02/05/2022
A montagem de soluções tecnológicas sem conhecimentos especializados de programação é uma das ideias primordiais da informática, diz o professor Fabio de Miranda
Leandro Steiw
Na história simplificada da computação, o ideal era que as máquinas fossem acessíveis a qualquer usuário. Sem códigos complicados, sem programadores especializados, sem limites à imaginação. Os primeiros computadores, no entanto, exigiam certo conhecimento técnico que eclipsou o desejo dos seus inventores por mais de meio século. Para o professor Fabio de Miranda, coordenador do curso de Ciência da Computação do Insper, o ciclo está se completando. Parte do fenômeno deve-se à difusão das ferramentas de low code e no code, tendência mostrada nesta reportagem.
Os nomes não guardam mistério. High code (em inglês, código alto) é a programação clássica, normalmente feita por profissionais treinados em linguagens como Java, Javascript, C, C#, C++, Python, Objective-C, usadas pelo mercado. No extremo oposto, no code (sem código) é o desenvolvimento de soluções por usuários que não escrevem uma única linha de código. Os aplicativos são construídos por meio de interfaces gráficas, com o arrasto e o encaixe de blocos que contêm os comandos e as instruções, e não com a digitação de linhas de texto.
O low code (código baixo), portanto, fica no meio do caminho. Embora a lógica de clicar, arrastar e configurar seja a mesma do no code, é possível escrever funções e códigos para parametrizar determinadas rotinas no programa. Conforme Miranda, algumas empresas consideram o Excel um tipo de low code, porque a interface é amigável aos leigos em programação, mas acrescentam-se macros para automatizar tarefas ou funções via barra de fórmulas, por exemplo.
Uma dose de contexto ajuda a compreender o impacto das tecnologias low code e no code. Nos anos 1940 e 1950, inspirados pelo sonho da máquina acessível, os precursores da computação não planejavam a constituição de uma categoria de programadores. O valvulado ENIAC, usado na Segunda Guerra Mundial para simular a trajetória de mísseis e nos cálculos da construção da bomba de hidrogênio, era reprogramado com a troca de fios de um circuito para outro. Para cada tarefa, os nascentes programadores precisavam mudar a posição desses cabos – as cientistas Frances Bilas Spence, Jean Jennings Bartik, Marlyn Wescoff Meltzer, Frances Elizabeth Holberton, Ruth Lichterman Teitelbaum e Kathleen McNulty Mauchly Antonelli são reconhecidas como as pioneiras na operação do ENIAC.
A fabricação do computador de uso geral, no final da década de 1950, eliminou a necessidade do cabeamento dos circuitos. Parecia que, enfim, todos criariam programas por meio da linguagem escrita em cartões perfurados. “Vimos que isso não aconteceu. O conhecimento técnico necessário ainda não permitia que qualquer um programasse de fato os novos computadores”, conta Miranda.
Os bancos de dados, apresentados nos anos 1970, tinham um propósito semelhante. A IBM supunha que as secretárias escreveriam linhas de comandos do SQL para acessar os valores registrados nos arquivos da empresa. Era uma visão anterior às interfaces gráficas que usamos nos nossos computadores e smartphones. “Com o tempo, ficou claro que o negócio era complicado, e a sociedade aceitou esse conflito de escolha”, narra Miranda. “A ideia passou a ser a disseminação da ferramenta. Usar o computador era mais importante do que programar. Entramos nesse ciclo de quase 40 anos em que se aceitou que existiriam os programadores e os usuários.”
A demanda por programadores clássicos não para de crescer. Até 2024, o Brasil precisará de pelo menos 70 mil profissionais de tecnologia de informação por ano, segundo estimativa da Brasscom, a associação que reúne empresas de tecnologia da informação e comunicação. A carência de mão de obra piora, porque o trabalho remoto imposto pela pandemia de covid-19 abriu as portas das empresas de fora para os programadores mais qualificados, que passaram a ganhar em dólares sem sair do país.
