08/02/2022
O professor Fabio Orfali diz por que a matemática é um dos conhecimentos fundamentais para os graduandos em Ciência da Computação
Leandro Steiw
O professor Fabio Orfali participou ativamente da implantação do curso de Engenharia no Insper, na equipe que elaborou o currículo em parceria com o Olin College of Engineering, dos Estados Unidos, e formou os professores na metodologia da escola. Ele está no Insper desde 2004. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Orfali trabalhou como engenheiro químico, profissão que levou em paralelo com o ensino da matemática no início da carreira. Quando descobriu que o seu interesse eram as salas de aula, foi estudar a fundo a matemática, cursando graduação e mestrado na USP. Escreveu e publicou livros e materiais didáticos para os ensinos fundamental e médio e para a educação de jovens e adultos. Atualmente, Orfali coordena as áreas de ensino de matemática e física e é o responsável pela disciplina Matemática do Contínuo do novo curso de Ciência da Computação. “Procuramos criar um currículo no qual, simultaneamente ao aprendizado de todos os fundamentos, o aluno se sinta um cientista da computação desde o primeiro dia”, diz Orfali.
Quais são as disciplinas da trilha de matemática do curso de Ciência da Computação?
A trilha de matemática tem as disciplinas que estamos chamando de Matemática do Contínuo, depois a Matemática Discreta e outra que vai abordar Álgebra Linear. Embora as três sejam assunto de matemática e formem uma trilha, algumas delas serão ministradas de maneira muito casada com determinados conteúdos de computação. Eu tenho condição de falar com mais propriedade de Matemática do Contínuo, que é a disciplina que estou organizando.
E o que aborda a Matemática do Contínuo?
Geralmente, os conteúdos dessa disciplina, mesmo no curso de Ciência da Computação, acabam sendo chamados de cálculo diferencial e integral. E por que estamos chamando de Matemática do Contínuo? Primeiro, para fazer essa contraposição com uma disciplina que é muito importante, muito comum nos cursos da Ciência da Computação, que é a Matemática Discreta. O oposto à Matemática Discreta seria a Matemática do Contínuo, então resolvemos dar esse nome. Quando se fala de cálculo diferencial e integral, já vem, para quem é da área, um currículo meio padrão. E queríamos que a disciplina estivesse muito integrada com a Ciência da Computação. Não queríamos um curso de cálculo padrão, como se daria para um engenheiro, um químico, um economista, mas algo que fosse muito customizado para aquilo que o cientista da computação vai utilizar. Por isso, essa ideia de falar em Matemática do Contínuo.
Falando em Matemática Discreta versus Matemática do Contínuo. Se você pensar, por exemplo, numa variável que assume valores, mas não todos os valores reais, vamos dizer assim, mas valores em um conjunto de pontos, porque o computador trabalha muito assim. O computador não trabalha de uma maneira contínua; ele trabalha discretizando as coisas. Por exemplo, a imagem da tela não é uma coisa contínua. São vários pontinhos, com certa separação, chamados pixels. Num primeiro momento, você suporia que, para o cientista da computação, importa a Matemática Discreta, porque os processos do computador são discretos. Mas os computadores usam muito a Matemática do Contínuo como aproximação. Nesse exemplo dos pixels, embora a imagem no computador seja formada de uma maneira discreta, todos os processos para fazer as aproximações vêm da Matemática do Contínuo. Nesse sentido, é muito importante que o aluno tenha noções de derivadas, integrais e limites, para depois fazer as aproximações para a Matemática Discreta.
Por ser uma disciplina que está no começo do curso, no segundo período, o aluno não tem ainda todo o conhecimento da área da computação nas quais ele vai fazer as aplicações desses conceitos. O grande desafio para nós é conseguir mostrar para o aluno, num contexto da computação, de que maneira aquele conhecimento todo está inserido, para que o curso não fique, como na maioria das vezes em que o cálculo é ensinado nos cursos de graduação, como algo “vai aprendendo isso que um dia você vai entender para que serve”. Sou engenheiro e matemático, então conheço algumas aplicações em computação, mas não tenho todo o conhecimento que o pessoal da área tem. Fizemos uma série de conversas, de trabalho a várias mãos, para procurar entender onde essa Matemática do Contínuo seria mais utilizada. Conversei bastante com o professor Fábio Ayres, por exemplo, que é da área de machine learning, um campo que usa bastante processos que vêm da Matemática do Contínuo, especialmente processos de otimização, maximização e minimização.
Então, os alunos já começam a receber conceitos de computação?
