19/04/2022
O mundo busca uma matriz de energia mais limpa para reduzir as emissões, mas a guerra entre a Rússia e a Ucrânia traz incertezas ao setor. O Brasil se encontra em uma situação mais confortável pelo amplo uso de renováveis. Mas e no futuro?
Claudia Cheron König, Leandro Gilio e Marcos S. Jank*
Com a emergência das ações globais para mitigar as emissões de gases de efeito estufa, o mundo passou a vivenciar um lento processo de transição energética. Como a atividade de geração de energia é responsável por cerca de 76% das emissões mundiais de GEE[1], grandes incentivos a energias renováveis e eletrificação de frota de veículos vêm sendo verificados e intensificados desde a última década, concomitantemente a um maior controle e restrição no uso de combustíveis fósseis e de outras fontes emissoras.
No entanto, os efeitos do conflito entre a Rússia e a Ucrânia expuseram que o mundo ainda segue altamente dependente da energia fóssil e que os investimentos realizados em renováveis até o momento não foram implementados em velocidade suficiente para suprir a demanda crescente por energia, além do problema de essas fontes serem, na sua maioria, intermitentes, pois a disponibilidade de sol, água, vento e biomassa para a produção de energia depende das forças da natureza, não sendo contínua e segura o tempo todo.
Atualmente, verifica-se que o mundo segue o curso de uma crise energética que não é resultado da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas que certamente tem sido ampliada pelo conflito. A participação da Rússia no fornecimento internacional de energia faz com que sua importância econômica supere amplamente seu PIB relativo, e os embargos impostos ao país vêm causando grande distorção de preços.
A Rússia, em 2021, foi o maior exportador global de gás natural, o terceiro de carvão e o quarto de petróleo, respondendo por grande parte da demanda de energia da Europa e da China. Além disso, representa metade das importações de urânio dos Estados Unidos. A Rússia também é importante exportador de alumínio, cobre e níquel, metais essenciais para a produção de baterias e geradores, e domina o mercado de paládio, metal raro e chave para as indústrias automotiva e eletrônica.
Anteriormente à guerra, as restrições à geração de energia de base fóssil e a intensificação da transição energética elevaram fortemente a demanda por insumos e metais, que exigem grandes investimentos de longo prazo para maior produção — prejudicados no período de pandemia. Com isso, já se verificava que a oferta global não vinha acompanhado a velocidade da demanda.
Como resultado, observa-se grande turbulência nos mercados de energia e commodities de modo geral, o que vem impactando fortemente os preços globais. O índice geral de commodities da CRB (Thomson Reuters) [2] indica que os preços das commodities estão 36,5% mais altos do que no início de 2022. Cargas ociosas e preços altamente voláteis estão sobrecarregando a infraestrutura física e financeira do comércio de commodities. Alguns portos europeus estão severamente congestionados, prejudicando cadeias logísticas de produtos essenciais.
O cenário desafiador que se desenha não terá solução rápida, dado que a demanda e a oferta de energia são pouco elásticas. Apesar de os governos mostrarem urgência para a mudança para uma matriz energética mais limpa — não só pela emissão do CO2, mas também para se protegerem das oscilações de preços do petróleo —, a transição de fato ainda exigirá vultosos investimentos, uma vez que demandará infraestruturas e grandes volumes de metais que poucos países possuem.
Segundo estudo recente publicado pela revista The Economist, o preço de uma cesta de cinco minerais usados em carros elétricos e redes elétricas subiu 139% no ano passado e, para permanecer no caminho do Net Zero (ou seja, zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa), até 2030, a produção anual de veículos elétricos precisaria ser dez vezes maior do que no ano passado, sem falar na necessidade de estações de carregamento nas cidades e estradas. A base instalada de geração de energia renovável precisaria triplicar. Para isso, as empresas globais de mineração teriam que aumentar a produção anual de minerais críticos em 500%, sendo que os dez principais países fornecedores desses minerais teriam uma participação superior a 75% em todos os minerais. Ou seja, o trilema europeu da energia (clima, preço, dependência) está mais acentuado que nunca.
