13/12/2018
Por: Jorge Caldeira
Empregando as técnicas da antropologia para lidar com os brasileiros pobres ela criou conceitos radicalmente novos. Sofisticando a análise com estatística, modelou políticas sociais inovadoras. Implementando tudo isso no governo comandou uma revolução em políticas sociais. Dez anos após sua morte, a herança é cada vez maior.
No início da década de 1970, Ruth Cardoso teve de enfrentar um dilema. Era antropóloga e estudava temas contemporâneos de sua sociedade – uma combinação que era muito incomum naqueles tempos. Os profissionais da área eram treinados para estudar a cultura de outros povos. No caso brasileiro isso queria dizer, quase obrigatoriamente, estudar as culturas das centenas de povos nativos que viviam e vivem no território nacional.
Tratava-se, sem dúvida, de uma tarefa gigantesca e fundamental, num momento decisivo. Naquele momento, ainda em plena ditadura militar, estavam sendo organizadas tanto a pós-graduação como as instituições de financiamento à pesquisa. A combinação de ambas permitia, enfim, que os brasileiros pudessem encarar o desafio de conhecer as muitas culturas do território de forma menos enviesada.
O desafio vem sendo resolvido pelos antropólogos a contento – mas não era esta a espécie que movia a curiosidade intelectual de Ruth Cardoso. Sua tese de doutorado, defendida em 1972, era um estudo de como os imigrantes japoneses se adaptaram à vida na cidade de São Paulo, mantendo suas diferenças culturais próprias mas também modificando-as para o novo ambiente – uma diferença e uma igualdade, os componentes essenciais de uma identidade.
O emprego das técnicas da disciplina para uma realidade cultural na qual o pesquisador estava imerso era tão estranho à ortodoxia da disciplina que a pesquisadora acabou sendo “convidada” a deixar a disciplina, na companhia de Eunice Durham, colega que também partilhava o projeto.
Ambas foram para a área de Ciência Política. Embora a acolhida permitisse uma porta para o projeto, também ali as estreitezas mentais necessárias para a evolução departamental do pensamento cobraram seu preço: não havia espaço para pesquisa.
Ruth Cardoso juntou-se então com Lúcio Kowarick. Embora cientista político, ele tinha interesse num estrato sociológico que, no tempo, era definido como “marginalizados”. Vale a pena explicar um pouco. Na época supunha-se que a economia formal, capaz de absorver apenas uma fração da força de trabalho urbana, era o único universo capaz de gerar renda. Todo o restante acabava classificado na categoria de “marginalizados”, principalmente no sentido de serem pessoas que não teriam relações positivas nem com a produção de mercado nem com a atividade política regular.
(Uma nota particular. Convivia muito com Ruth Cardoso nesta época. E uma das grandes lembranças que tenho vem de sua peculiar maneira de explicar ao jovem que começava o trabalho intelectual. Dizia que ele nunca começa sem uma boa hipótese. Mas também que depois da hipótese vinha o trabalho de recolher dados. E depois dele o de verificar as relações entre dados e hipóteses. Tudo isso era necessário, mas não seria importante. Importante mesmo vinha ser a tarefa de jogar fora as hipóteses inúteis e ficar apenas com aquelas que ainda mantinham relações relevantes com os dados).
Bastou um breve período em contato com as populações para perceber como ela praticava os preceitos. Em 1972, quando os estudos começaram, ainda era corrente o emprego do termo “subúrbio”. Designava uma área de transição entre as poucas manchas urbanas e a vastidão das áreas rurais. De cara Ruth Cardoso passou a empregar “periferia”, pensando num vasto aglomerado de populações que estavam em transição para a cidade.
