25/02/2016
A Teoria Econômica sugere alguns princípios para a legislação de combate à corrupção. O primeiro é dissuasivo, isto é, prover incentivos para que agentes (cidadãos ou empresas) não cometam crimes ou reincidam neles. Para isso, as punições devem tornar o custo esperado de delinquir maior do que o benefício auferido. O segundo princípio é que a única forma efetiva de inibir que Pessoas Jurídicas (PJs) pratiquem atos de corrupção é punir seus acionistas controladores. Caso contrário, as PJs podem desenhar esquemas de incentivos que estimulem práticas ilícitas e recompensem seus gestores pelos riscos aos quais estarão expostos (fizemos este ponto na postagem, de Julho do ano passado). Por fim, a legislação que rege acordos de leniência deve magnificar a diferença das punições entre o colaborador e não colaboradores, mantendo constante o nível (esperado) da punição imposta a todos os que cometem malfeitos. Havendo o ilícito, a diferença das punições gera incentivos para que o infrator “traia” o arranjo criminoso e colabore. Por sua vez, o nível da punição esperada dissuade o crime no primeiro momento.
A MP 703 consegue violar simultaneamente todos os princípios. Está recheada de aspectos que terão efeito deletério sobre incentivos de longo-prazo. Neste texto, analisaremos, sob o ponto de vista exclusivamente econômico, os três erros mais importantes: i) o fim da exclusividade dos benefícios de leniência à primeira PJ que coopere; ii) a isenção de sanções relativas à contratação com o setor público de PJs que adiram a um acordo de leniência; e iii) a não participação Ministério Público (MP) em todas as fases dos processos.
Iniciemos de iii). A participação obrigatória do Ministério Público em todo acordo de leniência traria ao menos dois benefícios. Primeiro, a participação de uma terceira parte desinteressada e autônoma. Órgãos de controle interno do Poder Executivo podem dar peso excessivo a dimensões que, embora possam ser bastante defensáveis, não devam ser consideradas na confecção de um acordo de leniência. Segundo, a leniência gera informação que ajuda desmontar e punir malfeitos. Para aferir seus benefícios, é preciso saber quais informações são novas. O MP é o mais capaz de aferir a novidade da informação (A esse respeito, recomendamos fortemente o excepcional programa da jornalista Mônica Waldvogel, que tratou do assunto com o Procurador Carlos Fernando Lima e está disponível na internet).
Permitir que várias PJs adiram ao acordo possibilita que todos os infratores sejam beneficiados com a leniência, o que iguala, de facto, as punições de colaboradores e não colaboradores. Isso diminui os incentivos à traição, cai a probabilidade dos infratores serem pegos e, portanto, o custo esperado da punição. Portanto, a MP 703 diminuirá os incentivos para a quebra do conluio entre malfeitores. É o “torneio” implícito para ser o único beneficiário que estimula o que Bezerra da Silva consagrou como dedo de seta (Cleveland Prates fez este ponto em excelente artigo no Estadão).
Para o acionista controlador, a punição mais severa pode ser a impossibilidade de negociar com o setor público, muitas vezes seu maior cliente.[1] A eliminação da inidoneidade reduz a punição esperada e estimula malfeitos. Alguém pode sugerir que, mantida a exclusividade da leniência à primeira PJ colaboradora (algo que a MP não faz!), torna-la idônea aumentaria a diferença das punições de colaboradores e não colaboradores, o que estimularia a traição. O argumento é equivocado por uma razão simples: é preferível aumentar essa diferença mantendo o nível de punição do colaborador. Como? Por exemplo, impondo que não colaboradores paguem um montante igual a três vezes o dano gerado, instituição conhecida como trebble damages e utilizada nos EUA.
Os erros i) e ii) são, separadamente, deletérios. Conjuntamente, são devastadores porque permitem que, de facto, se perdoe os crimes praticados por todos os membros de um cartel que tenha corrompido agentes públicos para magnificar o sobrepreço cobrado por seus serviços. Transformam-se acordos de leniência num grande programa de resgate (bailout) de empresas delinquentes, sob o argumento de que a roda precisa girar. Se, Individualmente, os incentivos de uma PJ a reincidir serão grandes, há algo ainda mais grave: o perigo moral coletivo, como cunhado por Jean Tirole e Emanuel Fhari no contexto de seu artigo “Collective Moral Hazard, Maturity Mismatch and Systemic Bailouts,” motivado pelo resgate dos bancos durante a crise de 2008. Quanto maior o número de empresas delinquentes, maior será efeito negativo da punição sobre a atividade econômica. Portanto, maior será o incentivo ao resgate ex-post. Ou seja, a MP cria um incentivo adicional para a formação de cartel: melhor corromper em grupo! (Um adendo: o argumento de preservação de empregos é fraco. Por várias razões. Não é papel do judiciário preservar a atividade econômica. Além disso, por que não abrir o mercado brasileiro à participação de empresas estrangeiras? Isso garantiria emprego local e aumentaria a competição, o que sempre cumpre o saudável papel de reduzir as rendas que estimulam a corrupção [1]).
Achamos importante, também, levantar três pontos adicionais que, embora não tenhamos capacidade de avaliar, parecem ser relevantes e talvez mereçam discussão por parte de analistas jurídicos quanto a suas implicações: i) a não necessidade de admissão de culpa para a celebração do acordo de leniência (parágrafo 1 do artigo 16), ii) (o que parecem ser) mudanças quanto a interrupção de prazos prescricionais (parágrafo 9 do artigo 16) e iii) a possibilidade de o acordo de leniência poder afastar a possibilidade de responsabilização na esfera judicial (Artigo 18). Nossa pergunta: esses três pontos significam que, para além do resgate econômico, haverá uma grande limpeza de barra dos infratores? Torçamos para que não.
Com algum custo, corrigir equívocos de política econômica é sempre possível. Reparar retrocessos institucionais — e a MP 703 é um passo largo em direção ao retrocesso — é bastante mais difícil. O governo, mais uma vez, engatou a marcha à ré.
* Nos beneficiamos de conversas com Sergio Guimarães e Carlos Woelz; a quem somos gratos. Obviamente, eles não são culpados por quaisquer equívocos, confusões e erros que possa haver no texto.
[1] Devemos, também, pensar em mecanismos que transfiram controle das empresas envolvidas, de maneira a preservar o negócio (e punindo controladores via um wipe out completo).
[2] Há um outro ponto que nos parece relevante aqui. A corrupção fez com que mais recursos que o socialmente desejável fossem alocados às atividades que são foco das investigações. Em outras palavras, a corrupção inflou artificialmente o retorno privado dessas atividades. Do ponto de vista da realocação de recursos (e, portanto, da produtividade da Economia), é natural e desejável que essas atividade se contraiam.
Fonte: Exame.com – 17/02/2016