Aqui entra aquilo que eu falei do desafio. Ao mesmo tempo em que você tem que procurar algum assunto que motive o aluno, para que ele enxergue onde poderá utilizar aquele conhecimento, e machine learning tem um apelo legal nesse sentido, as aplicações de machine learning são em conteúdos muito avançados, que um aluno de primeiro ano não teria muito condição de acompanhar. Então, além de ser um assunto que desperte o interesse, tem que ser assunto que, do ponto de vista didático, traga vantagens para o aluno compreender aquele conteúdo. Não posso falar de machine learning para o aluno entender os conceitos de derivada e apresentar um assunto mais complicado ainda. Isso não vai ajudar no entendimento.
Nesse trabalho em conjunto, acabamos chegando à questão da computação gráfica. Porque a computação gráfica, basicamente, procura reproduzir na tela aquilo que a gente vê no mundo real, que é tridimensional. O processo de passagem do nosso mundo tridimensional para o mundo bidimensional, que é a tela, envolve muita matemática. Você precisa desde a questão da geometria, para compreender essa relação, até mesmo os processos de aproximação. Para reproduzir uma superfície de um objeto, tem que pensar na iluminação, na forma como a luz vai incidir, nos ângulos em que a luz vai incidir. Então, precisamos entender alguns conceitos do cálculo diferencial como reta tangente, plano tangente, reta normal – são questões nas quais consigo puxar muito os conceitos do cálculo. Além de despertar o interesse, precisamos de métodos que ajudem o aluno a entender aqueles conceitos. Decidimos ancorar os contextos que serão trabalhados em Matemática do Contínuo na computação gráfica, para trazer, além do interesse, a intuição.
Como o ensino da matemática para a Ciência da Computação se diferencia ao da Engenharia?
Quando trabalhamos com alunos de Engenharia, usamos muito a física, em questões de movimento e velocidade, entre outras, que já não têm tanto apelo para um cientista da computação. Geralmente, eles não gostam tanto assim de física, então por isso adotamos a computação gráfica. Nós entendemos que vai dar um casamento bem interessante. Existem sempre estas duas questões: precisa ser algo que motive, que seja intuitivo, que ajude o aluno a entender os conceitos, e que, ao mesmo tempo, traga problemas nos quais aquelas ferramentas são aplicadas.
Você começou na engenharia e depois foi para a matemática. Pode nos contar como foi essa transição?
Sempre gostei muito de matemática, mas, quando fui optar por um curso, achei que a engenharia seria um campo mais promissor do ponto de vista da minha carreira. E, na época de faculdade, gostava muito do curso de Engenharia, mas gostava muito de dar aula. Eu dava aula à noite em curso supletivo. Sabia que era uma coisa que gostava de fazer, mas não me imaginava fazendo para o resto da vida. Quando me formei e comecei a trabalhar como engenheiro, posso dizer que fiquei um pouco decepcionado, não era o que eu imaginava. Fiquei um período meio em crise e comecei a pensar numa transição, me preparando para só dar aula. Durante um tempo, conciliei as duas coisas. Trabalhava numa indústria na área de tintas automotivas durante o dia e, à noite, dava aula em cursinho.
Quando me decidi pelas aulas, achei que precisava reforçar a minha formação. Fui fazer uma graduação de Licenciatura em Matemática. Eliminei muitas disciplinas que eu já tinha feito na Engenharia, mas havia várias outras que não tinha visto nada. A Engenharia usa muito a Matemática, mas não usa todos os campos, e o professor de matemática precisa ter esse domínio. Então, foi uma complementação muito importante. Comecei a realmente dar aula, primeiro em escola básica, ensino médio, ensino fundamental, e achei que era bacana continuar a minha formação se quisesse dar aula no ensino superior. Logo depois da graduação, já entrei direto no mestrado.
No final do mestrado, comecei a dar aula, além da escola básica, em universidade. Eu me identifiquei muito com a profissão quando vim para o Insper, tanto que acabei largando cursinho e escola básica para me dedicar só à universidade. Como é natural numa carreira acadêmica, fui cursar o doutorado. Achei bacana juntar as duas coisas, então fiz doutorado na área de educação matemática. A minha tese foi na área de ensino de cálculo, que era algo que fazia no dia a dia. No doutorado, consegui incorporar muita coisa da minha prática profissional. Foi interessante, porque gerou uma pesquisa bacana. Desde então, eu me vejo como um profissional da educação matemática.
Outros dos seus interesses são a formação de professores e a produção de material didático de matemática. Pode falar a respeito?
