ofertas públicas de ações (IPOs) despencaram 80%, segundo o banco de investimentos Renaissance Capital.
Com o novo cenário, pelo menos 55 empresas de tecnologia anunciaram demissões desde o início do ano nos Estados Unidos, mais que o dobro do ano passado, de acordo com o site Layoffs.fyi, criado no início da pandemia para compilar demissões no setor. Além das demissões, há a redução de contratações. A Uber anunciou que passaria a tratar contratações como um “privilégio”, dada a “mudança sísmica” no mercado. A Meta (empresa mãe do Facebook) declarou que vai reduzir contratações para os cargos de média e alta gerência.
Neste ambiente desfavorável, a Netflix sobressaiu — para ainda pior. Em seu comunicado a investidores, citou uma série de motivos para o desempenho aquém do esperado. Alguns são pontuais, como a decisão de fechar o serviço aos assinantes da Rússia em represália pela invasão da Ucrânia. Embora a perda de 700 mil assinantes de uma hora para outra seja um baque considerável, esse foi um retrocesso circunstancial: não significa que haja algo errado com o modelo de negócios. Os demais motivos são mais preocupantes.
O primeiro deles é o excesso de competidores. Empresário nenhum vê com bons olhos a existência de concorrentes, especialmente quando há muitos e, como é o caso, alguns com enorme poder de fogo (como as gigantescas Apple, Amazon e Disney). A questão, no entanto, é que ela mesma convidou a concorrência. Não somente pelo meio mais comum, quando o sucesso de uma ideia inspira imitadores; no caso do streaming, a Netflix praticamente obrigou antigos parceiros a se tornarem rivais.
Talvez fosse inevitável. Há quase dez anos, em 2013, o então executivo-chefe de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, afirmou que ela precisava se transformar numa HBO antes que a HBO se transformasse numa Netflix. Quer dizer: a empresa tinha que se tornar uma exímia produtora de conteúdo, porque sua posição como distribuidora era frágil.
Durante algum tempo, foi possível comer o bolo e vender o bolo. A Netflix mantinha um catálogo rico (chegou a ter exclusividade dos filmes da Disney, por exemplo) e começava a criar produções muito elogiadas (embora o prêmio máximo, o reconhecimento de um Oscar, lhe tenha até agora escapado). Não à toa, Sarandos foi promovido em 2020 a coexecutivo-chefe, ao lado do fundador Reed Hastings. Mas é claro que esse arranjo não podia durar. Quando você invade o terreno dos outros, deve saber que o seu terreno também poderá ser invadido.
Com a queda das receitas de cinema e com a perda de audiência das emissoras de TV, os produtores de conteúdo começaram a se mexer. Não foi só a HBO que resolveu “virar uma Netflix”, no sentido de distribuir seu próprio conteúdo. A Disney investiu bilhões na transformação. A Amazon criou sua divisão de streaming, também com estúdios. A Apple fez o mesmo pouco depois. Há poucas semanas, a Discovery e a Warner concluíram uma fusão para competir melhor nesse mercado. Pelo mundo afora, nasceram distribuidoras de streaming. No Brasil, a Globo criou a GloboPlay.
Não é tanto que a Netflix tenha aberto um mercado extraordinário — ela demonstrou que aquele um caminho era praticamente obrigatório. Pode ter havido um erro de cálculo: concentrou-se na luta com a HBO, mas no processo acordou alguns gigantes das indústrias de tecnologia e de entretenimento.
A própria menção aos concorrentes é um sinal do baque levado por uma empresa que até pouco tempo atrás dizia competir não com outros serviços de streaming, mas com todo tipo de diversão, incluindo o tempo que as pessoas gastam lendo ou dormindo.
Um segundo ponto para explicar a interrupção do crescimento é a crise econômica. Claro, isso não é culpa da Netflix. Mas a metamorfose de distribuidora pura para distribuidora-produtora não ajudou, aos olhos dos investidores.
