29/05/2014
Estudiosos da segurança pública do Brasil e do exterior, reunidos pelo Estado em parceria com o Insper, na última sexta-feira, concordaram na avaliação de que é preciso repensar os valores em que se baseiam as políticas de combate ao crime no País e no mundo. Entre as conclusões de consenso, a de que é necessário reduzir o tempo que os condenados passam na prisão, não o contrário. Da mesma forma, houve unanimidade na avaliação de que a “guerra às drogas” e a atitude de tolerância zero em relação ao uso de entorpecentes fracassaram: o consumo mundial de cocaína aumentou.
Foram apontados exemplos bem avaliados de legalização parcial de maconha em alguns Estados dos EUA, como o Colorado, assim como evidências de que os custos do combate ao tráfico só mudaram de país. O Plano Colômbia, baseado em repasses do governo norte-americano para a erradicação de plantações de coca, “se provou ineficaz e custoso”, segundo o colombiano Daniel Mejía.
As penas alternativas, nas quais os condenados não vão para a cadeia, foram consideradas mais adequadas para delitos leves. “Não tenhamos a ilusão de que vamos diminuir a violência aumentando a progressão da pena”, disse Theo Dias, da Escola de Direito da FGV. A unificação das Polícias Civil e Militar é vista como necessidade urgente. Para especialistas, o trabalho conjunto, com base em dados de inteligência, é uma das maneiras de reduzir a violência.
Crime é doença sem diagnóstico
Como diminuir os homicídios? O Brasil é o 7º país do mundo com o maior índice de mortes por 100 mil habitantes – perdendo para El Salvador, Ilhas Virgens, Trinidad Tobago, Venezuela, Colômbia e Guatemala. Também tem a quarta maior população carcerária. Os presídios estão lotados (com excedente de 71,9% de presos). E nunca o país prendeu tanto como no último ano.
Discutir os homicídios é só o começo, o fio de um grande novelo. Em segurança pública tudo está interligado. Os brasileiros estão enroscados nesse emaranhado, pois são obrigados a conviver diariamente nas ruas com a violência. Os especialistas da área, cada vez mais, tratam o tema como se fossem médicos investigativos, que procuram os males para uma grande doença: o crime.
“Vivemos uma pandemia de morte de jovens negros”, diz Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa da Violência do Brasil. O assassinato de crianças e jovens, de 1 a 19 anos, cresceu 375,9 % nas últimas três décadas. Waiselfisz compara a cultura da violência a um vírus que contamina o ambiente doméstico, as ruas, e até mesmo às corporações armadas, organizadas para proteger o indivíduo.
Diagnóstico. “É difícil discutir segurança pública sem um envolvimento emocional”, diz Luciana Guimarães, fundadora do Instituto Sou da Paz, ONG que trabalha há 15 anos na redução da violência. “Mas é preciso criar um distanciamento para uma discussão racional. Uma medida importante, base para a solução dos problemas, pode ser tomada a curto prazo.”
Luciana se refere a produção de um diagnóstico da criminalidade no País. “Falta informação. Não dá para diagnosticar um doente se você não conhece os sintomas, e o meio ambiente em que ele está exposto. Quando se fala em roubo, por exemplo, é necessário conhecer o grupo de risco, o perfil e como se comporta o ladrão.”
Tecnologia. O Instituto Sou da Paz chegou a fazer uma pesquisa nas delegacias de São Paulo, a partir dos Boletins de Ocorrência, para conhecer mais sobre os roubos na capital. “Achamos que seria um bom começo”, diz Luciana. “Porém, cada delegacia faz o boletim de um jeito. Não há um padrão na informação. E esse seria o primeiro passo para cruzar dados.” A pesquisadora também notou que não há nenhum sistema de busca na polícia civil. A equipe precisou ler documento por documento para colher as informações necessárias. Equipar a polícia com ferramentas de análise, ter profissionais com melhor formação seria o começo da mudança.
Mesmo sem a infraestrutura necessária, a turbulenta metrópole de São Paulo é hoje a cidade menos perigosa do país. Mas isso não significa que virou um mar de tranquilidade. O registro de crimes violentos (homicídio doloso, estupro e roubo de veículos) aumentou 35,2% no primeiro trimestre de 2014, em comparação com o mesmo período de 2013, de acordo com a Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo.
“Nunca se prendeu tanto como agora”, diz a socióloga Camila Dias, professora da Universidade Federal do ABC. Prender apenas não resolve. “É preciso trabalhar na base: prevenção do crime, e inclusão dos egressos da cadeia e das famílias as quais pertencem. “Tem preso que sai apenas com a passagem do ônibus. Sem perspectiva, ele vai reincidir.Vai recorrer ao PCC,e o Estado não consegue cortar o ciclo vicioso.”
