Quando me perguntam sobre as relações entre ética e vida pública, no Brasil, sempre me vem à mente a sentença de Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, segundo a qual a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós.
Buarque escreve nos anos 30. Em um país que acabara com a escravidão há menos de quarenta anos, com 60% da população analfabeta, e que deslizava melancolicamente para a triste ditadura do Estado Novo.
Nas décadas que se seguiram, o Brasil realizou alguns prodígios. Nossa democracia surgiu sólida e inquestionada, da transição dos anos 80. Consolidamos uma justiça eleitoral confiável, instituições de Estado independentes e uma imprensa livre e atuante. A frase de Sérgio Buarque, não obstante, prossegue como uma sombra sobre nossas cabeças.
Foi Roberto DaMatta, nos anos 80, em seu O que faz o Brasil, Brasil?, que expressou nosso mal-estar. Sua tese é de que nossa civilização tropical ergueu uma espécie de dupla fidelidade. Soubemos produzir um estado de direito igualitário, exaustivamente regulado, mediado por toda a sorte de relativizações e gradações. Na frase de DaMatta, escolhemos viver em uma sociedade que fez, de modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do pode com o não pode.
É o Brasil do indivíduo abstrato e do sujeito de carne e osso. Do tipo que é condenado a 20 anos de cadeia, por assassinato, mas sai com um sexto da pena, com um bom comportamento e um bom advogado; do serviço público formalmente meritocrático, no qual só se entra por concurso, mas forrado de privilégios. Das licenças-prêmio e de todos os tipos, das aposentadorias especiais, da recusa quase sagrada de qualquer tipo de avaliação de desempenho.
Das leis que fazemos, as mais duras, mais logo damos um jeito. Do caixa dois, nas campanhas eleitorais, crime passível de perda de mandato, mas que relativizamos. Dizemos que todo mundo faz, que é apenas dinheiro não contabilizado. Da CPMF, que criamos de vez em quando, pra tapar o rombo do orçamento, fazendo acreditar que é dinheiro para a Saúde. Do jeitão que criamos para o governo funcionar, distribuindo emendas ao orçamento, para os deputados, junto com milhares de cargos comissionados, no que apelidamos elegantemente de presidencialismo de coalizão.
Ultimamente nos tomamos de uma paixão aguda, na vida pública. Nosso passionalismo parece ter transbordado dos campos de futebol para o mundo da política. Em parte, isso é bom. Há uma nova cidadania crítica e ativa, no País, organizada em movimentos de rua, opinando e fazendo barulho, na internet.
O ponto é que a ética, em algum momento, exige certa distância do julgamento passional. Superar a corrupção, no Brasil, exigirá que muita gente abandone por um momento sua fidelidade ao partido ou seja o que for, e faça uma escolha pela República. Se não pode fazer pedaladas fiscais, então não pode. Se não pode gastar mais do que arrecada, então não pode. Se não pode pedir propina para liberar um contrato na Petrobrás, então não pode, mesmo que seja pela causa. Vai exigir um pouco de frieza tudo isso. Certo rigor, tão comum nas democracias maduras, e que aos poucos vamos incorporando como um traço da nossa cultura pública.
Fonte: Estadão.com – 05/10/2015