“A Netflix, que tradicionalmente era avaliada como uma ação de tecnologia, está começando a ser vista mais como uma provedora de conteúdo tradicional”, disse Jon Christian, fundador da consultoria especializada em mídia OnPrem, ao jornal The New York Times. Nessa caixinha, entretanto, ela não exibe as mesmas armas que os outros. “Olhe a Disney”, aponta Christian. “Além do streaming, ela tem cinemas, parques temáticos, brinquedos, roupas; ela tem meios de diversificar. A Netflix vai precisar olhar para outras fontes de receita.”
Não é que o serviço de streaming seja um mau negócio. Longe disso. Mesmo com a perda de assinantes, a Netflix registrou uma receita de 7,8 bilhões de dólares no trimestre, 10% acima do registrado no primeiro trimestre de 2021. Não houve queda nas receitas, e sim desaceleração no crescimento. Os lucros, estes sim caíram, 6%, para cerca de 1,6 bilhão de dólares, mas ainda um montante de respeito. O problema é a sinalização para um futuro mais difícil.
Não se esperava que o streaming fosse um mercado tão próximo da maturidade. A Netflix costumava dizer que mirava nas cerca de 1 bilhão de residências no mundo em que há internet de banda larga. Mais recentemente, admitiu que os altos preços dos planos de tráfego de dados e a lenta adesão aos televisores mais modernos são obstáculos significativos para atingir esse público. De acordo com a consultoria MoffettNathanson, citada pela revista The Economist, o potencial de clientes para streaming estaria por volta de 400 milhões de casas. Com os seus 222 milhões de assinantes, mais cerca de 100 milhões que “pegam carona” no serviço usando as senhas de parentes ou amigos, a Netflix já teria arrebatado quatro quintos do mercado potencial.
Enquanto sua base de assinantes crescia ininterruptamente, a Netflix não se preocupava com alguns sinais problemáticos, como a alta rotatividade de usuários ou o compartilhamento de senhas. Agora ela é obrigada a focar em questões típicas de um mercado mais maduro: tornar-se mais eficiente, extrair mais lucro da base existente, essas coisas.
Uma das grandes preocupações é a taxa de abandono de clientes. Segundo a consultoria Deloitte, nos Estados Unidos, 25% dos assinantes cancelam o serviço quando termina a temporada de sua série favorita, para voltar no ano seguinte (incluindo os que não voltam, a taxa é de 37%, segundo a mesma consultoria). A Netflix é propensa a sofrer esse tipo de abandono de forma ainda mais intensa, dado que inaugurou a estratégia de lançar todos os episódios de uma série no mesmo dia (incentivando o binge watching, a prática de assistir tudo de uma vez só, durante várias horas). Por enquanto, pelo menos, a empresa afirma que manterá a estratégia.
O cancelamento abala uma das principais vantagens do modelo de negócios de assinatura — fidelizar o cliente, tornando a receita constante ao longo dos meses. Impõe também uma pressão extra para o lançamento de grandes sucessos, capazes de chamar o público de volta.
Outro problema para o qual a Netflix não dava muita bola era o compartilhamento de senhas. Era. Com o choque das más notícias, Hastings anunciou que a empresa vai agir para coibir a prática, ou ao menos taxá-la. “Nós estivemos pensando no assunto no último par de anos, mas como estávamos crescendo rapidamente isso não era uma prioridade para nós”, afirmou a investidores. “Agora, estamos trabalhando duro nisso.”
A mudança básica deverá ser identificar os clientes que compartilham senhas com outras residências e cobrar deles um valor adicional para cada perfil em endereço diferente que utilizar a mesma senha de liberação da programação. Essa política será testada primeiramente em três países da América Latina: Chile, Peru e Costa Rica.
Além do compartilhamento de senhas, a Netflix mudou de ideia em relação a outro assunto: publicidade. Hastings sempre se manifestou contra “a complexidade da propaganda e um grande fã da simplicidade da assinatura”. Em abril, anunciou que a companhia passaria a oferecer uma assinatura mais barata, para aqueles dispostos a ver anúncios na plataforma. Isso seria feito em “um ou dois anos”.
