09/12/2015
Marco Aurélio Mello considera ‘inimaginável’ que presidente da Câmara tenha agido por retaliação
-BRASÍLIA- Pelo menos três dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmaram que não há problema legal na abertura do processo de impeachment, porém acreditam que Eduardo Cunha (PMDBRJ) não tem condições de comandar este processo.
Por presidir a Câmara, o deputado tem o dever de analisar o aspecto formal do pedido de impeachment e, a partir disso, autorizar ou não a abertura do processo contra a presidente Dilma Rousseff — independentemente de ele ser investigado ou não.
No entanto, esses ministros consideram que Cunha, diante das revelações da Lava-Jato de que ele está intimamente ligado ao esquema de desvios de dinheiro da Petrobras, deve sair da função. Embora já tenha defendido a renúncia de Cunha em outra ocasião, o ministro Marco Aurélio se limitou ontem a comentar que a crise econômica está cada dia mais profunda.
— Nós vivenciamos tempos muito estranhos. Vamos aguardar que as instituições funcionem. Temos uma crise, um impasse que provoca o aprofundamento da crise financeira e que repercute na mesa do trabalhador.
O ministro argumentou que o papel de Cunha no processo é meramente formal.
— Nessa parte da tramitação, a lei é clara. Havendo notícia da prática de crime de responsabilidade, se o documento não for irregular, cumpre ao presidente da Casa constituir uma comissão, que dará parecer e será submetido a um colegiado, para que diga se merece deliberação ou não. De forma positiva, volta a matéria à comissão para novo parecer, para o colegiado deliberar sobre o recebimento ou não — explicou Marco Aurélio.
Para o ministro, o presidente da Câmara não tem papel central na tramitação do processo de impeachment:
— O presidente personifica o colegiado. Acima do presidente está o colegiado. Ele não tem poder de abrir ou não abrir. O que ele tem que verificar é o aspecto formal. Aí ele tem que constituir a comissão. A atuação será do colegiado.
INCREDULIDADE
Indagado sobre o que achava das declarações que atribuíam a decisão de Cunha a uma retaliação ao processo de cassação que tramita contra ele no Conselho de Ética da Câmara, Marco Aurélio preferiu demonstrar incredulidade.
— Para mim é inimaginável. Não se pode atuar dessa forma. A atuação deve ser independente — declarou.
Outros dois integrantes do STF afirmaram, em caráter reservado, que Cunha não tem condições de presidir a Câmara, por conta dos processos a que responde. Para eles, ainda assim ele não perde a atribuição de analisar o pedido de abertura de processo de impeachment. Eles ponderaram que a decisão de Cunha não fere decisão tomada em outubro pelo tribunal, que suspendeu o andamento dos processos de impeachment contra Dilma com base no rito definido em setembro por Cunha. Ou seja, o processo não pode tramitar com esse rito específico, mas pode ser aberto.
Em 13 de outubro, a ministra Rosa Weber e o ministro Teori Zavascki, do STF, concederam três liminares suspendendo o rito definido por Cunha. Os ministros não mencionam qualquer proibição ao processamento de impeachment com a adoção de regras diferentes das fixadas por Cunha. As decisões foram tomadas a pedido de quatro parlamentares governistas, que ajuizaram no tribunal dois mandados de segurança e uma reclamação.
Integrantes do Ministério Público Federal cogitavam pedir o afastamento de Cunha da presidência da Câmara. O tema estava sendo avaliado por subordinados do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, diante do comportamento de Cunha em relação ao julgamento de seu caso no Conselho de Ética.
A reação do sapo
Jorge Bastos Moreno
A relação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, com a presidente da República sempre foi de cão e gato. Quando ele se candidatou a líder do PMDB na Câmara, pediu o apoio do governo, com a ajuda do vice Michel Temer. E conseguiu esse apoio prometendo fidelidade ao Palácio do Planalto.
Logo no primeiro momento, porém, Cunha traiu o governo e encaminhou uma série de projetos contrários aos interesses do Executivo. Em fevereiro, quando se elegeu presidente da Câmara, Cunha contou com o discreto apoio do Palácio do Planalto, apesar de o PT ter lançado candidatura própria. Em troca, prometeu encaminhar todas as matérias de interesse de Dilma.
