21/12/2021
Saudável para qualquer democracia, a troca de comando no país se deu entre adversários com plena consciência de que têm mais interesses congruentes do que conflitantes
David Cohen
O sistema é parlamentarista, o país é rico, a cultura é mais homogênea, a população é mais velha e os desafios políticos são de outra ordem. Ainda assim, a recente transição de poder na Alemanha pode estabelecer alguns parâmetros de aprendizado para o Brasil. Ou, no mínimo, nos deixar com um pouco de inveja.
Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso passou a faixa para seu sucessor, Luiz Inácio (Lula) da Silva, em janeiro de 2003, não foram poucos os que notaram que havia uma certa simpatia com o rival. Os dois partidos, porém, em breve se tornariam antípodas — apesar de terem seguido diretrizes econômicas semelhantes (ao menos no início), e apesar de ocuparem um espaço político aparentado, ali pela centro-esquerda.
Talvez essa própria similaridade tenha acirrado ânimos em uma batalha pela identidade. O fato é que a política brasileira é marcada pela polarização. Que, nos últimos anos, só fez aumentar. Como afirmou o cientista político Marcus André Melo em recente artigo no jornal Folha de S. Paulo, “a principal clivagem entre nós é governo versus oposição; não é entre partidos”.
Por isso a troca de comando na Alemanha nos soa tão peculiar. O novo chanceler (chefe de governo), Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SDP), foi nos últimos quatro anos o ministro das Finanças de sua predecessora, Angela Merkel, da coalizão CDU/CSU (União Democrata Cristã e União Social Cristã).
Não se trata de inversão de papéis em uma longa parceria. Os democratas cristãos foram afastados do governo, em prol de uma nova coalizão, apelidada de “sinal de trânsito” por causa das cores de cada partido: o vermelho dos social-democratas, o verde do Partido Verde e o amarelo dos democratas livres.
Os três partidos são tão diferentes que a própria coalizão é um feito admirável. Isso foi conseguido em meros dois meses — entre o final de setembro, após as eleições, e o final de novembro —, apesar das profundas divergências. Primeiro, negociadores dos três partidos passaram uma semana trancados em um centro de convenções em Berlim, para encontrar um caminho comum.
A partir daí, cerca de 300 delegados, divididos em 22 grupos de trabalho, passaram a estabelecer os termos do acordo de governo. Chegaram a um documento de 177 páginas, com mais de 50 mil palavras, um grande guia para a agenda política dos próximos quatro anos. Ou talvez mais. Scholz já disse esperar que os três partidos façam campanha conjunta nas próximas eleições. “As pessoas desconfiaram dos sinais de trânsito quando eles foram introduzidos em Berlim nos anos 1920”, declarou, “mas eles são indispensáveis hoje em dia”.
A arte de unir ideologias tão diferentes — especialmente as visões antagônicas entre os progressistas do Partido Verde e os liberais pró-mercado do Democratas Livres — não é simples, tampouco costuma ser bem aceita pelo eleitorado. Por aqui, uma recente tentativa de fazer algo parecido foi a proposta do então candidato a presidente Geraldo Alckmin, em 2018. Ele sugeriu criar uma coalizão de governo em que entregaria cargos a partidos aliados, a maior parte deles de centro-direita. Foi interpretado como promotor de “negociata”, e como resultado colheu uma queda nas pesquisas eleitorais.
Na Alemanha, uma diferença crucial é que as eleições já haviam acontecido e, caso os três partidos não chegassem a um acordo, o governo poderia permanecer nas mãos dos democratas cristãos. Afinal, a vitória eleitoral foi estreita: 25,7% para o PSD, 24,1% para a CDU. Armin Laschet, o candidato da CDU no lugar de Merkel, chegou a dizer que seu partido poderia formar um novo governo. Mas o crescimento dos verdes e dos democratas livres (14,8% e 11,5% dos votos, respectivamente) alterou as contas — e, pela primeira vez desde os anos 1950, os alemães vão ter um governo com três forças. Com os social-democratas na cabeça, pela quarta vez na história do pós-guerra.
A aliança improvável entre partidos que estiveram sempre em desacordo tinha, portanto, um grande incentivo: evitar um quinto período de governo democrata cristão. O exemplo alemão é que, mesmo entre visões tão díspares, é sempre possível encontrar elementos em comum.
Neste caso, conseguiram acordar um programa de modernização: incentivar obras de infraestrutura, acelerar a digitalização, tonar mais flexíveis as leis de imigração, aumentar os gastos com pesquisa e desenvolvimento, permitir que jovens de 16 anos votem. Concordaram ainda em promover uma reforma eleitoral para reduzir o tamanho do Parlamento, conceder mais direitos à comunidade LGBTQ e legalizar a maconha.
Tudo isto foi relativamente rápido — assim como a óbvia agenda de “derrotar a pandemia”, que voltou a afligir o país. A parte menos simples do acerto é a financeira. Promessas não tão ambiciosas, como construir mais casas para evitar o aumento no preço das moradias (algo que Scholz já fez quando foi prefeito de Hamburgo), combater a pobreza infantil e elevar o salário mínimo de 9,60 euros para 12 euros por hora, devem ser cumpridas com uma certa facilidade.
Porém, a grande proposta de uma “nova revolução industrial”, a meta de transformar a Alemanha numa potência manufatureira com impacto de carbono zero, recriando as bases para o estado de bem-estar social do futuro… essa é um tanto mais difícil. Não só porque o objetivo é audacioso, mas pela necessidade de chegar lá com dois cavalos puxando para lados opostos.
De um lado, os verdes pretendem injetar 50 bilhões de euros por ano na transição para uma economia limpa. O país já tem um plano de contar com 65% de energia de fontes renováveis até 2030. A ideia dos verdes é ampliar essa meta para 80%, quase o dobro do nível atual (de 45%).