Em qualquer setor da economia, desenvolver o produto principal já está consumindo a força de trabalho de todos os programadores que a empresa consegue contratar. Só que existem as necessidades tecnológicas de pequenos processos internos, como softwares de contabilidade, financeiro, recursos humanos e atendimento ao consumidor, entre outros. No cenário de transformação digital, as organizações dependem desses sistemas de automatização para agilizar as decisões, reduzir o tempo de desenvolvimento de produtos e serviços e, consequentemente, ganhar competitividade.
Para cada produto core, há dezenas de processos internos. A escolha parece natural. Com programadores supervalorizados, a TI da empresa tende a relegar as solicitações mais internas ou as demandas B2B com parceiros pequenos. “A proposta do low code é empoderar os profissionais de outras áreas que não são desenvolvedores a criar protótipos das suas pequenas soluções, a fazer um pouquinho da transformação digital eles mesmos”, explica Miranda. “Senão, os pedidos internos entrarão no gargalo da fila de TI para nunca serem feitos.”
Eventualmente, mantém-se a versão do aplicativo que deu certo. Se o processo cresce, principalmente em sistemas relacionados com os clientes, o protótipo pode ser entregue para uma equipe de desenvolvimento mais convencional preparar uma solução de maior escalabilidade e segurança. Não é pouca coisa. Um relatório recente da consultoria Gartner, especializada em tecnologia, prevê que 70% das soluções adotadas pelas empresas serão em low code ou no code em 2025.
Na metade do século 20, o usuário do computador precisava dominar Cobol ou Fortran, as linguagens mais difundidas da época, adiando o sonho da acessibilidade. Quase sete décadas depois, há diversas ferramentas comerciais que dispensam conhecimentos em programação, como o Microsoft Power Apps, o Siemens Mendix, o AWS Honeycode, o Google AppSheet, todos embalados no potencial do no code. “Habilitar as pessoas a elaborar as suas soluções conecta demais com aquela ideia dos primórdios da computação, de deixar os profissionais, cada um na sua área, criar o seu próprio sistema, o seu próprio programa”, avalia Miranda.
Outras plataformas de low code e no code voltam-se para o consumidor, que pode começar um aplicativo do zero, publicá-lo na Apple Store ou no Google Play e até vendê-lo. Uma história bem-sucedida da tecnologia é a startup norte-americana Dividend Finance, um crowdfunding privado para financiamento de dispositivos de energias renováveis em residências.
Miranda diz que a fintech criou um protótipo no code no Bubble, publicou nas lojas de aplicativos, chegou a 30 mil usuários (de quem arrecadaram empréstimos de 1 bilhão de dólares) e captou, posteriormente, 300 milhões de dólares para expandir a empresa. Tudo isso com a versão modesta de lançamento. “Normalmente, a partir do momento que a empresa tem receita, contratam-se programadores. Eles foram em frente por sete anos, até que resolveram montar uma equipe de desenvolvimento. É um dos casos mais espetaculares de uso de low code e no code”, comenta o professor.
O melhor de tudo: a tecnologia do clica, arrasta e encaixa não ameaça a profissão dos programadores formados, porque novos desafios surgirão com o tempo. E alguém tem que cuidar dos códigos que existem por trás das ferramentas sem código. “As carreiras tradicionais de programação e desenvolvimento são necessárias, na verdade, porque o mercado está superaquecido, e quem tem formação é um profissional escasso”, observa Miranda. “O mercado de trabalho como um todo está se tornando cada vez mais digital, porque as empresas precisam automatizar processos, então é interessante que alguns desses players de low code e no code se consolidem e sejam soluções de fato viáveis.”
A intenção dos inventores do computador era que todos pudessem resolver os seus problemas com a informática. Não estava clara, para eles, a dependência de uma casta de programadores altamente especializados. “Acho muito bacana que se feche esse arco de visionários, como o cientista e pensador da computação e da educação Alan Kay, que defenderam esse conceito nos últimos 40 anos”, afirma Miranda. O passado, quem diria, finalmente está em nossas mãos.