07/12/2021
Além de resolver um problema de imagem, a empresa comandada por Mark Zuckerberg busca transformar-se em um negócio que torne irrelevante sua desgastada rede social
David Cohen
“O que há num nome? Aquilo que nós chamamos de rosa, com qualquer outro nome teria o mesmo doce perfume”, diz Julieta na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare — lamentando-se que não podia amar Romeu apenas porque seu nome o incluía entre os Montecchio, inimigos de sua família.
No final de outubro, Mark Zuckerberg, o principal acionista do Facebook, decidiu testar se sua empresa, com algum outro nome, evocaria no público as mesmas sensações. Ao contrário de Julieta, ele espera que não.
A troca do nome da empresa para Meta ocorreu em 28 de outubro, três semanas depois de um testemunho no Senado americano que revelou histórias desagradáveis sobre o Facebook e as outras duas redes sociais que controla, Whatsapp e Instagram. A coincidência sugeriu a muita gente que esta é uma tentativa de livrar a marca da má reputação que a acompanha hoje.
“A mudança de nome equivale a uma segunda demão de tinta em uma marca desfigurada”, afirmou Rebecca Biestman, diretora de marketing da Reputation, uma firma de gestão de reputação da Califórnia, ao site Market Watch. “O Facebook está tentando distrair jornalistas e políticos das evidências de decisões irresponsáveis e comportamento potencialmente criminoso”, afirmou ao mesmo site o investidor Roger McNamee (uma opinião nada surpreendente para alguém que escreveu o livro Zucked: waking up to the Facebook catastrophe, algo como “Zuckado: acordando para a catástrofe do Facebook”).
Os problemas de imagem, no entanto, já assombram o Facebook há anos, tendo crescido com a polêmica da falta de moderação a fake news na época da eleição de Donald Trump. Em 2018, uma pesquisa da Survey Monkey em parceria com a Recode, canal sobre negócios digitais do site de notícias Vox, concluiu que para 56% dos americanos o Facebook era a menos confiável de todas as grandes empresas de tecnologia quanto a proteção dos dados pessoais dos usuários. E olha que a concorrência era dura: Amazon, Apple, Google, Uber, Twitter, Microsoft e outras não são exatamente bem vistas pelo público.
É verdade que, desde setembro passado, quando a ex-funcionária Frances Haugen entregou a The Wall Street Journal documentos da empresa que indicavam uma série de irregularidades, o nível de confiança no Facebook caiu a um patamar ainda mais baixo. Os documentos, apelidados de Facebook papers, evidenciaram problemas como falta de recursos dirigidos à moderação de discursos de ódio mundo afora, ações radicais para tentar recapturar popularidade com adolescentes, falha na remoção de comentários antivacinação, possíveis exageros no tamanho de sua base de usuários que levariam a preços mais altos de publicidade, incentivo a conteúdos negativos e polarizadores (porque aumentam o engajamento na rede social) e falta de preocupação com evidências de que o Instagram pode acentuar eventuais problemas psicológicos de adolescentes.
De acordo com a empresa de pesquisas sobre marca Harris Brand, o índice de confiança no Facebook, que já era de apenas 16%, caiu ainda mais com a avalanche de acusações, atingindo um mínimo de 5,8% no início de outubro, quando Haugen saiu do anonimato e testemunhou contra a empresa no Senado americano.
Ainda assim, não é de todo convincente a afirmação de que o Facebook tenha se tornado Meta apenas para limpar sua barra. Até porque o nome Facebook vai ser mantido para a rede social que inaugurou o império de Zuckerberg — da mesma forma como em 2015 o Google não deixou de existir quando mudou o nome da holding para Alphabet.
O que explica então o novo batismo? Seria simplesmente, como diz Zuckerberg, a disposição de se posicionar como uma companhia do metaverso — uma espécie de internet ainda mais imersiva, um espaço virtual tridimensional? Sim e não.
