17/02/2022
As aquisições de catálogos de artistas atingem bilhões de dólares e revelam mudanças profundas na indústria da música
David Cohen
Com a disseminação dos serviços de streaming, nunca se comprou tanta música como agora. Os acervos de algumas das principais estrelas da música têm atraído o interesse de grandes editoras e gravadoras ou empresas de private equity.
O catálogo do artista britânico David Bowie, por exemplo, acabou de ser arrematado pela Warner Music, em janeiro, pela bagatela de 250 milhões de dólares. A negociação entre a empresa e os herdeiros (a segunda mulher de Bowie e seus três filhos) levou quase seis anos, desde sua morte até agora. Considerando que Bowie produziu 26 álbuns em seis décadas de carreira, é uma média de quase 10 milhões de dólares por álbum.
Se você acha esse valor muito alto, imagine o quanto custaria comprar as mais de 600 músicas de Bob Dylan, o cantor que não só revolucionou o folk americano como ganhou um prêmio Nobel de Literatura em 2016. A editora Universal Music não divulga o montante, mas, segundo o jornal The New York Times, pode ter passado dos 300 milhões de dólares. E isso foram só os direitos autorais pelas letras e melodias, um acordo fechado em dezembro de 2020.
Sete meses depois, em julho de 2021, o artista vendeu o catálogo de gravações (o direito às peças que ele gravou e efetivamente tocam nas rádios e serviços de streaming), para a Sony Music. Embolsou outros 150 milhões ou 200 milhões de dólares, de acordo com a revista Variety. Para quem vendeu os direitos de seu primeiro álbum, em 1962, por meros 100 dólares, foi um caminho e tanto. (A propósito, os direitos às músicas daquela primeira venda já haviam chegado às mãos da Universal — a Leeds, compradora original, foi vendida para a MCA, que no final de 1996 foi renomeada como Universal.)
Para entender bem a diferença: se uma empresa quiser usar a música de um artista para gravar um comercial, precisa obter a concordância de quem detém seus direitos (o catálogo de músicas, normalmente gerido por uma editora) e pagar os direitos autorais correspondentes. Se, ainda por cima, quiser usar a gravação com a voz e instrumentos do próprio artista, precisa pagar também royalties a quem detenha os direitos de gravação.
As vendas dos dois tipos de catálogo representaram negócios de pelo menos 5 bilhões de dólares no ano passado, em mais de 60 grandes transações, segundo a consultoria Music Business Worldwide (MBW). Esse valor inclui apenas os negócios capturados pelo radar da consultoria, incluindo compra de direitos dos artistas e a aquisição de coleções de outras empresas. Não foi computada, por exemplo, a venda do catálogo do artista John Legend para a gravadora e editora BMG e o fundo de investimentos KKR, em setembro passado, por um valor não divulgado.
Entre os negócios mais vultosos, a editora Concord comprou o catálogo da rival Downtown por 400 milhões de dólares e a Warner Music pagou outros 400 milhões de dólares pelas coleções da 300 Entertainment. Uma das gravadoras/editoras com maior apetite, a Sony Music, comprou a Alamo Records e, no Brasil, a gravadora Som Livre (que era da Globo).
Este último negócio, fechado em abril por 1,4 bilhão de reais (255 milhões de dólares, na cotação de então), deu à Sony os direitos pelas músicas de estrelas como Wesley Safadão, Jorge e Mateus e a rainha da sofrência Marília Mendonça, que morreu num desastre de avião em novembro.
Quase a metade das transações, no entanto, foi direta, com os artistas ou seus herdeiros vendendo os direitos às músicas. Nesse caso, 2,3 bilhões de dólares trocaram de mãos em 2021. Boa parte disso ficou com Bruce Springsteen, na primeira vez que um artista individual ultrapassou a marca do meio bilhão de dólares pelos direitos a suas músicas. A venda foi (também) para a Sony, que antes já havia comprado o catálogo de Paul Simon por 250 milhões de dólares. A empresa detém os direitos de artistas como The Beatles, Leonard Cohen, Carole King, Lieber & Stoller, Michael Jackson, Motown, Queen e Stevie Wonder, para ficar em alguns dos exemplos mais significativos.
