28/02/2013
O banco estatal nunca emprestou tanto. Mas boa parte de seu crédito barato, em vez de estimular a inovação, serve para grandes grupos fazerem mais do mesmo – as vezes,com resultados desastrosos. Talvez seja a hora de reler a cartilha
POR MAIS DESPOSSUÍDO QUE SE CONSIDERE TODO CONTRIBUINTE brasileiro é hoje dono de parte da maior empresa produtora de carne bovina do mundo. E tem uma participação na maior fábrica de celulose do planeta. E outra em uma das maiores produtoras de leite do país. O contribuinte pode até se achar um desvalido, mas ele tem dinheiro para emprestar para a maior das fabricantes mundiais de cerveja. E para uma das maiores mineradoras da Terra. E para um universo tão heterogêneo de empresas que abraça desde a Petrobras até academias de ginástica. Essa generosidade, cuja existência a maioria dos brasileiros certamente ignora, tem sido o ofício de fé do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social nos últimos anos. O BNDES, que completou 60 anos em 2012, jamais emprestou tanto dinheiro em sua história Desde 2008, quando as operações de financiamento e compra de participações em empresas do banco embicaram em direção às nuvens, os desembolsos somam 700 bilhões de reais, É mais, por exemplo, que toda a riqueza gerada em um ano pela economia da Dinamarca, um país rico.
Com crédito farto e barato, essa nossa Dinamarca estatal manteve a economia rodando no momento em que os efeitos da crise internacional se instalavam por aqui. Em 2009 o produto interno bruto brasileiro teve retração de 0,3% um soluço se comparado com o recuo de 3,4% do mundo desenvolvido. Se o BNDES ajudou a evitar problemas maiores na economia durante a crise, tudo certo, então? Infelizmente. o raciocínio não se encerra na conclusão simplista. Os resultados financeiros mais recentes da estratégia adotada pelo banco revelam um quadro desolador para os brasileiros que são seus sócios anônimos – inclusive por meio do FW1do de Amparo ao Trabalhador, uma das fontes de dinheiro barato da instituição. Em 25 de fevereiro, ao publicar seu balanço de 2012, o BNDES mostrou queda de 10% no lucro, para 8,2 bilhões de reais. Muito pior foi o retorno de seu braço de participações em empresas o BNDESPar – nessa divisão, o banco teve perda de 93% no retorno financeiro, que caiu de 4,3 bilhões. em 2011, para 300 milhões de reais. no ano passado.
AJUDA DO TESOURO
O BNDES atual começou a tomar forma em 2007 não por coincidência foi o ano de início da presidência de Luciano Coutinho. economista da ala dos chamados “desenvolvimentistas .. – e um dos arquitetos, por exemplo, da reserva de mercado no setor de informática no governo Sarney. que manteve o acesso dos brasileiros à tecnologia restrito a produtos defasados e caros até que o mercado fosse aberto, no governo Collor. Desde 2008. o “desenvolvimentisrno” foi materializado pela forte injeção no BNDES de recursos do Tesouro Nacional. Nos últimos cinco anos. foram transferidos 330 bilhões de reais. É certo que a atuação do banco, reforçada pelo Tesouro. foi providencial para contrabalançar a estiagem de crédito. Assim. em plena crise. o BI\\\\DES pôs 63 bilhões de reais na atividade industrial (63% mais que no ano anterior).
E que atividade industrial era essa? Entre outras coisas, era a expansão do frigorífico JBS no exterior. O BNDES comprou 3,5 bilhões de reais em debêntures da companhia, posteriormente transformadas em ações, para financiar compras feitas pelo grupo nos Estados Unidos. E, assim, O despossuído contribuinte brasileiro virou coproprietário da maior produtora de carne bovina do mundo. Do ponto de vista legal, não há impedimento para a operação. Mas, do ponto de vista de estratégia do país, a decisão mostra que o BNDES está fazendo o que não deveria. “O governo está escolhendo os setores que quer que cresçanl – e, dentro desses setores, as empresas de sua preferência”, diz Márcio Garcia, professor do departamento de economia da PUC do Rio de Janeiro. “Com isso. o banco está assumindo o papel de escolher, que é justamente aquilo que os mercados sabem fazer melhor.”