Até hoje, trabalho com material didático. Isso foi algo que me enriqueceu na questão da atuação como professor universitário, ainda mais nesses projetos nos quais tenho participado no Insper. Começou lá no curso de Engenharia, que tinha uma proposta superinovadora. Então, quando você começa a dar aula num curso desse tipo, não adianta muito ficar procurando material didático, procurar um livro para seguir, porque simplesmente não existe. Os livros seguem muito aquela linha tradicional, podem ser usados como um apoio, mas o grosso das atividades que você vai propor aos alunos não existe. Ajudou muito ter experiência como autor de material didático, tanto do processo de criação quanto da entrega do produto. Porque, se você vai propor algumas atividades, vai propor um material de apoio, ele precisa ter um acabamento, precisa ter uma coisa que seja atrativa para o aluno.
Agora, na Ciência da Computação, é a mesma coisa. Estamos precisando criar muita coisa, porque não se encontra um livro de cálculo que seja ancorado na computação gráfica. Temos de conversar com o pessoal da área, entender de onde tirar os exemplos, quais tipos de atividades usar. Gostamos de trabalhar com alguns handouts, uns roteiros, vamos dizer assim, para que o aluno possa ir refletindo, discutindo, às vezes em dupla, às vezes em grupos maiores. Para que ele vá construindo os conceitos de uma maneira mais ativa, para que não se transforme naquela aula com o professor na lousa apresentando e o aluno acompanhando passivamente. A criação de material didático, nesse sentido, é primordial.
Você participou da implantação do curso de Engenharia do Insper. O que traz dessa experiência que pode ajudar na Ciência da Computação?
Para mim, o curso de Engenharia, do ponto de vista de evolução profissional, foi um dos momentos mais ricos da minha carreira, porque sempre procurei possibilitar uma maneira de o aluno participar. Mas era sempre uma coisa muito intuitiva. Na implantação do curso de Engenharia, tivemos a oportunidade de fazer uma parceria com uma universidade americana, o Olin College, de Boston, que é muito avançada nessa área de ensino de engenharia. Ao ter contato com eles, com a forma como eles ensinavam, acabei questionando muito a forma como eu atuava como professor. Foi um momento muito rico de descontruir uma série de coisas e enxergar outros caminhos.
Nós brincamos que faço parte do grupo dos dinossauros da Engenharia, porque a primeira turma de alunos entrou em 2015, mas o grupo com os primeiros professores se formou em 2012. Ficamos três anos elaborando o que seria o curso de Engenharia antes de começar de fato. À medida que o curso foi sendo implantado e as turmas foram avançando, tivemos a necessidade de contratar mais professores, então, os professores que iniciaram tiveram a grande responsabilidade de formar os novos professores que iam assumir as disciplinas dentro da filosofia que fora gestada, vamos dizer assim, ao longo de três anos. Uma coisa é ficar três anos imerso dando aulas; outra coisa é o professor chegar, três, quatro meses antes de entrar em sala de aula, e ter que assimilar toda a filosofia do curso. Essa parte de formação foi bastante importante para conseguir agregar novos professores à metodologia. A experiência foi muito rica para o grupo todo, porque a Engenharia já parte de pressupostos, de algumas premissas, bem diferentes do ensino mais tradicional. Claro, usamos esse conhecimento de alicerce para criar o curso da Ciência da Computação, fazendo algumas adaptações.
O curso da Engenharia é baseado no que a gente chama de “mão na massa”. O engenheiro é o cara que gosta de fazer, de fuçar. A “mão na massa” na Ciência da Computação tem outra conotação, mas em termos de princípio é muito parecido. Você espera que o profissional de Ciência da Computação seja alguém que goste de programar. Procuramos criar um currículo no qual, simultaneamente ao aprendizado dos fundamentos, o aluno se sinta um cientista da computação desde o primeiro dia. Isso foi bastante importante para a nossa construção.
Como os professores planejam lidar com alunos com níveis diferentes de conhecimento e compreensão de matemática?
Quando a gente pensa em cursos da área de exatas, a primeira disciplina de matemática costuma ser um choque muito grande. Porque dificilmente os cursos têm a preocupação em suavizar um pouco o degrau. Claro que é esperado, num curso superior, que a cobrança, que a maturidade do aluno, seja maior. Mas eu brinco: ele termina o terceiro ano do ensino médio em dezembro, em fevereiro ele está começando a universidade. Ele não vai amadurecer tantos anos em três meses. Então a compreensão desse tipo de dificuldade em termos de metodologia, em termos de cobrança, em termos de organização, é fundamental para se dar esse apoio para o aluno.
