24/09/2014
A “parada técnica” da redução da desigualdade de renda verificada a partir de 2012 deve-se muito mais à desaceleração dos aumentos do salário mínimo – que acompanham o Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes, segundo a regra atual – do que a outros fatores, como a inflação em nível mais alto, diz Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e professor associado da FEA-USP.
Após fortes altas desde 2005, o salário mínimo teve uma expansão real de apenas 0,37% em janeiro de 2011, seguido por um aumento mais robusto, de 7,5% em 2012, mas desacelerando novamente para 2,6% em 2013 e 1,1% em 2014.
Mas não foi só a perda de fôlego do mínimo que contribuiu para a desigualdade parar de cair. Os salários dos mais qualificados, lembra o pesquisador, voltaram a subir mais do que o dos menos qualificados. Em 2013, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) divulgada ontem, a renda proveniente do trabalho dos 10% mais ricos aumentou 6,4%, enquanto o salário dos 10% mais pobres avançou bem menos, 3,5%, invertendo a relação que predominou entre 2005 e 2012, quando a renda da parcela mais rica aumentou em média 3,4% e a da mais pobre, 9,2%.
Menezes defende que a regra atual do reajuste de salários seja mantida à medida que tem beneficiado os trabalhadores menos qualificados, mas faz um alerta: se a demanda por mais qualificados continuar avançando nos próximos anos, a regra do salário mínimo pode começar a gerar desemprego e informalidade, o que exige meios mais robustos para garantir os ganhos de renda das famílias mais pobres, dentre eles o aumento da produtividade. “Precisamos de uma boa gestão da política macroeconômica para conciliar aumento do salário mínimo com inflação sob controle”, afirma ele.
Outro aspecto importante, diz, é a melhoria da educação . O governo federal apostou em alguns programas voltados para o aumento das matrículas no ensino universitário, mas poderia fazer “mais e melhor” se formulasse diretrizes para Estados e municípios aumentarem a qualidade do ensino básico, principalmente. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Desde 2012, a desigualdade parou de cair. A Inflação seria um dos fatores a explicar essa estabilidade?
Naercio Menezes Filho: A inflação tem permanecido mais ou menos constante nos últimos anos. O que tem acontecido na verdade é uma diminuição dos aumentos do salário mínimo, pois o mínimo é ajustado de acordo com a taxa de crescimento real do PIB. E como o PIB tem crescido menos, o mínimo tem reajuste menor. Além disso, os salários dos mais qualificados, de ensino médio ou mais, têm aumentado mais nos últimos anos, coisa que não acontecia. Esses salários caíram 20% em termos reais nos últimos 15 ou 16 anos. Entre 2012 e 2013, o salário dos 10% mais ricos aumentou um pouco mais do que a média (6,4%), enquanto o rendimento da parcela mais pobre cresceu menos, 3,5% em termos reais. Não sabemos os motivos por trás disso. Pode ser um desaquecimento na geração de empregos dos menos qualificados, uma tendência de valorização novamente da qualificação. Mas o fato é que no período mais recente, a queda da desigualdade estagnou. “Na raiz da desigualdade está o fato de que os filhos que nascem em famílias mais ricas têm mais oportunidades”
Valor: Mas, no Brasil, essa diferença entre salários de mais e menos qualificados não é muito grande se comparada a países desenvolvidos?
Menezes: Sim. Ao se comparar o trabalhador que está entre os 10% que mais ganham e os 10% que menos ganham, essa razão ficava tradicionalmente acima de 10 vezes no Brasil. É o retrato da desigualdade no Brasil: uma elite com salários equivalentes ao que se ganha em outros países e os menos qualificados, que ganham menos do que os similares nos outros países. Isso diminuiu nos últimos anos, está por volta de 8,5 vezes. O que se tem é uma diminuição da desigualdade no mercado de trabalho. Em outros países, essa taxa é mais baixa. Na Europa, essa razão fica em torno de cinco ou seis vezes.
Valor: Você vê algo de negativo nesse aumento grande de postos de trabalho no setor de serviços e para pessoas menos qualificadas?
Menezes: É um fenômeno que tem acontecido no Brasil. O país tem parcela grande da população composta de pessoas com pouca educação. Isso é um fenômeno, ficamos para trás. Nesse momento da história temos grande contingente de trabalhadores com baixa escolaridade. À medida que se inicia um processo de ganho de renda para eles e para suas famílias, é natural que essas famílias comecem a consumir serviços que antes não consumiam, sendo natural, portanto, que se aumente a demanda por trabalhadores menos qualificados. Para eles, que compõem grande parcela da população, esse movimento todo é altamente favorável. Resta saber se é sustentável. Para que ele seja, é preciso em algum momento aumentar a produtividade da economia.
Valor: Por quê?
