24/04/2014
Quando o economista Mario Henrique Simonsen lançou o livro Inflação: Gradualismo x Tratamento de Choque, não poderia prever o quanto suas teses norteariam a política econômica do país. Publicado em 1967, seu texto fazia parte de uma ampla discussão acadêmica sobre o processo inflacionário que o Brasil já sofria. No fim da década de 1960, a indexação da economia – quando contratos passaram a ser corrigidos pela inflação – já era vista como o mal maior.
Por mais de 20 anos, buscou-se combater os males causados pela economia indexada, mas as medidas ortodoxas de controle da inflação foram sempre insuficientes para conter o crescimento desenfreado dos preços. No inicio dos anos 1980, os economistas André Lara Resende, Pérsio Arida e Chico Lopes, em espaços de discussão na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na mesma linha do que já havia sido feito em outros países, como Israel e Argentina – formularam um plano de estabilização econômica que ficou conhecido como Plano Larida. Com base nesse plano, o então presidente, José Samey, lançou o Plano Cruzado, em 1986, que teve enorme sucesso popular no seu início, mas funcionou de fato por pouco tempo. O Plano Cruzado foi suportado pelo governo Sarney até novembro, mês das eleições ; em seguida, naufragou completamente. Ainda no governo Samey, vieram em seguida os planos Cruzado II e Bresser (1987) e Verão (1989), todos fracassados. Quando de sua posse, o presidente Fernando Collor lançou o Plano Collor I (1990) e, logo depois, o Collor 11 (1991), com insucessos cada vez maiores.
Todos esses pianos tiveram congelamento de preços e tablita (tabela de descontos para retirar a inflação dos preços e nivelar todos os preços na data-base do plano). No Plano Collor I ocorreu, ainda, o bloqueio dos ativos financeiros da população e das empresas.
Em 1994, no governo Itamar Franco, os mesmos economistas André Lara Resende e Pérsio Arida evoluíram com o Plano Larida e formularam a transição do cruzeiro (Cr$) para o real (R$) por meio da Unidade Real de Valor (URV), sem os danosos mecanismos de congelamento de preços e de confisco de ativos. Assim, foi criado o Plano Real, com uma moeda paralela, que corrigia diariamente a inflação do cruzeiro real (CRS), o nome da moeda de transição, para LIRV. Ou seja, se o pão zinho, que custava CR$ 1, passasse para CRS 1,0$ no dia seguinte, continuaria valendo 1 URV.
Com o Plano Real, a inflação, finalmente, foi controlada. Vinte anos depois, pode-se dizer que a história é de sucesso. Mas, por pouco, não deu errado. Desde sua concepção até a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, o fracasso bateu à porta do Plano Real. Para garantir que ele funcionasse, até elementos psicológicos foram usados.
O Plano Real sofreu a rejeição política dos partidos de oposição e também a desconfiança do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos agentes econômicos, que tinham na memória os muitos pianos já adotados e fracassados. A criação da URV, na verdade, foi um artificio usado para fazer o brasileiro esquecer a inflação. Para alguns, a URV foi uma solução mágica. A adesão era voluntária e foi fundamental para apagar a memória inflacionária. “Mas também havia um conjunto de reformas embutidas na URV. Os juros foram repensados e foi estabelecida uma contrapartida fiscal. Se fosse só o efeito psicológico, fracassaria como os outros pianos”, diz Claudio Haddad, presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Enquanto isso, com medo do impacto da transição da moeda nos salários dos trabalhadores, o FMI pedia um novo congelamento de preços. Outros economistas, que estavam fora do governo, entendiam que a fórmula adotada pela Argentina, no governo de Carlos Menem, que fixou o câmbio do peso em US$ 5, seria a melhor solução para o Brasil. Só o Ministério da Fazenda e a população acreditaram que o Plano Real poderia dar certo. “0 povo brasileiro é cooperativo e acreditou em todos os pianos de estabilização criados até então. O ambiente era tão ruim que todos queriam que o real funcionasse”, lembra Haddad.