Claro, dentro da sua área de atuação, no meu caso a matemática, também é muito importante ter esse conhecimento: como a matemática é abordada no ensino médio e o que tenho de fazer para que esse aluno consiga subir essa rampa de uma maneira que não seja traumática. O que você colocou é um grande desafio, que é receber grupos que são muito heterogêneos. Às vezes, há alunos que gostam muito de matemática, até se aprofundaram no tema, e chegam ávidos para estudar coisas mais aprofundadas; ao mesmo tempo, existem alunos que, mesmo passando pelo vestibular, que é um filtro, têm dificuldades em operações muito básicas da matemática.
Na Engenharia do Insper, temos a experiência de colocar a primeira disciplina de matemática pura no segundo período. No primeiro período, a disciplina envolve conhecimentos matemáticos, mas muito mais conceituais. Não é aquela disciplina na qual o aluno também precisa ser bom em técnicas. Aproveitamos esse primeiro período para identificar alunos que terão alguma dificuldade, por conta de lacunas na sua formação em relação a conhecimentos básicos do ensino médio, e que, no caso da Engenharia, farão falta tanto para a matemática quanto para a física.
Esses alunos recebem algum acompanhamento especial?
Temos um programa para esses alunos chamado Tópicos Essenciais de Matemática e Física. É um programa que corre ao longo do primeiro semestre em paralelo com as disciplinas normais do primeiro semestre. Não são todos os alunos que fazem. Com base num diagnóstico dos professores, selecionamos grupos menores, trabalhamos com esses grupos, e com isso resolvemos um pouquinho essa questão de ter, na mesma sala, alunos com interesses mais avançados. Até para não desmotivar o aluno que chega com a expectativa de avançar na matemática e passa o primeiro mês fazendo só revisão. Não temos isso ainda cem por cento desenhado, mas a nossa expectativa é que consigamos replicar um modelo semelhante para o pessoal de Ciência da Computação. Por mais que se planeje, precisamos conhecer melhor o perfil de aluno da primeira turma e, a partir disso, encaminhar a questão.
Porque o aluno que entra na universidade, na maioria das vezes, vem com um ânimo, com uma pegada muito forte, mesmo que não tenha tido um ensino médio tão forte. Esse tipo de apoio faz o aluno se sentir amparado, e todas as avaliações que fizemos dessa iniciativa são sempre muito positivas. É claro que o aprendizado vai demandar um esforço maior em relação ao colega que já veio formado, o aluno precisa entender isso também. Mas o professor está por perto.
Você já deu aula de lógica e ética. Como essas áreas se relacionam com a matemática?
Quando fui dar essas aulas, foi superdesafiador. Não vou dizer que caí de paraquedas para dar essas aulas, mas foi quase isso. No curso de Economia e Administração, essa disciplina era ministrada por dois professores, ambos filósofos. Uma professora dava a parte de ética, uma discussão bem na parte de humanidades, e outro professor dava lógica, que puxava um pouquinho mais para essa lógica formal, que a matemática usa muito. Quando vai demonstrar um teorema, você precisa ter uma construção do ponto de vista lógico que se sustente. Ele trabalhava conceitos como implicação, condição necessária, condição suficiente.
Dentro da minha experiência no ensino médio, trabalhava um pouco com isso, com a questão da lógica, como uma forma de produzir argumentações que fossem válidas. Embora lá no ensino médio o meu interesse fosse trabalhar a lógica do ponto de vista matemático, de como estruturar um pensamento matemático, eu usava muito a questão da argumentação como forma de motivar os alunos.
De alguma forma, isso entra no currículo de matemática do Insper?
Com certeza, a gente trabalha. Não trazemos tanto essa pegada de argumentação em texto, porque acaba fugindo. Mas, por exemplo, nos meus cursos de matemática na graduação, o professor provava um monte de coisa, demonstrava teoremas, mas ele não se preocupava muito, só reproduzia a demonstração que estava no livro didático. Eu acho o seguinte: tenho que provar alguns teoremas. Há teoremas que usam o “se e somente se”. Por exemplo, uma matriz é diagonalizável “se e somente se” possui n autovetores linearmente independentes. Enunciado puramente matemático. Mas o que significa esse “se e somente se”? Então, discuto isso com os alunos. Para o cientista da computação, essa lógica vai se aplicar de uma maneira muito crua (eu digo crua porque é automática). Se você escrever um comando no computador que não respeita as regras da lógica, vai dar tudo errado no seu programa. Numa discussão, você tem muitas nuances, às vezes, o tom de voz que se utiliza influencia na argumentação. Um computador não entende nada disso. O computador entende o que está escrito. Se o programador furou a lógica, vai dar tudo errado. Então, no dia a dia dos conteúdos trabalhados em aula, conseguimos trazer toda essa discussão.