Há vários motivos para uma companhia mudar de nome:
Nenhum desses motivos tem muito a ver com o movimento do Facebook. Sua situação atual sugere um misto de outros quatro:
Às vezes, o principal produto ou serviço da empresa já não é mais bem visto pela comunidade. O caso mais bombástico deste tipo foi da gigante do tabaco Philip Morris, que em 2003 mudou de nome para Altria — um modo de manter o lucrativo negócio de cigarros mas enfatizar que a companhia fazia outras coisas também. Depois que vendeu a Kraft, porém, o nome Altria se refere apenas à Philip Morris americana.
Também foi a pressão social que fez os Vigilantes do Peso (Weight Watchers, em inglês) se tornarem WW, em 2018. Hoje em dia a ideia de restrições à dieta perdeu terreno para a mais politicamente correta noção de bem-estar e positividade em relação ao corpo. O redirecionamento funcionou: as ações da WW se valorizaram em 25% em um ano.
Outro setor que se tornou vilão foi o da extração de petróleo. Por isso, em 1998, a British Petroleum aproveitou a compra da Amoco (American Oil Company) e mudou de nome para BP Amoco. Pouco depois, adotou o slogan “Beyond Petroleum” (além do petróleo), que apontava para um futuro mais sustentável usando as mesmas iniciais. Mas aí veio o desastre ambiental do vazamento de petróleo de uma plataforma no Golfo do México, em 2010, e não houve como não lembrar que a BP ainda não tinha ido muito além do petróleo.
O Facebook se enquadra? Sim, até certo ponto. Embora raras pessoas advoguem o fim das redes sociais, há uma crescente preocupação com privacidade, notícias falsas e comportamentos viciantes na internet. Dizer que a rede social é uma parte da empresa, não ela inteira, ajudaria a preservá-la caso a campanha ganhe uma força inesperada.
Quando uma companhia sofre um escândalo de grandes proporções, precisa dar um jeito de passar sua história a limpo. Isso inclui mudar de nome. No Brasil temos um exemplo bastante atual: a Odebrecht Engenharia e Construção tornou-se OEC, restringindo o nome da família a uma inicial; a Odebrecht Agroindustrial tornou-se Atvos; a Odebrecht Óleo e Gás se chama Ocyan. Finalmente, a holding Odebrecht S.A. mudou seu nome para Novonor, em dezembro de 2020. De forma semelhante, a Camargo Corrêa, outra construtora envolvida nos escândalos da Lava Jato, virou Mover, em julho de 2018.
Outro exemplo foi a Valeant, empresa farmacêutica canadense que despertou a ira do público porque seu modelo de negócio era baseado em comprar as licenças de remédios antigos e aumentar seu preço extraordinariamente. O escrutínio que ela passou a sofrer ajudou a revelar uma “contabilidade criativa” (mentia para que suas ações subissem de preço). Em 2018, adotou o nome de uma companhia de seu portfólio, a Bausch + Lomb, e virou Bausch Health. A Valeant já havia perdido 90% de seu valor de mercado, mas a partir daí recuperou cerca de 20%.
Por vezes, o escândalo não está diretamente ligado às operações da empresa, e sim ao próprio nome. Aconteceu com a Lance Armstrong Foundation, em 2012. Depois que seu fundador, o ciclista Lance Armstrong, foi condenado pelo uso de drogas para melhorar o desempenho e perdeu suas medalhas, a fundação adotou o nome de Livestrong.
Há exemplos menos dramáticos, que envolvem desvencilhar-se de uma imagem de pouco caso com consumidores. A provedora de internet Time Warner Cable, por exemplo, virou Spectrum.
O Facebook se enquadra? Não parece haver arrependimento dos caminhos que a empresa trilhou, mas é possível que deixar a herança de rede social para trás esteja na mente de Zuckerberg. Afinal, ele disse textualmente, na conferência em que anunciou o novo nome: “Com o tempo, espero que sejamos vistos como uma companhia metaverso, e quero ancorar nosso trabalho e identidade no que estamos construindo nessa direção”.