SEM AMBIENTE
Até mesmo o momento de lançar o plano foi questionado. A equipe econômica queria esperar as eleições de 5994, mas talvez Fernando Henrique Cardoso, que era o ministro da Fazenda durante a formulação do plano, não se elegesse. Por isso, Rubens Ricupero, que assumiu o ministério quando FHC deixou o cargo para se candidatar, implementou as medidas.
Alias, no pouco tempo que esteve à frente da pasta, o ex-embaixador protagonizou um escândalo monumental. Durante uma conversa com o jornalista Carlos Monforte, que era seu cunhado, Ricupero admite uma falha de caráter. “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.” A frase foi dita antes de uma entrevista ao vivo que o ministro daria para o Jornal da Globo, da TV Globo, e não estava sendo transmitida para todas as residências. Mas o sinal já estava aberto para as antenas parabólicas. Com isso, Ricupero caiu e Ciro Gomes assumiu em seu lugar. Ainda cm 1994, o Congresso também se recuperava de um grande escândalo. Em outubro do ano anterior, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instaurada depois que se descobriu que sete parlamentares, responsáveis pelo orçamento da União, vendiam emendas para prefeituras e governos estaduais. O esquema ficou conhecido como Anões do Orçamento.
Ou seja, definitivamente, não havia ambiente político para um novo plano. “0 momento foi perfeito. Existia uma tendência de globalização e o capital internacional recolocou o Brasil no mundo. Se isso acontecesse na crise de 2oo8, a história seria outra”, afirma Haddad.
Depois de lançado, centenas de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) foram impetradas no Supremo Tribunal Federal contra a legalidade do plano. Uma conta feita pelo Partido dos Trabalhadores (PT) se mostrou um opositor ferrenho. “Quando a gente é de oposição pode fazer bravata porque não vai ter de executar nada mesmo. Agora, quando você é governo, tem de fazer e aí não cabe a bravata”, declarou Lula meses depois de assumir.
LONGE DA META
A âncora cambial funcionou ate o fim de 1998, quando o governo FHC cedeu às pressões do mercado e promoveu a abertura do câmbio. Para isso, o economista Francisco Lopes substituiu Gustavo Franco, no início de 1999. Mas Chico Lopes teve um desempenho abaixo da crítica; sua passagem de poucos dias pelo BC foi traumática (além do mais, protagonizou o imbróglio do Banco Marka, do notório Salvatore Cacciola). Três crises internacionais dizimaram as reservas cambiais brasileiras: a do México (1995), a dos Tigres Asiáticos (1997) e a da Rússia (1998). “Todos os dias, saíam de US$ 2 bilhões a US$ 3 bilhões do caixa do Banco Central. Depois da eleição, o BC estava zerado”, conta Roberto Giannetti da Fonseca, então secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento.
Até a eleição de Lula, em 2002 quando a cotação do dólar bateu em RS 4, a responsabilidade daquela variação maluca pode ser creditada à decisão equivocada de fincar o pé no câmbio. A taxa básica de juros, que superou a casa dos 40% ao ano, em 1999, e que corrigia a maior parte dos contratos detidos pelo Brasil, também é culpa da intransigência mostrada pelo governo em 1995.
Se o Plano Real não consertou o desequilíbrio social do país, ao menos evitou que as diferenças aumentassem. E, para Edmar Bacha, ex-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), essa é uma das maiores vitórias do plano de estabilização. Bacha, que também sentava na mesma sala de Atida, Resende e Franco durante a formulação do Plano Real, é autor dos dois principais livros sobre a concentração de renda no Brasil: Belindia e Belíndia 2.0.
Os livros foram escritos em um intervalo de quase 40 anos. O primeiro, lançado em 1974, e o segundo, em 2012, retratam um mesmo país fictício, extremamente desigual, que divide características de uma nação desenvolvida, a Bélgica, e de uma carente, a índia. “No início da década de 197o, havia a mesma concentração de renda que existe hoje. Estamos novamente no ponto de partida. Do golpe militar de 1964 ao Plano Real, em 1994, andamos para trás durante três décadas”, afirma Bacha. “Não lideramos mais o ranking de países desiguais, mas ainda estamos distantes da nossa meta”, finaliza.
Fonte: Revista Poder Joyce Pascowitch – SP – 01/04/2014