18/05/2020
Regina Madalozzo analisa aspectos como o impacto da crise sobre a vida profissional das mulheres e a atuação feminina na linha de frente do combate ao novo coronavírus
ENTREVISTA| CONTEÚDO SOBRE A PANDEMIA DE COVID-19 |ACESSE A PÁGINA ESPECIAL
Seguindo os esforços conjuntos de toda a Comunidade Insper para mitigar o impacto da Covid-19, produzimos conteúdos especiais para colaborar na tomada de decisão e na superação dos desafios deste período.
Gerar conhecimento que impacte positivamente a sociedade é uma das nossas missões e, neste momento, reforçamos nossa atuação com uma série de entrevistas, matérias, vídeos e webinars que abordam diversos temas e destacam cuidados e orientações que todos devemos atentar durante o isolamento social.
Na entrevista a seguir, Regina Madalozzo, professora do Insper e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero dentro do Centro de Estudos em Negócios, analisa os principais desafios para a vida profissional das mulheres nessa época de pandemia, a atuação feminina na linha de frente do combate ao novo coronavírus, o aumento de casos de violência doméstica nesse período e o destaque alcançado por países com mulheres na liderança. Confira:
1) Quais os principais desafios para a vida profissional das mulheres nessa época de pandemia?
Para todas as pessoas, o trabalho remoto é desafiador, até mesmo por não ser o habitual. Para as mulheres, sabemos que os desafios são adicionais aos que se colocam aos homens. Como as responsabilidades domésticas não são usualmente bem divididas nas famílias (e nos casais), recai sobre as mulheres grande parte do trabalho doméstico (limpeza, cozinha, etc) e, quando na presença de crianças, o acompanhamento escolar (dado que as aulas são remotas e as crianças estão demandando mais atenção e ajuda com tarefas escolares).
Então, ao mesmo tempo que as mulheres estão lidando com os desafios normais do confinamento e trabalho remoto, uma parte pesada do trabalho “invisível” recai sobre elas e penaliza ainda mais essas profissionais durante a pandemia.
2) No Brasil, 85% dos profissionais de enfermagem são mulheres, que estão na linha de frente no combate ao novo coronavírus. As mulheres também são maioria em algumas categorias economicamente mais vulneráveis à pandemia, como diaristas. Esses dados nos revelam algo?
Revelam duas características interessantes do mercado de trabalho: a segregação ocupacional e a precarização do trabalho. No primeiro ponto, sabemos que homens e mulheres – em muitas profissões – estão segregados. Algumas vezes, na área como um todo (engenharia, por exemplo, com altíssima participação de homens e baixa de mulheres); outras vezes, dentro de uma mesma área, como é o caso da saúde.
Embora tenhamos uma participação alta de mulheres na medicina (elas já são mais de 50% das ingressantes nesse curso), ainda são poucas as mulheres consideradas expoentes como médicas (vide uma reportagem feita no ano passado pelo jornal Folha de São Paulo, na qual as pessoas votaram nos melhores médicos de São Paulo por especialidade e não havia nenhuma mulher escolhida).
Na enfermagem, ainda mais do que na medicina, é altíssima a participação das mulheres. Isso tem uma consequência da história dessa profissão – ligada, muitas vezes, ao trabalho de religiosas na saúde e acolhimento de pessoas doentes-, mas também é relacionada a um status menor em termos profissionais. E essas profissões, de menor status (outros exemplos são professores de escolas infantis, cuidadores de idosos, etc), embora de extrema importância, geralmente são profissões com alta frequência de mulheres como profissionais. Isso nos leva ao segundo ponto, a precarização do trabalho.
No Brasil, as empregadas domésticas (e aqui, incluo as diaristas) são a categoria com menor registro formal de trabalho. Diversos esforços já foram feitos para a regularização desse trabalho, mas, por ser um contrato de pessoa física com pessoa física, o controle é difícil e nem sempre as próprias profissionais querem ou entendem a real importância do vínculo empregatício formal.
