O advogado argentino Eduardo Bertoni, do Instituto Interamericano de Derechos Humanos, criou uma metodologia para avaliar a gravidade de mentiras disseminadas em documentos e redes sociais
Tiago Cordeiro
Referência quando o assunto é liberdade de expressão na América Latina, o advogado argentino Eduardo Bertoni acredita que existem alguns tabus acerca da prática de mentir. “Existem, sim, mentiras inofensivas, que não causam danos morais nem jurídicos”, afirmou, para em seguida exemplificar: “Se você disser a uma criança que Papai Noel vai beneficiar os alunos que se dedicam, esta é uma mentira que pode até mesmo ter consequências positivas”.
Acontece, disse ele, que esse não é o caso de funcionários públicos que se dispõem a difundir mentiras, especialmente nas redes sociais. “Quando se trata desses profissionais, a divulgação de informações falsas não apenas recai na reprovação moral, mas também jurídica.” Isso porque essas pessoas são imbuídas de uma responsabilidade extra, provocada pelo vínculo com instituições estatais, com as quais suas posições, do ponto de vista da opinião pública e de legislação, se confundem.
Bertoni atua no Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH). É representante do Escritório Regional para a América Latina do Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Foi o primeiro diretor da Agência de Acesso à Informação Pública (AAIP), a autoridade de proteção de dados e acesso à informação da Argentina. Foi também o fundador e o primeiro diretor do Centro de Estudos sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CELE), na Faculdade de Direito da Universidade de Palermo, na Itália.
Em painel apresentado durante a I Conferência Liberdade de Expressão na Era Digital, realizada nos dias 27 e 28 de abril pelo Insper em parceria com o InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, o especialista argentino apresentou uma pesquisa recente na qual defende que a responsabilidade dos agentes públicos é muito maior em comparação com os demais cidadãos.
Quatro critérios
Em seu trabalho, o pesquisador desenvolveu uma taxologia da mentira. “Quatro fatores são determinantes: intencionalidade, magnitude, existência de um dano e tempo que demora para ele se manifestar”, disse. É possível, por exemplo, uma pessoa divulgar uma informação falsa deliberadamente, mas também ela pode acreditar, com sinceridade, naquele dado que está comunicando. Além disso, existem mentiras muito mais danosas do que outras, assim como aquelas que demoram mais para manifestar seus efeitos prejudiciais.
Quando um cidadão está posicionado dentro de uma instituição pública, no entanto, essas sutilezas perdem relevância. “As manifestações mentirosas de um funcionário público tendem a ser danosas e alcançar efeitos rapidamente”, afirmou Bertoni.
“Existem obrigações rígidas, morais e legais, a respeito da publicação de informações e documentos verdadeiros. E também no uso das redes sociais: é necessário verificar o que se diz.” Bertoni citou um exemplo claro: “Não se pode, como funcionário público, dizer que um medicamento funciona para uma determinada doença quando seus efeitos não são comprovados”.
O resultado do abuso dessas normais éticas e legais, segundo Bertoni, é um agravamento da atual crise de desinformação. “As redes sociais são parte importante do problema, ainda que não exclusivamente responsáveis, e o funcionário público que mente potencializa os danos ao ecossistema de acesso confiável a informações”, resumiu.
Eleições no Brasil
Durante o painel, Bertoni interagiu com Silvana Batini, doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), procuradora regional da República e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio. A mediação ficou a cargo de Diego Werneck Arguelhes, professor do Insper.
Arguelhes lembrou que os parlamentares são funcionários públicos, eleitos para os cargos que ocupam: “Eles colocam um problema adicional mais difícil, porque usufruem de imunidade parlamentar. E pode acontecer de proferirem inverdades com objetivos políticos, com intenção de enganar”.
Por sua vez, Silvana Batini destacou, no trabalho do professor Bertoni, o aspecto do impacto da desinformação no cenário eleitoral — uma questão crucial no Brasil, em 2022, quando serão eleitos o presidente da República, governadores, senadores, deputados federais e estaduais.
“A legislação eleitoral não foi pensada para o discurso do funcionário público, mas inclui dois conceitos que foram desenvolvidos na década de 90 e que podem ser atualizados e trazidos para o nosso desafio atual”, disse Silvana Batini. “São eles: o conceito de abuso de poder político durante eleições, que surgiu para prevenir o uso da máquina pública por determinado candidato, e a noção do abuso dos meios de comunicação social”.