O papel de um banco público de fomento. como o BNDES, é muito mais seminal do que o de fazer nascer a maior fábrica de celulose do planeta (a Eldorado, localizada em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul- aliás, também ela controlada pelo JB5). Esses bancos devem oferecer financiamento a setoreschave da economia para os quais even-tualmente não haja crédito privado ou atuar como lanceiros das grandes guinadas na economia de um país. O KfW, banco de desenvolvimento da Alemanha, foi criado em 1948 para atuar na reconstrução do país após a Segunda Guerra Mundial. Depois, nos anos 90, o banco foi igualmente crucial nos esforços de reunificação da Alemanha pósqueda do Muro de Berlim. A Coreia do
Sul criou o Korea Development Bank em 1954. Na década seguinte, o KDB começou a injetar rios de dinheiro em grandes grupos empresariais do país. O caso coreano costuma ser citado por quem defende a estratégia atual do BNDES. Mas, lá, estava em gestação a reforma completa da economia coreana, um país pobre na época. Grupos como Samsung, então do setor têxtil, só recebiam financiamento se o dinheiro fosse para projetos ligados a inovação, como a de eletrônica. Essa estratégia, somada ao fortíssimo investimento em educação feito na mesma época, criou um dos países mais inovadores do mundo. Os coreanos gastam hoje 3,3% do PIE em inovação – mais que o triplo do Brasil. “Temos uma visão torta do que a Coreia fez no passado”, diz o economista Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Um dos exemplos da estratégia duvidosa do BNDES é a tentativa de ungir um campeão nacional do leite. Em 2011, O BNDES aportou 700 milhões de reais na criação da LBR, uma das maiores produtoras de leite do país. A empresa, dona das marcas Parmalat, Poços de Caldas e Bom Gosto, entrou em apuros a ponto de tirar de linha um terço das marcas e fechar 11 das 31 fábricas. A LBR recorreu à recuperação judicial em 15 de fevereiro. O banco já informou que deu baixa contábil de 865 milhões de reais, referentes ao prejuízo com o investimento frustrado. O revés soma-se a outros que levaram o BNDESPar a fazer provisão de 3,3 bilhões de reais contra perdas em 2012 – no acumulado desde 2008. são 4,6 bilhões reservados.
Casos como o da LBR mostram como é grande a diferença entre ser “prómercado” – ou seja. a favor da livre con-corrência, independentemente do potencial de cada um dos competidores – e “pró-empresa”. Ao apostar numa única empresa do setor lácteo, da qual detém uma fatia de 30%. o BNDES acreditava que reformaria um setor inteiro. A realidade foi mais forte do que a utopia. Diz o economista Steven Horwitz, professor da Universidade Saint Lawrence, de Nova York: “Se um governo beneficia uma empresa, as concorrentes gastarão tempo e dinheiro com lobby para receber o mesmo benefício dado à eleita”. (Veja entrevista na pág 131.)
Não é só dentro dos setores beneficiados pelo dinheiro farto e barato do BNDES que a competição fica fora de prumo. Também no próprio mercado de crédito a briga fica desigual. Cada empréstimo do banco estatal a uma grande empresa é, possivelmente, uma captação a menos no mercado de títulos. Mastodontes corno Vale e Ambev, duas das empresas que mais receberam crédito do BNDES nos últimos anos, fizeram o que lhes cabia: foram atrás do dinheiro mais barato que pudessem encontrar. Qual o efeito de empresas desse porte – com capacidade de acessar os mercados de capitais para financiar suas atividades – terem à mão dinheiro que deveria ser reservado para modernizar a economia brasileira. A concorrência do mercado de capitais com o BNDES é direta e desigual”, diz um executivo do setor financeiro ouvido por EXAME. “Não dá para concorrer com um empréstimo subsidiado pelo governo.”
