07/01/2016
SÃO PAULO – Marcos Lisboa é um dos economistas mais respeitados do Brasil. Ex-secretário de política econômica do governo Lula (2003-2007), conhece bem o debate microeconômico crucial para o desenvolvimento do país. Hoje presidente do Insper, ele cobra do governo, e não do ministro da Fazenda, eleger o problema fiscal como prioridade, a partir de uma “ampla, extensa e profunda” agenda de reformas e avaliação detalhada da eficiência das políticas públicas. É um nó difícil de desatar, mas urgente: mirando 2016, ele teme ter saudades de 2015.
“O aumento de receitas de tributos não enfrenta o problema fiscal. O problema brasileiro depende de você tentar enfrentar a trajetória dos gastos. Se eu aumentar a receita este ano com novo tributo, daqui a um ou dois anos precisa de um novo imposto (…) Caso se continue a acreditar que trata-se apenas de anúncio de algumas medidas pra agradar um certo conjunto de agentes econômicos, a crise vai ficar pior”, disse Lisboa em entrevista a O Financista.
Leia abaixo os pontos principais da entrevista:
O Financista: A mudança de ministro da Fazenda indica qual rumo de política econômica?
Marcos Lisboa: É um jogo ainda a ser jogado. Precisamos aguardar as escolhas do atual governo. O que tenho dito, inclusive desde o fim da reeleição passada, é que essa não é uma agenda de ministro da Fazenda. A agenda que o Brasil tem a enfrentar é uma agenda de governo. Os desafios fiscais decorrem de uma série de regras que deixam os gastos obrigatórios constantemente acima da renda. É o problema fiscal mais agudo que o Brasil enfrenta e é uma agenda de governo porque requer diversas medidas para alterar regras desde Previdência até a revisão de diversas políticas públicas. Coisas que necessitam de aprovações no Congresso, algumas com maioria qualificada.
O Financista: Nelson Barbosa, ministro da Fazenda, tem falado de empenho para emplacar reformas na Previdência e nas leis trabalhistas.
Lisboa: O governo vai comprar essa agenda? Os nomes são reforma da Previdência, reforma trabalhista, mas uma coisa é o título do livro, outra coisa é a quantidade de páginas. Há livro com 20 e com 400 páginas. Ou seja, o segredo aqui está nos detalhes. Qual será a extensão da reforma? Não há uma medida única que resolva o problema. É preciso fazer ajuste na idade mínima [para aposetadoria], revisão em diversos benefícios que podem ser acumulados no Brasil ao contrário de outros países. Há a agenda de pensão por morte que é muito peculiar aqui. Há vários indicadores de graves extensões como, por exemplo: o Brasil tem 9% de trabalhadores rurais, enquanto as aposentadorias rurais são mais de um terço do total. Como uma categoria tem menos de 10% dos trabalhadores e mais de um terço dos aposentados? Algum tipo de distorção existe. É uma agenda difícil, longa, extensa, e é necessário saber qual será o grau de comprometimento do governo, e não apenas do ministro da Fazenda. Encampar uma agenda profunda de reformas e avaliação de política pública.
O Financista: Esta é a principal vertente para os próximos anos?
Lisboa: Precisaremos enfrentar essa agenda. Avaliar detalhadamente as diversas políticas públicas. Qual o grau de eficácia do Pronatec? O Seguro Defeso está adequado ou em certa medida virou uma instituição de benefícios a famílias selecionadas? Por que estender a aposentadoria rural? O que fazer com os regimes especiais de Previdência? Por que professor é diferente de médico e advogado? É uma agenda longa.
É o mesmo caso da estrutura tributária. Temos algumas regras tributárias peculiares. No Brasil, a cada produto produzido, há uma regra complexa de tipo de insumo que pode ser deduzido e do que não pode. No exterior, entre receitas e despesas, calcula-se uma alíquota sobre o valor adicionado. Aqui no Brasil, além disso, para complicar ainda mais, há uma serie de regimes especiais. Isso resulta de uma legislação do PIS/Cofins com mais de 1.800 páginas pela multiplicidade de regimes especiais.
Vamos caminhar em direção a um regime unificado, mais simples, como o resto do mundo? Em vez de ter ISS, ICMS, PIS, Confins, IPI, ter um único imposto sobre valor adicionado, que é rateado pelos diversos entes? Isso significa acabar com os regimes especiais. Vários setores no Brasil pagam muito imposto, como a indústria, e outros pagam quase nenhum imposto. O comércio exterior é a mesma coisa. Vamos continuar sendo um país que procura uma proteção demasiada dos setores da produção doméstica achando que isso gera desenvolvimento quando isso só gera atraso tecnológico e empobrecimento?