A julgar pela aquisição dos direitos às músicas de Bowie, pela Warner, logo no início do ano, 2022 não deve ser muito diferente. Um dos próximos anúncios de aquisição multimilionária pode ser o de Prince. Em janeiro, o banco que administra seu espólio e os herdeiros do artista chegaram a um acordo sobre o valor da herança (aí incluídos imóveis e seu lendário baú de gravações nunca divulgadas): 156 milhões de dólares.
O valor era objeto de disputa desde a morte de Prince, em 2016. Com o acordo, o patrimônio do artista poderá ser dividido entre a agência de talentos Primary Wave — que já havia comprado os direitos de três dos seis herdeiros — e os demais três herdeiros; a divisão possibilita que pelo menos parte de suas músicas seja vendida.
Em suma, um mercado que praticamente não existia há cinco anos está, para ficarmos numa metáfora relacionada ao setor, se agitando a um ritmo alucinante.
Há vários motivos para o aquecimento desse mercado. Numa só sentença: mudanças tecnológicas e sociais, potencializadas pela pandemia da covid-19, de um lado, e brechas fiscais aliadas a oportunidades de negócio num cenário econômico duvidoso, de outro. Agora, esmiuçando as razões:
#1. Algumas décadas atrás, os artistas viviam basicamente da venda de discos. A tecnologia que permitiu primeiro o compartilhamento de músicas (sem pagamento de direitos autorais) e, na sequência, o estabelecimento de grandes empresas de streaming de áudio acabou com essa fonte de renda. Grandes astros da música passaram a depender então dos shows — o que era antes um impulso para a venda de CDs se tornou a maior fonte de renda para muitos deles.
Como se sabe, a pandemia da covid-19 levou a medidas de isolamento social e, portanto, ao cancelamento de inúmeros espetáculos. Embora no isolamento as pessoas tenham passado a ouvir muito mais músicas por streaming, isso não aliviou a situação, dos artistas, porque os pagamentos feitos pelas plataformas de streaming são irrisórios.
Nesse cenário, vender seu catálogo é uma opção pela segurança. O artista embolsa no curto prazo, de uma vez, um dinheiro que entraria em sua conta aos poucos, ao longo de muitos e muitos anos (inclusive depois de sua morte).
#2. Especialmente os artistas americanos têm um motivo a mais para fechar negócios. Normalmente, o imposto pago pela venda de seus catálogos é de cerca de 20%. Porém, o presidente Joe Biden, quando foi eleito, prometeu mudar a lei de taxação sobre ganhos de capital, para torná-la mais próxima dos impostos de quem recebe altos salários. Ou seja, aqueles que ganham mais 1 milhão de dólares em seus investimentos devem pagar impostos semelhantes aos que pagariam se os ganhos fossem provenientes de um salário: cerca de 37%.
Em outras palavras, vender suas músicas agora pode representar uma mordida bem menor nos ganhos.
#3. Do outro lado do negócio, as empresas descobriram uma forma de ter uma receita estável — e talvez crescente, dado o sucesso que o streaming vem fazendo. O catálogo de Bruce Springsteen, sozinho, rende aproximadamente 17 milhões de dólares por ano, segundo a revista Billboard. A coleção de Bob Dylan rende algo parecido, cerca de 16 milhões de dólares anuais.
Num mundo de juros baixos, é uma receita e tanto em relação ao investimento. Mesmo com a alta de juros que se anuncia agora, ainda é um ótimo negócio, especialmente pelo viés de crescimento. Que é claro: com a pandemia, as gerações mais velhas passaram a adotar o streaming até com mais apetite que os jovens. Isso fez com que as músicas de catálogo (preferidas pelos, digamos, mais maduros) ganhassem um grande impulso.
De acordo com a consultoria MRC Data, que monitora o mercado de música americano, a participação de mercado das músicas novas decresceu em 2021, um fato inédito desde o início dessas estatísticas, em 2008, enquanto o consumo de músicas de catálogo cresceu 24%. Hoje, quase três em cada quatro músicas consumidas nos Estados Unidos são de catálogo.
#4. Com essa receita e esse potencial de crescimento, não é de espantar que a compra de músicas tenha chamado a atenção de empresas de fora do mercado, especialmente fundos privados acostumados a vasculhar o mundo em busca de oportunidades de negócios.