A Apple começou vendendo computadores. Chamava-se Apple Computers. A segunda parte do título seria anacrônica hoje — muito embora os celulares agora sejam computadores potentes e ela ainda faça computadores tradicionais.
Da mesma forma, o Google investe em óculos para realidade virtual, sistema operacional Android, mapas, carros autônomos. Não fazia mais sentido que todas essas iniciativas estivessem sob o guarda-chuva de um buscador da internet que vive de publicidade.
Neste quesito se enquadram duas grandes redes de educação no Brasil. A Estácio virou Yduqs em julho de 2019 e a Kroton tornou-se Cogna, apenas três meses depois. Em ambos os casos, há um franco processo de expansão via aquisições. Não se trata, porém, de abarcar novas atividades, mas de ocupar terreno em áreas correlatas (ensino superior, ensino básico, público de elite, serviços de gestão da educação etc.). Por que então não manter o nome? Grandes corporações são usualmente vistas com desconfiança. Uma Kroton que ocupasse todo o espectro da educação não teria muito a ganhar no terreno das percepções e enfrentaria mais dificuldade de focar nas especificidades de cada área. Um novo nome para a holding permite aproveitar sinergias e, ao mesmo tempo, frisar que não há monopólio.
O Facebook se enquadra? Sim. A empresa segue o caminho do Google, com muitas semelhanças e uma diferença. A principal semelhança é que a Alphabet tirou dos ombros do Google diversos projetos que confundiam os investidores. Antes dela, não havia como saber se os lucros da empresa seriam aplicados em negócios totalmente diferentes, e investidores não gostam muito de surpresas.
O Facebook sofre de sintomas parecidos. Ao separar os investimentos que faz no metaverso de seu negócio principal, “o Facebook se torna uma empresa mais fácil de ser avaliada pelos investidores”, como disse Mitch Rubin, cofundador e diretor de investimentos da firma de investimentos RiverPark Funds, ao site de notícias econômicas Business Insider. De acordo com ele, o Facebook é “um negócio espetacular” que enfrenta “algumas dores crescentes”, como a crítica de jornalistas, reguladores e do público em geral.
Como os investidores valorizam a previsibilidade, saber que os gastos com iniciativas de metaverso custarão ao Facebook US$ 10 bilhões neste ano é uma garantia de que o restante do lucro (sobrariam para lá de US$ 30 bilhões anuais) estará preservado. “E, se as iniciativas de metaverso acrescentarem algum valor à empresa, melhor ainda”, diz Rubin.
Isso ajuda a explicar por que as ações do Facebook subiram 15% logo após o anúncio do novo nome e mantiveram um nível de 8% de alta nos dias seguintes, mesmo com a maioria dos analistas reduzindo as expectativas de receita para a companhia, não só para este ano como para o ano que vem também.
A criação da Meta também pode aliviar um pouco da pressão sobre o Facebook. Embora negue veementemente que seja um monopólio, apontando como evidência o sucesso quase instantâneo da concorrente Tik Tok, a companhia está na mira das autoridades regulatórias. Como informou Peter Kafka em coluna de 11 de novembro na Recode, a agência antitruste americana analisou 616 aquisições feitas por grandes companhias de tecnologias na última década, mesmo elas não tendo o tamanho que deveria deflagrar a vigilância. Ao separar a operação do Facebook, pode haver mais tolerância em relação às aquisições que têm a ver com o metaverso — a maioria nos últimos tempos.
Quanto a ganhos de imagem, o efeito foi o oposto. Na pesquisa da Harris Brand, o Facebook havia se recuperado um pouco a partir da mínima de confiança de 5,8% para 11%, mas após a mudança de nome o índice voltou a cair para 6,2%. Ou seja, esta terceira razão parece bem mais forte que as duas primeiras. Há outra, ainda. E é nela que reside a diferença entre os processos de criação da Meta e da Alphabet.