Alguns dias depois, em memorando aos funcionários, adiantou o cronograma. A assinatura com publicidade deverá ser lançada no último trimestre deste ano. É uma estratégia já utilizada por praticamente todas as distribuidoras de conteúdo (com exceção da Apple) nos Estados Unidos. A HBO, por exemplo, cobra 15 dólares mensais para um streaming sem anúncios e 10 dólares com anúncios.
Esse caminho demanda estrutura de venda de anúncios, mas a Netflix não necessariamente criará um departamento próprio. David Wells, ex-chefe de finanças da empresa, é conselheiro da Trade Desk, uma firma que ajuda a colocar propaganda em diversas plataformas na internet.
Fora as ações que privilegiam a busca de receitas, há obviamente o outro lado da equação: cortar despesas. E a Netflix já começou a agir. Nos primeiros dias após o anúncio de perda de assinantes, a empresa cortou 25 postos no Tudum, o site dedicado a notícias de bastidores da própria Netflix.
Em meados de maio, uma nova leva de cortes atingiu 150 profissionais (cerca de 2% do total), a maioria nos Estados Unidos, vários em posições executivas. “A diminuição do crescimento da receita infelizmente significa que temos de diminuir também o crescimento dos custos da companhia”, disse um porta-voz ao site Deadline, especializado no setor de cinema e TV. “São mudanças ocasionadas pelas necessidades do negócio, não por desempenho, o que torna as demissões especialmente dolorosas, já que nenhum de nós quer dizer adeus a colegas tão bons.”
Os cortes de custos não vão parar nas demissões. De acordo com The Wall Street Journal, a empresa está mudando de estratégia na produção de conteúdo. No ano passado, foram lançados mais de 500 programas inéditos; neste ano, o número será menor, de acordo com fontes do jornal. Segundo a chefe global de TV da companhia, Bela Bajaria, neste ano haverá menos lançamentos.
Isso em si não significa economia. Bajaria afirma que os gastos com conteúdo vão até aumentar, para 20 bilhões de dólares (foram menos de 18 bilhões no ano passado). Mas haverá mais foco nas métricas, principalmente a audiência em relação ao orçamento. Stranger Things é uma série de muito sucesso, mas com altíssimo custo (algo como 30 milhões de dólares por episódio). A coreana Round 6 foi um achado, baixo orçamento e enorme sucesso mundial.
Conseguir isso não é simples. Aí entra a famigerada estratégia de “fracassar rápido”, um clichê entre as startups. No caso da Netflix, trata-se de testar os programas dando-lhes destaque; se não tiverem audiência suficiente em algumas semanas, vão para uma espécie de limbo (fica difícil encontrá-los entre as centenas e centenas de ofertas).
Outra forma de cortar custos, de acordo com o Wall Street Journal, é reduzir o número de episódios de algumas séries. A segunda temporada da comédia Russian Doll tem um episódio a menos. A próxima temporada de Firefly Lane deverá ter dois episódios a menos que a primeira.
E há os cancelamentos de programas, claro. De acordo com The Wrap, outro site de notícias especializado no setor de entretenimento, a perda de assinantes provocou o fim de vários deles, especialmente na divisão de desenhos animados para a família.
Nem o príncipe Harry e sua mulher, Meghan Markle, escaparam dos cortes. Eles têm um contrato estimado em 100 milhões de dólares para produzir conteúdo para a Netflix, mas a série de desenhos animados Pearl, criada por Markle, foi suspensa.
Trata-se de uma mudança de postura sensível. Quando começou a fazer conteúdo, a Netflix se propôs a dar liberdade quase total aos criadores, e pouca preocupação em relação às críticas. Foi assim (além das verbas generosas, claro) que a empresa conseguiu atrair tantos talentos. Mas os resultados foram, digamos, mistos.
A aposta original era, conforme um velho ditado no setor, que o conteúdo é o rei. A aposta atual segue sendo essa — mas nos moldes de uma monarquia constitucional, em que o poder de fato está nas mãos do Parlamento.