Menezes: Como a taxa de desemprego já é muito baixa hoje em dia, não vai se conseguir crescer a taxas robustas empregando mais gente. O único jeito de crescer será via aumento de produtividade tanto na indústria quanto nos serviços. Esse aumento de produtividade faria com que o PIB per capita aumentasse, o que levaria à mais elevação de salário mínimo e redução de pressões inflacionárias. Se a inflação continuar crescendo ela pode corroer esses ganhos, especialmente dos mais pobres. Eu vejo um aumento da produtividade como essencial no curto e médio prazos para que se possa manter o processo de ganho de renda para famílias mais pobres, para que os reajustes reais do salário mínimo possam ser mantidos sem prejudicar o combate à inflação.
Valor: Não seria temerário falar de alteração na regra do mínimo se é justamente ele que vem permitindo a redução da desigualdade com mais força?
Menezes: Acho que é temerário. Acho que a regra tem que ser mantida à medida que depende da taxa de crescimento do PIB: se ele desacelerar o mínimo desacelera também. Acho que a regra tem beneficiado muito os trabalhadores menos qualificados. Mas existem dois problemas: como as aposentadoria e pensões estão indexadas ao mínimo, quando ele sobe, elas sobem também prejudicando o déficit da previdência que é perigoso no longo prazo, especialmente com o envelhecimento da população. E alguns trabalhadores que recebem essas aposentadorias não são os mais pobres e menos qualificados. O outro ponto é que se a economia começar a favorecer os mais qualificados novamente, com o fim da expansão dos serviços que demandam trabalhadores não qualificados, o aumento do mínimo pode começar a gerar desemprego e informalidade novamente porque a demanda por não qualificado, que hoje sanciona os aumentos do mínimo, não existirá mais – especialmente se as empresas começarem a inovar, aumentar a produtividade, com a volta da indústria. Então vai ser preciso monitorar esses aumentos do mínimo, que nos últimos anos trouxeram mais benefícios do que custos, para que não haja reversão do processo. Aumentando mais custos do que benefícios.
Valor: Para além do mínimo, o que fazer para se tornar uma sociedade menos desigual?
Menezes: A base de tudo está na educação. Não há dúvida de que deve ser a prioridade número um do país, melhorar a qualidade da educação pública, principalmente do ensino básico, à medida que aumenta a igualdade de oportunidades. Na raiz da desigualdade brasileira está o fato de que os filhos que nascem em famílias mais ricas têm muito mais oportunidades de desenvolvimento pessoal do que os filhos nascidos em famílias muito pobres, que têm mais dificuldade de ter acesso aos investimentos em capital humano desde os primeiros anos de vida, como leituras, viagens e outras interações. E depois entram em escola pública de pior qualidade, com sistema de saúde precário, transporte, criminalidade. Ao passo que filhos de famílias mais ricas têm situação mais confortável. A desigualdade começa aí. Se quiser fazer do Brasil uma sociedade mais justa, tem que tentar garantir igualdade de oportunidade independentemente da família que se nasça. Aí as pessoas já chegam ao mercado de trabalho mais iguais e não precisam de tantas políticas institucionais para garantir uma melhor distribuição de renda. “Um aumento da produtividade é essencial para manter o processo de ganho de renda para famílias mais pobres”
Valor: O governo vem adotando alguns programas para estimular o ensino superior e técnico, como Fies, Prouni e Pronatec. Como o sr. avalia essas iniciativas?
Menezes: Eu acredito que o governo poderia fazer mais e melhor. O foco tem que ser a qualidade da educação básica. Neste ponto, o resultado mais recente do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, principal indicador de qualidade da educação brasileira] foi bastante desanimador, porque mostrou que a meta de qualidade não foi atingida no Ensino Médio. Essa evolução é preocupante porque é nas etapas iniciais de ensino que se determina quem vai ingressar no ensino superior, se vai seguir por uma carreira de exatas, que poderia impulsionar a pesquisa e a tecnologia no país, por exemplo. Neste ponto, o governo federal tem descuidado.
Valor: Mas não são competências das administrações municipal e estadual?
Menezes: Sim, mas o governo federal poderia dar diretrizes para Estados e municípios aumentarem a qualidade do ensino, incentivos para que tenham metas, promovam reformas, melhorem a gestão. É possível mudar a forma como recursos são distribuídos, atrelando o repasse de verbas a boas práticas na educação.
Valor: O sr. é a favor de um percentual do PIB reservado exclusivamente para educação?
Menezes: Não. Não há tanta necessidade de aumento de gastos e 10% do PIB é um valor muito grande. Tendo em vista a transição demográfica, não há como conseguir esses recursos sem aumentar a carga tributária. Os royalties do petróleo não são suficientes para gerar esses 10% do PIB. E quando se põe muito dinheiro no sistema se diminui o incentivo para fazer reformas necessárias para melhorar a qualidade da educação. Então, na verdade, a gente poderia fazer como [o município cearense] Sobral que conseguiu aumentar muito a qualidade da educação, mesmo sendo um município mais pobre, ao aperfeiçoar a gestão do sistema sem aumentar tanto os recursos. Tem que mudar a mentalidade, a forma como a educação é gerida nos diversos municípios e Estados brasileiros.
Fonte: Valor Econômico – 19/09/2014.