Apenas cinco anos depois do início do contato os dados novos apareceram com toda relevância – e os conceitos antigos foram jogados fora, para que a explicação fosse adequada à realidade. Um exemplo simbólico entre muitos pode ser encontrado neste trecho de “Favela, conformismo e invenção”, texto publicado em 1977:
“Dentro de uma mesma situação social encontramos manifestações conflitantes e complementares que não podem ser explicadas pelo conceito de cultura da pobreza tal como foi elaborado. (…) Voltemos à favela, em especial a outro morador, que contou seus planos para melhorar de vida. Tudo dependia de uma máquina de escrever, porque no dia que pudesse tê-la estaria equipado para dar início a suas atividades como comerciante e, consequentemente, deixaria de ser pobre. Imaginou como escreveria cartas para seus conhecidos no nordeste oferecendo perfumes de sua fabricação, que poderiam ser comprados pelo correio. Iniciadas as vendas talvez até fosse possível comprar um carro para levar as encomendas e estender as ofertas para outros produtos. Os lucros viriam facilmente, a mudança de vida seria mera consequência. A família teria uma boa casa, os filhos, um bom nível educacional. Como prova da realidade de seu sonho o favelado me mostrou um envelope com o logotipo de sua empresa. E, na presença deste envelope, o favelado já é empreendedor. É certo que a história vem entremeada de considerações sobre as dificuldades. Mas o projeto existe e produz tentativas. O comércio de perfumes já está em marcha e as vendas na favela fornecem, neste momento, uma complementação importante da renda da família”.
Neste curto trecho a antropóloga joga fora a hipótese inicial da cultura da pobreza para explicar adequadamente os dados de campo que mostraram um empreendedor e um mercado no espaço da favela – que o conceito inicial descrevia como parte da “marginalidade”. O trabalho de campo leva ao contato com dados inesperados, o antropólogo treinado para este contato descreve o que aprendeu de novo e renova os conceitos.
Num mundo acadêmico treinado para valorizar conceitos e dar pouco valor ao mundo real, a forma de pensar de Ruth Cardoso era uma exceção gritante. Mas isso não era tudo. Depois de realizar uma radical reconceituação sobre a população urbana das periferias, ela partiu para um desafio ainda maior. Formulou seguidos projetos destinados a detalhar os novos conhecimentos – com novas metodologias.
Wilmar Faria era um grande especialista em técnicas quantitativas. Juntos, os dois começaram a esmiuçar cada aspecto das novas descobertas através de estudos quantitativos. Assim foram calibrando uma série de projetos de política social, testando cada variável em ambiente de laboratório. Os projetos funcionaram como base para a formação de uma nova geração de antropólogos treinados no estudo do presente com as técnicas do presente.
Todo este conhecimento estava pronto quando o acaso interveio. O marido de Ruth Cardoso foi eleito presidente da república. O ato, em 1994, significava a entrega à mulher do presidente do comando de uma vasta rede de favores clientelísticos estatais, função considerada adequada a uma esposa de mandatário.
É preciso resumir: o primeiro ato do presidente foi um decreto que desmantelou a estrutura clientelista e a substituiu por uma rede – sim, este termo foi empregado em 1994. A função desta rede seria a de substituir a antiga ação clientelista por mecanismos de política social fundados nos conceitos e modos estudados por Ruth Cardoso.
Um exemplo simbólico. Através do Bolsa Escola o governo destinava renda a cidadãos individuais. As regras eram claras: uma mãe (até isto era parte dos estudos anteriores) se cadastrava, provava uma situação, ganhava um cartão e recebia o benefício. Existia uma contrapartida clara e de interesse governamental (manter o filho na escola). Não era favor clientelista, mas relação entre entidades capazes.
Este exemplo permite entender o que veio depois. O programa foi renomeado, a contrapartida desapareceu. Voltou o favor, com a figura do governante recendendo ao arcaico rei que dá a graça, ou ao antigo “pai dos pobres”, que faz gesto pessoal com o dinheiro publico.
Mas isto não é parte da portentosa obra de Ruth Cardoso. Quem quiser conhece-la, consulte “Ruth Cardoso, Obra Reunida”. Organizada por Teresa Caldeira, sua orientanda que hoje é titular em Berkeley, permite ver um Brasil que ainda pode ser, visto por uma intelectual muito poderosa.