Dessa forma, em uma crise econômica, como se revela nessa pandemia, vemos as mulheres tanto na linha de frente para a defesa da saúde (como as enfermeiras) como também sendo uma das categorias mais afetadas pelo isolamento social (caso das domésticas: muitas já perderam seus empregos, outras estão se sentindo obrigadas a trabalhar e se arriscar diariamente para mantê-los).
3) Como você analisa o aumento da violência doméstica nesse período? Como as mulheres e a sociedade devem agir perante essa situação?
A violência doméstica cresceu em muitos países durante a pandemia. Na Itália, os dados revelam um aumento de mais de 100% nos primeiros quatro meses do ano de 2020. No Brasil, embora os dados ainda não sejam oficiais, já temos um alarmante índice de violência doméstica em situações “normais”. Segundo a pasta ministerial da Mulher, Família e Direitos Humanos, abril deste ano apresenta um aumento de 35% de denúncias de violência doméstica em relação ao ano anterior. Em São Paulo, o índice de violência doméstica subiu em torno de 45% comparado ao ano passado, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de São Paulo. Esses dados revelam que a violência doméstica foi, sim, agravada pela pandemia e confinamento.
Nossa reação deve ser maior do que somente o espanto perante os dados. As mulheres que sofrem a violência doméstica devem ter opção para deixar a própria casa e serem protegidas pelas suas famílias (o que, muitas vezes não é possível) ou pelo próprio Estado. Os infratores (e está no masculino, porque a maioria dos infratores é homem) deveriam ser punidos com o rigor da lei. E nós, sociedade, precisamos estar atentos ao que acontece ao nosso redor para poder ajudar essas pessoas. São mulheres e, muitas vezes, crianças, que estão passando por esse período de isolamento de uma forma muito mais sofrida: com o medo.
A violência da mulher não se dá somente porque os homens estão nervosos pela perda do trabalho, pela falta de dinheiro ou pelo excesso de consumo de álcool. A violência acontece pela condição social que vivemos e a diferença entre homens e mulheres e pela dificuldade que temos, até hoje, de assegurarmos que homens e mulheres tenham os mesmos direitos e deveres.
Quando a violência doméstica ocorre, por detrás dela existe a ideia de alguém que “chefia” a casa e, por isso, tem direitos adicionais sobre os outros moradores. Seus desejos e vontades precisam ser satisfeitos antes dos desejos e vontades dos outros. Suas preocupações e problemas se tornam superiores aos das outras pessoas. E, assim, a violência pode acabar acontecendo. Eliminar a violência doméstica passa pela conscientização e um trabalho intenso para colocar mulheres também como protagonistas das famílias (como muitas já o são) e dignas de partilhar essa responsabilidade com seus parceiros.
4) Qual a sua análise sobre o destaque alcançado por países liderados por mulheres no combate ao novo coronavírus?
É muito interessante que sejam justamente essas líderes mulheres que tiveram o maior destaque nesse período. Minha visão é que isso ocorre não porque as mulheres seriam “melhores” líderes do que os homens. Eu realmente acredito que não existe diferença entre homens e mulheres em capacidade de liderança.
Entretanto, existe uma diferença entre as sociedades dos países que elegeram essas mulheres (como a primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern) e as dos países que elegeram homens mais avessos ao confinamento social e a medidas de proteção integrais aos moradores. Essa diferença é cultural. Minha impressão é que os países que elegeram essas mulheres como líderes valorizam as características de um “pragmatismo humano”, que seriam: rapidez e eficiência na tomada de decisões – aceitando o risco de agir em excesso de prevenção do que aceitar o risco de um número maior de mortes – e de valorização da vida de todas as pessoas.
Regina Madalozzo é PhD em Economia pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, Estados Unidos. Fez graduação na PUC-Rio e mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ambos em economia. É professora associada no Insper desde 2002. Sua área de pesquisa é economia do trabalho com foco no mercado de trabalho de mulheres.
Regina é coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero dentro do Centro de Estudos em Negócios. Participa de diversos fóruns ligados ao empoderamento feminino e presença de mulheres na liderança das empresas.