A proteção da produção doméstica é uma agenda do fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Isso não gerou desenvolvimento. O Brasil do final dos anos 1970, anos 1980, viveu uma grave crise. Era uma economia fechada, cheia de incentivos, fabricação de chips no Brasil, a Lei de Informática, era o lema do governo [Ernesto] Geisel. Isso gerou atraso, retrocesso e todos os desequilíbrios microeconômicos que resultou na década perdida, juntamente com os desequilíbrios macroeconômicos. Essa agenda desenvolvimentista paradoxalmente é uma agenda que resulta na estagnação econômica e infelizmente, nos últimos anos, os desequilíbrios fiscais.
O Financista: Tentou-se implementar medidas de curto prazo ao longo deste ano para o ajuste fiscal. Dá para ter uma dimensão da profundidade da crise?
Lisboa: Primeiro, não houve ajuste fiscal. O [ex-] ministro [Joaquim] Levy teve um discurso de posse fantástico, mas, de novo, ele tem agenda de ministro e, como agenda de ministro, ela não anda. E o governo claramente ao longo do ano não se mostrou apoiando toda essa agenda de reformas. Achar que medida de curto prazo resolve os desequilíbrios fiscais é um equívoco. Receita de repatriação de recursos e aumento temporário de alíquota são irrelevantes para o ajuste fiscal. O problema não é o déficit deste ano ou do ano que vem. O problema é a trajetória de aumento do gasto público que leva o Brasil ao crescente endividamento. A questão é de trajetória que leva essa dívida a um patamar insustentável.
Esse é o desafio da nossa economia: interromper a trajetória de gastos. O aumento de receitas de tributos não enfrenta o problema fiscal. O problema brasileiro depende de você enfrentar a trajetória dos gastos. Se eu aumentar a receita este ano com novo tributo, daqui a um ou dois anos precisa de um novo imposto.
O Financista: Neste contexto em que o Banco Central vive um cenário de dominância fiscal, o Relatório de Inflação mostra que o BC não mira o centro da meta nem em 2017.
Lisboa: A condução da política monetária nos últimos cinco anos, desde 2009, esteve longe da adequada. O Banco Central sistematicamente errou nas previsões, errou inclusive no comezinho da política monetária que é a comunicação. Sobe o juro no fim do dia, para depois no comunicado seguinte dizer que parou. Assim mexe com a parte curta da curva de juros [futuros], não mexe na longa. Enfim, sinais contraditórios, idas e vindas, sistematicamente errando no combate à inflação. O Banco Central perdeu um pouco da credibilidade e uma das consequências é a maior dificuldade de combater a inflação. Na medida que o Banco Central é mais leniente com a inflação, o custo é a menor competência da política monetária nos últimos anos.
Agora, o BC se tornou menos relevante, sobretudo, pela política fiscal. A crise é grave. Acho que há um debate razoável sobre em que medida o problema fiscal tornou ”não fazer nada” a melhor política monetária. É um debate justificável dada a gravidade do problema fiscal. Agora, se o problema fiscal não for resolvido e continuar se agravando, podemos discutir dominância fiscal, mas a crise pode ficar pior. Meu temor é que, se não for enfrentada a agenda necessária, se em 2016 nós não vamos ter saudades de 2015.
O Financista: A melhor notícia para o ano que vem seria o governo efetivamente bancar o problema fiscal e não deixar isso nas mãos de um ministro?
Lisboa: Sim, uma agenda de governo, ampla, extensa e profunda. Se o governo acreditar, como no passado, em apenas uma meia dúzia de medidas cosméticas para agradar o mercado vai dar errado. Os problemas são reais, não é um problema de percepção de alguns agentes econômicos. O risco é repetir o grave equívoco dos últimos anos, que era tentar fazer uma maquiagem das contas públicas para anunciar um superávit primário diferente do real, achando que isso acalmaria alguns agentes e o problema estaria resolvido. Os problemas são reais. Não enfrentamos o problema fiscal, maquiaram-se os números, fizeram uma contabilidade criativa, adiaram pagamentos de forma indevida, enfim, tudo o que foi feito nos últimos anos resultou na grave recessão atual. Caso se continue a acreditar que trata-se apenas de anúncio de algumas medidas pra agradar um certo conjunto de agentes econômicos a crise vai ficar pior.
O Financista: O senhor aceitaria voltar para Brasília?
Lisboa: (risos) Eu tenho uma escola para tocar.
(Colaborou Thais Folego)
Fonte: O Financista – 23/12/2015