A empresa já lidava há algum tempo com a dificuldade em atrair mais assinantes nos Estados Unidos e no Canadá. A própria promoção de Baraja a chefe de conteúdo, há dois anos, era uma forma de focar no crescimento em outras praças, onde o mercado fosse menos maduro (e mais promissor). Sarandos demitiu Cindy Holland, seu braço-direito por duas décadas, e promoveu Baraja, que tinha mais experiência internacional.
Os números do trimestre ratificaram esse cenário: a companhia perdeu 600 mil assinantes na América do Norte, em parte devido a um recente aumento de preço na assinatura. A única região onde houve crescimento foi a Ásia.
Em parte, a estratégia tem dado frutos. Três dos seus seis programas mais populares são falados em outras línguas que não o inglês (dois coreanos e um espanhol). A Netflix tem investido nisso, e já tem estrutura de produção de filmes e TV em mais de 50 países.
O problema é a Índia. Grande aposta da empresa em 2018, de onde Hastings esperava obter “os próximos 100 milhões de assinantes”, o país tem se revelado um desafio muito maior do que se previa. O mercado indiano tem cerca de 100 milhões de assinantes de streaming, de acordo com a consultoria Media Partners Asia, citada pelo site de notícias BBC. A Netflix só conseguiu atrair 5,5 milhões, muito atrás da Disney, com 46 milhões, e da Amazon, com 19 milhões.
O grande obstáculo para a empresa é que lhe faltam duas pernas no tripé que atrai a audiência dos indianos. Ela já produziu mais de 50 filmes locais, a maioria na língua majoritária, hindi, alguns com grandes estrelas nacionais; mas lhe faltam notícias e esportes.
A Disney+ transmite críquete, uma paixão nacional. A Amazon transmite uma ampla variedade de programas em dez línguas do país. A Netflix ainda é vista como elitista, uma plataforma com programas americanos. Para complicar, o país tem mais de 75 serviços de streaming. A maioria vai mal das pernas, mas ocupa um espaço que dificulta a entrada da Netflix.
Todos esses desafios não são apenas da Netflix. E os investidores percebem isso. Tanto que, no dia em que a empresa anunciou seus resultados decepcionantes, quase todos os concorrentes sofreram desvalorizações.
No dia 10 de maio, a Disney+ anunciou ter acrescentado 7,9 milhões de assinantes à sua base no último trimestre, escapando de prognósticos mais sombrios. Mas não o suficiente. O que a Netflix fez foi lançar uma sombra sobre o mercado como um todo — algo justificável por seu pioneirismo e tamanho (a concorrente mais próxima é a própria Disney+, com 138 milhões de assinantes, ante os 222 milhões da Netflix). Se a líder começa a ter dificuldades para extrair lucros de seu negócio, o que isso diz para os demais?
De acordo com o analista de mídia americano Michael Nathanson, uma consolidação no mercado, com a eliminação de concorrentes (via fusões ou desistências), poderia retirar pressão. “No momento, porém, este é um negócio de bastante capital intensivo”, disse ao Wall Street Journal.
Numa disputa em que o bolso conta tanto, Apple, Amazon e Disney, com bolsos mais fundos, levam vantagem. Mas seria um erro menosprezar a Netflix. A empresa já deu mostras de sua capacidade de resolver problemas, pivotando modelos de negócios para achar o seu espaço.
“O mercado de streaming está amadurecendo e as altas expectativas que se tinha sobre a Netflix estão sendo repensadas”, disse à BBC o analista Julian Aquilina, da consultoria de mídia Enders Analysis. “Mas eu acredito que ela ainda se manterá como líder de mercado, porque tem uma dianteira folgada. Se as pessoas forem abandonar alguma assinatura, a Netflix não será a primeira a ser descartada.”
Os próximos meses — talvez anos —serão certamente desafiadores para a companhia. Ao final deles, se tudo der certo, Reed Hastings talvez tenha que acrescentar mais um ou dois capítulos ao livro que lançou em 2020, A Regra É Não Ter Regras, cujo subtítulo é: “a Netflix e a cultura da reinvenção”.