O governo deu sinais de que não será a ama de leite do BNDES para sempre. O secretário do Tesouro. Amo Augustin. já informou que os repasses neste ano serão menores que os 55 bilhões de reais de 2012. É o inicio de urna mudança nas cartas do jogo? O pano de fundo, pelo menos, não parece perto de ser revisto. Internamente, os executivos não admitem que o BN”TIES tenha elegido setores prioritários. Os recursos, argumentam, estão acessíveis a todo tipo de empresa e setor. Basta um bom projeto para pleitear os financiamentos. Embora pareça um critério justo, é tudo que um banco de desenvolvimento não deveria fazer. Sérgio Lazzarini, professor da escola de negócios Insper, conduziu uma pesquisa que traçou paralelos entre os desembolsos do BNDES e seu impacto sobre a decisão de investimento das empresas. Conclusão: o que as empresas querem do BNDES é seu dinheiro barato, e não apoio a projetos inovadores. Ou seja, elas continuam fazendo mais do mesmo, só que com financiamento público. Sendo assim. como estimular a inovação – um tema caro aos bancos de desenvolvimento mundo afora – se essa exigência não existe na hora de aprovar o crédito? “O dinheiro dos bancos de fomento tem de criar algo novo na economia”, diz Lazzarini.
O BNDES jamais emprestou tanto e nunca teve gama tão ampla de setores sob seu guarda-chuva. Repete-se a per-gunta: onde está o problema? A economista Alice Amsden. professora do Massachusetts lnstitute of Technology, mor-ta em 2012, enxergou a resposta. Após pesquisar diferentes bancos de fomento, entre eles o BNDES. ela concluiu: mais que um eventual investimento mim, o maior pecado desses bancos é não enxergar seu verdadeiro papel- e, sem alvo claro, acabam atirando crédito para todo lado. Talvez seja a principal lição a ser assimilada pelo BNDES ..
O MELHOR É A COMPETIÇAO
PARA O ECONOMISTA AMERICANO STEVEN HORWITZ, DEFENDER AS ATIVIDADES DE UMA COMPANHIA PODE, SIM, SER ANTICAPITALlSTA
O economista americano Steven Horwitz, professor da Universidade Saint Lawrence, em Nova York, ganhou notoriedade com uma série de vídeos na internet em que rediscute cânones econômicos, como “estamos mesmo ficando sem recursos naturais?” Na série, com mais de 1 milhão de visualizações, ele diz que ser “próempresa” não é o mesmo que “pró-mercado”, “Urna empresa quer o livre mercado, mas quer também mais vantagens que o concorrente”, diz. Horwitz falou a EXAME.
A diferença entre “pró-empresa” e “pró-mercado” não está só no jogo de palavras?
Existe diferença, sim. Pessoas que são exclusivamente pró-empresa acham que tudo que uma empresa quer – um abatimento de imposto, por exemplo -, ela tem de ter. Ser pró-mercado é o oposto disso. É acreditar que nenhuma companhia tem direito a receber tratamento ou favores diferentes daqueles recebidos pela concorrência.
O que acontece com a economia de um país quando ela se torna pró-empresa?
Toda a economia começa a girar em torno disso. Empresas preteridas em uma medida como o abatimento em um imposto gastam tempo e recursos para ter a benesse que a concorrente conseguiu. Temos observado uma onda crescente de economias pró-empresa no mundo nos últimos anos.
Onde?
Os Estados Unidos podem entrar nessa lista, dado o avanço de subsídios e de pacotes de socorro financeiro. Nos mercados emergentes. isso também se percebe.
Há quem diga que o Brasil está se tornando mais “pró-empresa” por causa de uma política de criar gigantes nacionais por meio de crédito subsidiado. O senhor concorda?
A situação brasileira é um grande exemplo de uma economia que escolhe ser pró-empresa em vez de prómercado. Afinal, como se vão escolher as empresas “certas” para receber os beneficios? Geralmente as “campeãs” são as que têm as melhores conexões políticas.
Os defensores da política dizem que estimular a criação de gigantes nacionais prepara o país para enfrentar a competição global. Isso faz sentido?
Se o governo quer uma economia forte, tem de pensar no melhor para todos os cidadãos. E o que é melhor? Comida, roupa e coisas do gênero melhores e mais baratas. Isso só se consegue se as empresas estiverem constantemente expostas à competição.
Fonte: Revista Exame – SP – 28/02/2013