Mas o que se viu em poucos meses no cargo foi exatamente o contrário: uma série de pautas-bomba, que até hoje dominam a discussão no Legislativo. Já na metade do mandato, o presidente da Câmara, numa decisão inédita na História republicana, anunciou seu rompimento com o governo, motivado pelas primeiras denúncias que davam conta de irregularidades cometidas por ele no âmbito da LavaJato. Eduardo Cunha atribuía todas as ações do Ministério Público Federal à interferência do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
Nessa relação, Cunha várias vezes exerceu o papel de escorpião. Com a investigação da Lava-Jato chegando à porta do Palácio do Planalto, foi a vez de Dilma fazer o papel de escorpiã, pedindo carona nas costas do sapo Eduardo Cunha para, juntos, atravessarem a lagoa de lama.
No momento em que as coisas se agravaram para os dois, Dilma prometeu ajudá-lo com os votos do PT no Conselho de Ética, mas a pressão das bases petistas, aliada a uma nota do presidente do partido, Rui Falcão, explodiram esse projeto. E Dilma foi obrigada a dar a ferroada definitiva no presidente da Câmara.
Cunha, ao anunciar a decisão de acolher o pedido de impeachment, cometeu o escárnio de afirmar que sua decisão é técnica e não política. Não é uma coisa nem outra. Apenas vingança.
Jogo sem vencedores
Cora Rónai
Houve um tempo em que se cultivavam aparências. Os canalhas disfarçavam a canalhice, porque não era de bom-tom ser canalha: em lugar das verdadeiras razões cafajestes, acenavam com motivos nobres e altaneiros, arvorados em salvadores da pátria.
A hipocrisia era, sabiam todos, a homenagem que o vício prestava à virtude. Bons tempos, aqueles. O espetáculo de canalhice explícita, chantagem e imoralidade a que assistimos na política enterrou de vez o bom nome da virtude.
Na sala de espera do aeroporto de Congonhas, onde a notícia da aceitação do pedido de impeachment chegou aos passageiros de vários voos atrasados, entre os quais eu me encontrava, houve, à minha volta, um murmúrio de quase comemoração — logo substituído por uma onda de desânimo e de impotência.
De que adianta tirar Dilma, se os outros continuam lá? De que adianta um processo supostamente moralizador que nasce da lama mais asquerosa em que já estivemos mergulhados? Há alguma virtude neste vício que sequer se envergonha? Por outro lado, como continuar com Dilma?
Não há vencedores nesse jogo nojento, mas os maiores perdedores somos nós, que um dia acreditamos num país digno.
PALAVRA DE ESPECIALISTAS
JOAQUIM FALCÃO PROFESSOR DA FGV DIREITO RIO
“A decisão do presidente Eduardo Cunha é uma reação à decisão do PT de tirar o apoio a ele no Conselho de Ética e também aos resultados da economia, que estão muito piores do que era esperado.
É uma apropriação, para benefício privado, da prerrogativa do presidente da Câmara. Essa apropriação é ilegal. Não é o processo de impeachment que é ilegal, mas sim a intenção do Eduardo Cunha de usar o impeachment para benefício próprio, para se salvar. É uma vingança.
Estamos diante de um cenário em que o imprevisível impera e essa imprevisibilidade vai durar durante todo o processo. Tem a Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal prendendo um senador (Delcídio Amaral). Eu prefiro não me manifestar se há embasamento ou não para a abertura de processo de impeachment porque ainda não analisei o parecer do Hélio Bicudo”.
RICARDO CALDAS CIENTISTA POLÍTICO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
“Há embasamento para o processo de impeachment. Primeiro, a decisão do TCU sobre as contas de 2014. O que a presidente Dilma fez foi improbidade administrativa. Ela argumenta que foi no mandato passado, mas ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal passa de um mandato para outro. E ela persistiu nos mesmos atos este ano. Além disso, há as doações recebidas das empresas da Lava-Jato. Por último, o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró mencionou em sua delação que a presidente sabia da venda da refinaria de Pasadena e o pressionou para concretizar a operação.