De outro lado, há a convicção dos democratas livres em defender a ortodoxia fiscal. É provável que esta tenha sido a condição para aderir ao governo: garantia de que não haverá aumento de impostos para as pessoas físicas nem para as empresas. Além disso, exigem que o governo não viole o “freio na dívida”, uma norma inscrita na Constituição em 2009 que impede déficits federais maiores que 0,35% do PIB (e vários estados adotaram freios semelhantes).
De onde então virá o dinheiro? Aparentemente, o governo pretende torcer um pouco as regras para acomodar os dois opostos: fala-se em vitaminar o banco de desenvolvimento estatal, alongar dívidas e mudar a fórmula de cálculo do déficit orçamentário. Mesmo assim, espera-se um embate contínuo entre o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder dos democratas livres, e o vice-chanceler e ministro de Assuntos Econômicos e Ação Climática, Robert Habeck, um dos dois líderes dos verdes (a outra líder, Annalena Baerbock, será a primeira mulher ministra do Exterior do país).
Também será difícil que a coalizão se entenda sobre uma reforma da previdência — necessária e premente ante o envelhecimento da população. Os movimentos em prol do trabalho de imigrantes podem atenuar a crise com a entrada de contribuintes mais jovens, mas quase com certeza não serão suficientes para evitá-la.
Em suma, salta aos olhos que os alemães sejam pragmáticos a ponto de buscar os tópicos de consenso, em vez de focar na cizânia. Isso vale para esta coalizão que inicia um governo agora, mas vale, possivelmente ainda mais, para os 16 anos de governo de Angela Merkel.
Com seu estilo polido, sempre em busca de consenso, sem deixar de ser firme, ela obteve pela lucidez o que nem o imperador prussiano Guilherme II, na Primeira Guerra Mundial, nem o ditador nazista Adolf Hitler, na Segunda, conseguiram pela ira: a Alemanha se estabeleceu na posição de líder da Europa.
Há muito criticada por não ter sido capaz de formar um sucessor, ela no final das contas parece tê-lo feito… na oposição. Scholz, um socialista empedernido na juventude, que advogava em causas trabalhistas nos anos 1970, acabou se tornando uma espécie de centrista que se move além da ideologia.
A transição começou a ser notada no início do milênio, no último governo social-democrata, de Gerhard Schröder, que promoveu um corte de benefícios trabalhistas para combater um nível de desemprego altíssimo (5 milhões de pessoas, numa população de 80 milhões, proporcionalmente semelhante ao que o Brasil tem hoje). Scholz era então secretário geral do partido e se tornou a face das mudanças — que efetivamente fizeram cair o desemprego, mas geraram ressentimentos por insuflar um contingente de trabalhadores mal remunerados (para o padrão alemão). O modo pragmático com que ele defendia as reformas lhe valeu o apelido de Scholzo-mat (uma alusão a um ser autômato, como se fosse uma máquina).
Esse pragmatismo o levou a ser um defensor da ortodoxia fiscal, especialmente como ministro das Finanças de Merkel. Parecia que os social-democratas estavam acabados, tendo perdido gradualmente seu apoio nas bases e sofrido uma derrota eleitoral fragorosa em 2017. Então veio a pandemia, e a dupla Scholz-Merkel impressionou seus críticos, liberando uma ajuda estatal de centenas de bilhões de euros para trabalhadores e empresas. Scholz afirmou que a disciplina fiscal dos anos anteriores criou as condições para o gasto social numa época de emergência. Outra interpretação é que ele, aos 63 anos, esteja voltando ao “cerne” social-democrata.
Em qualquer dos dois casos, Scholz se transformou durante os anos de contato com Merkel. “Tivemos que lidar com algumas grandes crises”, ele disse em seu discurso de posse, no dia 8 de dezembro, dirigindo-se à sua ex-chefe. “Isso nos uniu como uma solda. Entre nós sempre houve colaboração com muita confiança.”
Neste processo de solda, Scholz soube externar um temperamento bastante similar ao de Merkel. Sereno, transmite estabilidade como ela — ao ponto de ter adotado o mesmo gesto típico de unir as mãos em forma de diamante.
“Merkel está além da política partidária, ela é a voz da razão”, disse o escritor e jornalista alemão Robin Alexander à revista The Economist. “Ser o centro da política como uma pessoa, foi isso que Merkel fez com tanta maestria, e é isso que Scholz almeja.”
“O novo governo vai ser essencialmente de continuidade”, afirmou Holger Schmieding, economista-chefe do banco Berenberg, uma das empresas financeiras mais tradicionais do mundo.
“Não espere muitas mudanças”, afirmou no início de dezembro Nils Schmid, um porta-voz do SPD.
“Não vai mudar muita coisa”, disse o próprio Scholz aos funcionários do seu gabinete, após assumir o cargo de chanceler.
“Isso é típico da Alemanha: mudança e continuidade no mesmo pacote”, afirmou Cem Özdemir, um deputado do Partido Verde que ajudou a negociar a coalizão do novo governo.
A alternância de poder, saudável para qualquer democracia, se deu não pela rejeição absoluta do governante e sua substituição por um projeto de sinal trocado, mas pelo contato prolongado entre adversários com plena consciência de que são, também, compatriotas com mais interesses congruentes do que conflitantes.
A maior lição — de esperança — da troca de poder na Alemanha é virar do avesso a famosa frase do romance O Leopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa. “Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”, diz o personagem Tancredi, um aristocrata que quer manter seus privilégios. O recado alemão é: se quisermos promover mudanças, é preciso que tudo fique como está.