De acordo com os especialistas, o combate a violência no Brasil vai depender da realização de um diagnóstico profundo da realidade brasileira. E isso pode ser feito em curto prazo, se houver investimentos nas polícias. “Não precisamos de heróis, mas de profissionais bem preparados e equipados”, diz Luciana. “Também é necessário planejamento. Saber onde se quer chegar. Com recursos para conhecer melhor o crime, o trabalho do policiais pode orientar legisladores, e até mesmo a prefeitura, em cuidados básicos como iluminação – ferramenta importante na segurança.
ANÁLISE: João Manoel Pinho de Mello
Menos achismo e mais evidência científica no debate Há duas correntes no debate sobre violência. Para os “mano dura”, o crime é uma escolha e a impunidade seu motor. Implícitas estão as suposições de que os bandidos agem racionalmente, além da crença na incapacitação, isto é, um bandido preso é um amenos para delinquir. O outro lado diz que o crime é “socialmente construído”, em particular pela pobreza e a desigualdade. Há também um ceticismo sobre o efeito dissuasivo das penas. Ambos têm razão, e moderação contribui para um debate produtivo. Mas o que falta não é moderação, e sim qualificação. Salvo honrosas exceções, os argumentos não são informados por evidência científica. Exímios comentadores em outros temas confundem a correlação com a causa ao falar de violência. Preso à ideologia, o debate é nefasto à política pública. Afinal, os argumentos não ultrapassam as platitudes de discussão de bar. Exemplo: a queda expressiva dos homicídios em São Paulo. Uma banda acha que foi endurecimento do policiamento e o aumento do encarceramento; outra atribui à melhoria nas condições socioeconômicas. Na falta de evidência, um achismo é tão bom quanto o outro. Por que a indiferença à evidência científica? Em parte faltam dados experimentais.
A queda dos homicídios em SP foi acompanhada de aumento no encarceramento, que já estava subindo desde meados dos anos 1990, quando os homicídios ainda subiam fortemente. Maior encarceramento é manifestação de policiamento mais efetivo, o que aumenta tanto a dissuasão como a incapacitação dos bandidos. Mas encarceramento também é consequência do crime. Há mais prisões onde há mais crime. Pode-se diminuir a dúvida sorteando quais estados aprisionam mais e menos. A aleatorização permite interpretar as diferenças como o efeito causal do encarceramento. Infelizmente, ou não, sortear quase nunca é possível. A falta de experimentação não é desculpa para o vale tudo. A literatura mediu o efeito incapacitação usando técnicas não experimentais que imitam experimentos.
Os pesquisadores Paolo Buonanno e Stephen Raphael, em artigo publicado na American Economic Review, mostram que o perdão coletivo de presos aumentou o crime na Itália, o que sugere que o efeito incapacitação é grande. Em artigo publicado no Journal of Political Economy, os especialistas Rafael Di Tella e Ernesto Schargrodsky mostram, para criminosos e crimes parecidos, que a reincidência é maior entre os que vão para a cadeia do que entre os que recebem penas alternativas, como tornozeleira. O que fazer? Prender mais seletivamente porque cadeia ao mesmo tempo que incapacita é escola do crime? Ou prisão perpétua para todos, para evitar a reincidência causada pela escola do crime? A sociedade deve decidir.
A ciência orienta quanto aos fatos científicos. Incapacitação e reincidência são apenas alguns dos temas de estudos. O que é criminogênico, a droga ou sua proibição? É melhor espalhar o efetivo policial para dirimir o deslocamento do crime, ou concentrá-lo em áreas problemáticas? O Fóruns Estadão 2018 lançará alicerces para um debate sobre segurança pública baseado em evidência.
*DOUTOR PELA UNIVERSIDADE STANFORD E PROFESSOR TITULAR DO INSPER. É COORDENADOR DA AMERICA LATINA CRIMEAND POLICY NETWORK DA LATIN AMERICAN AND CARIBBEAN ECONOMIC
Walter Silva Gomes
PM
Há 11 anos na Polícia Militar, o soldado paulistano, de 41 anos, toma alguns cuidados para não ser vítima de criminosos quando está de folga. “Evito, por exemplo, o uso de farda quando saio do quartel. É preciso ter bom senso, principalmente quando se está em regiões que têm muito bandido.” Gomes trabalha no Centro de Operações da Polícia Militar, na zona oeste.
Preso por engano
Estudante
José (nome fictício), de 17 anos, passou 29 dias na Fundação Casa, na Vila Maria, acusado de roubo, quando um grupo de jovens bateu o carro na frente do prédio onde mora, na Bela Vista, região central de São Paulo. Na hora do assalto, ele estava em casa, mas foi abordado pela polícia na rua. “Não foi a primeira vez que me pararam por causa da minha cor e do jeito de me vestir.”
Fonte: O Estado de S. Paulo – SP – 28/05/2014