A motivação para a abertura do processo não é relevante, o que importa é se existem elementos técnicos.
O episódio da semana passada, o adiamento da reunião do Conselho de Ética, foi uma coincidência infeliz, mas esta semana não percebi nenhum ato do presidente da Câmara nesse sentido.”
ROBERTO ROMANO PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA DA UNICAMP
“Eu acho muito difícil, vai depender da reação do PT, do que resta da base aliada. Vai ser um teste importantíssimo. Temos também que ver o que a oposição vai fazer. Se (a oposição) vai se juntar ao Eduardo Cunha ou se vai continuar em cima do muro. O PSDB primou pela ausência.
Eu diria que foi uma confissão de Cunha de que está à beira da destituição. Em vez de ser uma manifestação de força, foi o último recurso que ele tinha.
Ficou mais do que evidente que ele está usando o cargo para obstruir as investigações, nesse absurdo quase obsceno da negociação entre o ministro Jaques Wagner, representando a presidente Dilma, e Cunha em torno do Conselho de Ética e do pedido de impeachment.
É um espetáculo indecoroso essa tentativa de troca, só aumenta a falta de credibilidade do Congresso. Virou um espetáculo circense, com todo respeito ao circo.”
FERNANDO A. DE AZEVEDO CIENTISTA POLÍTICO DA UFSCAR
“A aceitação do pedido de impeachment tem um vício de origem, de ser aceito por um presidente da Câmara processado e ameaçado de perder o cargo e o próprio mandato.
A decisão dele se manteve pendente por muito tempo, período em que chantageou oposição e governo. É um vício que contamina, independentemente da argumentação do impeachment.
Agora, independentemente de estar contaminado pela chantagem e pela represália (à votação do Conselho de Ética), o pedido desencadeia um processo político com dinâmica própria, sobre o qual a gente não pode prever o que vai acontecer. É um processo político que pode se avolumar, inclusive chegar às ruas, comandado pela oposição.
Antes, o FH usou a expressão de que o impeachment era uma bomba atômica. De fato, ele tem natureza atômica. Haverá grande desdobramento no cenário político, independentemente dos vícios de origem”.
HUMBERTO DANTAS CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER
“Enquanto Cunha for presidente da Casa, ele está legalmente instruído para apresentar um pedido de impeachment. Se a população gosta ou não gosta dele, se ele deveria ou não estar respondendo às acusações contra ele, nada disso altera o fato de que enquanto ele permanece no cargo a lei dá a ele o direto de abrir um processo. Vamos sair de uma frágil situação de cumplicidade que havia entre Executivo e o Legislativo para uma tensa situação de conflito aberto. Cunha segurava o impeachment desde que o PT não votasse contra ele no Conselho de Ética. Era um acordo frágil porque não considerava o andamento dos processos da Operação LavaJato na Justiça e questões associadas à própria opinião pública. Agora, uma das formas de o governo se defender será a distribuição de recursos por meio de lógica tradicional. O governo terá que negociar como nunca negociou.”
MARLY SILVA DA MOTTA PESQUISADORA DO CPDOC, DA FGV
“Esse processo de impeachment tem muito mais a ver com a questão política do que com o que a presidente fez no passado. Interessa menos o pecado que ela cometeu e muito mais a avaliação dos atores políticos envolvidos. Não tem uma Fiat Elba da Dilma (uma prova). E uma coisa foi o Collor, havia uma tranquilidade em relação ao vice Itamar Franco. Não é o mesmo que está acontecendo com o Michel Temer, que tem suas contas a acertar também.
Vão entregar três anos para o Temer? E se daqui a pouco o Jorge Zelada (ex-diretor da Petrobras) fizer delação premiada?
Depois vai ser o Cunha, e o presidente do Senado também está sendo investigado. Isso vai parar no (Ricardo) Lewandowski, na Cármen Lúcia (presidência do STF).
Claro que é vingança, ele viu que estava abandonado pelo Palácio do Planalto e pelo PT. Provavelmente o Eduardo Cunha será pego por usar o cargo para obstruir investigações.”
Fonte: O Globo – 03/12/2015