“O segmento que mais cresce entre os assinantes de streaming de música nos mercados de ponta é o de pessoas de meia idade”, escreveu Tim Ingham, presidente da consultoria MBW, em sua coluna na revista Rolling Stone, há mais de um ano. “Essa tendência explica por que a música de catálogo está atraindo forte interesse dos investidores de Wall Street agora: ela rende um dinheiro sério.”
Assim, os fundos de investimento KKR e Blackstone podem ser vistos disputando com gravadoras e editoras de música tradicionais pelos direitos autorais dos mais diversos artistas. E há empresas novas no pedaço, como a britânica Hipgnosis Songs Fund, criada em 2018 para investir nesse mercado. Ela gastou quase 700 milhões de dólares no ano passado para comprar milhares de músicas de Blondie, Rick James, Barry Manilow, The Pretenders, Neil Young e Shakira.
A Hipgnosis inspirou a criação, aqui no Brasil, do fundo Adaggio, gerido pela Arbor Capital. Com R$ 60 milhões em recursos de investidores e a disposição de contrair dívidas de outros 60 milhões de reais, o Adaggio pretende se tornar relevante no setor de direitos autorais musicais, que movimenta mais de 2 bilhões de reais por ano no país. O fundo já comprou os direitos das músicas do grupo Molejo, da Legião Urbana e de Jorge Aragão.
#5. O mercado não é promissor apenas pela tendência de crescimento inercial (graças à adesão de ouvintes mais velhos às plataformas de streaming). Os compradores de música também acreditam que podem extrair mais valor dos bens que adquirem. “Vamos fazer a gestão desses catálogos para aumentar os rendimentos”, disse João Luccas Caracas, executivo-chefe do Adaggio, ao site de notícias de negócios Brazil Journal. A ideia é oferecer músicas para uso em publicidade, promover artistas junto às rádios, sugerir regravações…
A compra de catálogos de músicas é tão interessante que suscita uma questão, levantada por Ingham em sua coluna: por que as companhias de música não criam empresas separadas para geri-los? Sem os custos operacionais vinculados às gravadoras e editoras, sem necessidade de manter grandes estruturas, os conjuntos de catálogos teriam uma margem de lucro extraordinária. E, consequentemente, altíssimo valor.
É o caminho trilhado pela Hipgnosis, por exemplo. No ano fiscal de 2020, ela reportou ter exatamente zero empregado direto. Quando precisa de algo, contrata serviços ou conselheiros no mercado (justamente a situação imaginada pelo economista britânico Ronald Coase quando indagou por que as empresas existem, uma análise que lhe valeu o prêmio Nobel).
Aí se nota, porém, a grande diferença entre os fundos e as empresas do setor. Estas têm usado os bilhões de dólares provenientes dos catálogos para investir em encontrar, desenvolver e promover novos artistas. Segundo Ingham, talvez se prenuncie uma batalha: investidores ativistas em companhias de música podem fazer pressão, no futuro próximo, para separar os negócios usuais dos catálogos.
Para as gravadoras, seria um golpe. Elas funcionam segundo a lógica de que, para encontrar um artista que vá estourar, é preciso apostar em muitos que, no final das contas, não vão vingar. Sem os recursos dos catálogos, esse processo fica muito mais complicado.
Essa lógica, porém, tem sido desafiada. Um número crescente de músicos tem se lançado de forma independente. Em 2020, a receita de artistas independentes ou de gravadoras alternativas cresceu 27%, ante um aumento de apenas 7% do mercado como um todo, de acordo com a consultoria MIDiA Research, citada em artigo de Mark Savage, da BBC.
“É cada vez mais normal que artistas independentes cheguem ao topo das paradas”, disse Tatiana Cirisano, analista da MIDiA. Esse fenômeno foi impulsionado pelo aplicativo TikTok. Muitos artistas testam seus trabalhos, várias vezes incompletos, e vão modificando de acordo com as reações das audiências.
O fato de os independentes estarem crescendo não significa que ficou mais fácil fazer sucesso, apenas que há muito, muito mais gente tentando e um número maior dessas pessoas consegue. Em vários aspectos, o caminho está até mais difícil: hoje em dia, um artista precisa gerenciar suas redes sociais, alimentar o público constantemente com novos trabalhos, interagir. É uma rotina que quase todos consideram estafante.
Lá na frente, no entanto, dada essa valorização dos catálogos, a recompensa — para os poucos que construírem sucesso duradouro — tende a ser espetacular.