O Brasil, nesse contexto, encontra-se em uma posição relativamente confortável. O país apresenta 48% de sua matriz energética de base renovável, com grande destaque ao uso de hidroeletricidade, biocombustíveis e energias eólica e solar. No que se refere ao agronegócio, destaca-se o desenvolvimento da agroindústria sucroenergética e o amplo uso do etanol combustível em automóveis no país, um processo que teve início na década de 1970, com grande aporte governamental do programa Proálcool, em resposta à crise do petróleo na época. Hoje, a grande maioria dos veículos em nosso país já é flex, além de contarmos com misturas de 27% de etanol anidro na gasolina e 10% de biodiesel no diesel, de modo que não há necessidade de investimento em novas infraestruturas para a complementação ou substituição do uso da gasolina e diesel.
Além disso, nas últimas décadas, o etanol se revelou um grande ativo ambiental. O automóvel a combustão bicombustível (flex) comum, que hoje representa 86% da frota de veículos leves do país, emite 37 gramas de CO2 equivalente por quilômetro utilizando etanol. O híbrido flex, usando etanol, emite 29 gramas[3]. O elétrico a bateria, padrão europeu, emite o equivalente a 54 gramas de CO2 por quilômetro, considerando a matriz energética europeia atual. E, talvez por esse motivo, o movimento de eletrificação dos automóveis no Brasil ainda seja bastante incipiente.
Embora o etanol seja uma alternativa importante para o contexto presente do Brasil, hoje a indústria automotiva é global e o desenvolvimento de automóveis e motores exige investimentos que vão além da rentabilidade proporcionada pelo volume de vendas do mercado nacional. A eletrificação tem se mostrado mundialmente mais promissora e as grandes indústrias automotivas vêm abandonando gradualmente o desenvolvimento de veículos a combustão, o que coloca em xeque a viabilidade do uso de etanol no longo prazo em automóveis pelo Brasil, apesar dos benefícios ambientais claros — provavelmente, o Brasil (e o mercado brasileiro) não poderá remar contra a maré.
Ainda há o promissor desenvolvimento de veículos com células de combustível baseados no etanol, que alimentariam baterias e que, atualmente, são vistos como um próximo passo tecnológico pós-eletrificação. Mas essa tecnologia ainda é nascente e sua viabilização em larga escala ainda exigirá grandes investimentos.
Apesar do atraso, o Brasil terá de embarcar no caminho da eletrificação automotiva. No entanto, o uso de etanol no presente permitirá que o país absorva esse mercado em um momento de maior maturidade, dado que dispomos de amplas alternativas eficientes e sustentáveis.
* Claudia Cheron König é pesquisadora do Insper Agro Global.
* Leandro Gilio é pesquisador do Insper Agro Global.
* Marcos S. Jank é professor de agronegócio e coordenador do Insper Agro Global.
[1] World Resources Institute/Climate Watch/CAIT (2018)
[2] CRB Commodity Index Thomson Reuters é um índice calculado usando a média aritmética dos preços futuros de commodities com rebalanceamento mensal. O índice é composto por 19 commodities: alumínio, cacau, café, cobre, milho, algodão, petróleo bruto, ouro, óleo para aquecimento, suínos magros, gado vivo, gás natural, níquel, suco de laranja, gasolina RBOB, prata, soja, açúcar e trigo. Essas commodities são classificadas em 4 grupos, com pesos diferentes: energia: 39%, agricultura: 41%, metais preciosos: 7%, metais básicos/industriais: 13%.
[3] Levantamento realizado pelo CTC e a UNICA. A medição, que é feita em g/CO2 por km rodado, ocorre desde o momento da produção do automóvel e de todos os seus componentes até o veículo em movimento e completamente abastecido, levando em conta também o processo de extração do combustível.