O que o episódio histórico narrado no filme “O Povo contra Larry Flynt” pode nos ensinar sobre o princípio da liberdade de expressão? Análise da questão tomando como referência os argumentos apresentados no Capítulo II de “Sobre a Liberdade”, de John Mill
Enzo Ambrozano
Na obra distópica de George Orwell, 1984, a liberdade individual é restrita ao Estado e cabe a ele decidir os limites de expressão e até do pensamento do indivíduo. Embora distante de tal realidade fictícia, em O Povo contra Larry Flynt, Larry Flynt, dono da revista pornográfica Hustler, interpretado por Woody Harrelson, sofre com a repressão do governo frente à sua liberdade de imprensa em produzir e publicar conteúdos que fugiam das crenças e do conceito de banalidade da época. Assim, ao longo do filme somos obrigados a recorrer aos princípios da liberdade de expressão cuja ideia é bem expressa por meio do livro Sobre a Liberdade, de John Mill. O elo criado entre ambas as produções nos permite traçar conclusões que tangenciam os limites da liberdade, as crenças centradas no individualismo e sua refutabilidade, o questionamento às verdades preferenciais que limitam a liberdade de expressão e a interferência do Estado nestes aspectos.
O processo encaminhado pelo influente líder religioso Jerry Falwell contra Larry Flynt, que a partir de uma charge na qual o pastor pratica sexo com sua própria mãe condenou Flynt por constrangimento público, nos provoca a questionar qual o limite do humor. Seria este realmente humor, se tem sua liberdade repressa a satirizar questões sociais e perversas? Mill diria que a publicação não é nociva à sociedade e não instiga nenhuma violência ou danos severos ao indivíduo nem sequer a um grupo social expandido. Em convergência a Mill, o jovem advogado de Flynt no filme vai além e diz que a situação pornográfica retratada se distancia tanto da realidade que nem sequer a faz socialmente relevante.
Em seu livro, John Mill sugere que as preferências a determinado assunto inibem o pensamento crítico sobre o mesmo, desconsiderando as razões que levaram o indivíduo a pensar ou agir de determinada forma. Aproximando à realidade do filme, a igreja condena a liberdade de Larry Flynt construindo sua condenação baseando-se em princípios morais religiosos, desprezando a análise crítica sobre a situação, apoiando-se puramente naquilo que já era preferencial ao seu ponto de vista, refletindo-se então no individualismo. Compreendemos, assim, que somente após a resistência a uma série de potenciais objeções refutáveis sem intermédio da censura, que se pode afirmar uma crença como verdadeira, e mesmo assim, deve-se estar aberta ao debate à eternidade. Caso contrário, estará sujeita à estigmatização social, motivo pelo qual, segundo Mill, a igreja católica se contradiz, já que fruto disso suas verdades perderam força e fizeram com que as crenças não sejam aplicadas por seus seguidores em suas respectivas condutas.
Não importa o quão impopular seja uma crença, ela deve ser considerada e não pode ser censurada ou repudiada. No filme, a impopularidade da extravagância e perversidade da revista Hustler, de Larry Flynt, o impede de ganhar suas primeiras provas nos tribunais. Ao longo do drama, percebe-se que, com o apoio que o poder de liberdade recebe dos grandes meios de comunicação, como do New York Times, faz com que a causa seja relevante nos tribunais. Segundo Mill, a percepção de que uma opinião popular é refutável baseando-se em uma opinião impopular abre espaço ao melhor entendimento e análise de questões futuras, permitindo melhores introspecções, que antecipam conclusões precipitadas. No filme, o advogado de Larry menciona que “Eu não gosto do que ele (Larry Flynt) faz. Mas o que eu gosto é de viver em um país onde você pode tomar suas decisões sozinho. Eu gosto de viver em um país onde posso comprar a Hustler e a ler se eu quiser; ou jogá-la no lixo se eu quiser”, exemplificando dessa forma o poder do livre arbítrio.
Dessarte, conclui-se no filme que, sob a Primeira Emenda dos Estados Unidos, o interesse em proteger a liberdade de expressão sobressaiu à necessidade de interferência do Estado em proteger figuras públicas de discursos patéticos, concordando que este não oferecia nenhum perigo real a tal. John Mill desenvolve que a lei não deve restringir a opinião pública, cuja exceção apenas é válida no objetivo de limitar ações potencialmente nocivas à sociedade, o que definitivamente não ocorre em O Povo contra Larry Flynt. Portanto, o poder de se desprender das garras de um poder ou opinião imposta, determinada como verdadeira independentemente dos meios utilizados, define a liberdade de expressão.

Enzo Ambrozano
Referências bibliográficas:
Mill, John Stuart. Da liberdade de pensamento e discussão, Sobre a Liberdade. Tradução: Denise Bottmann. 2016, Porto Alegre: Coleção L&PM Pocket. Capítulo 2, pág. 31 a 85.
Filme: O Povo Contra Larry Flynt.