Empresas muito longevas raramente sobrevivem com a mesma atividade que lhes deu origem. A japonesa Mitsubishi, por exemplo, nasceu em 1830 como uma empresa de comércio exterior, tornou-se companhia de navegação, depois mineradora e, mais tarde tornou-se um conglomerado de empresas em setores tão diversos quanto bancos, eletrônicos, automóveis e indústria pesada.
O Facebook se enquadra? Sim, mesmo tendo apenas 17 anos. Embora a credibilidade de Mark Zuckerberg esteja em baixa há muito tempo, o motivo que ele aventou para a mudança de nome — adequar-se àquilo em que a empresa quer se transformar — efetivamente faz sentido.
O metaverso pode ser um termo criado no reino da fantasia pelo escritor de ficção científica Neal Stephenson, em 1992, mas é uma das grandes vertentes por onde avança a tecnologia. A ideia, como escreveu Zuckerberg numa carta de anúncio do novo nome do Facebook, é que no futuro “você será capaz de se teletransportar instantaneamente como um holograma para estar no escritório sem pegar trânsito, num show com amigos, na sala de estar dos seus pais para bater um papo”.
Se a internet já é imersiva com textos e imagens em telas planas, o metaverso adicionaria uma terceira dimensão, com experiências em 3D e, ainda, possibilidades multissensoriais que incluiriam o tato.
As empresas que apostam nesse caminho têm se valorizado. Os jogos multiplayer, como Fortnite e Roblox, saíram na frente. Mas há outras companhias, como a Topia, plataforma de gestão remota de pessoas, ou a Altspace VR, uma plataforma de realidade virtual. Com menos alarde que o Facebook, a Microsoft investe na Microsoft Mesh, plataforma que se propõe a unir as pessoas em variados aparelhos, como óculos de realidade virtual ou realidade aumentada, notebooks e até celulares.
A Nvidia, que criou a Omniverse, uma plataforma virtual para permitir colaboração em tempo real nos projetos das empresas com renderização de imagens (em colaboração com a Pixar), teve no início de novembro uma alta de 12% em seu valor de mercado, chegando a estrondosos US$ 752 bilhões.
Nesse jogo, a Meta não quer ficar para trás. Já tem mais de 10.000 funcionários dedicados à fabricação de aparelhos como óculos de realidade aumentada (o Google lançou algo nessa linha no passado, sem sucesso, mas Zuckerberg acredita que a hora dessa inovação chegou). Há planos de contratar mais 10.000 pessoas na Europa para trabalhar com o metaverso. Recentemente, o diretor responsável por realidade aumentada e realidade virtual, Andrew Bosworth, se tornou o executivo-chefe de tecnologia da empresa. Além disso, o Facebook já vinha comprando empresas que criaram tecnologias para realidade virtual, como Within, Unit 2 Games, Crayta, Bigbox VR.
Para o Facebook, esse mundo novo é uma oportunidade de se livrar de uma restrição que o atormenta. Por mais sucesso que faça, por mais lucrativa que seja, a rede social depende do terreno em que vive — os sistemas operacionais do Google e da Apple. Num ambiente de crescente preocupação com a privacidade, existe a ameaça de perder um naco de seu principal e praticamente único produto: os dados de seus usuários, que formata e empacota para vender publicidade (responsável por 98,5% de sua receita).
“Minha suspeita é que essa mudança tem a ver com dominar o sistema operacional do futuro”, disse Anupam Chander, professor de Direito da Universidade Georgetown, à revista New Scientist. “Eles não querem ser prisioneiros na plataforma dos outros, querem que os outros sejam prisioneiros na plataforma deles.”
Esta é a principal diferença entre os processos de mudança de nome do Google e do Facebook. O Google buscava expansão, diversidade. No caso da Meta, a meta é, em algum momento, tornar o Facebook irrelevante — ser a cria que engole o pai.
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