09/06/2022
“Quando deixamos de entender o mundo”, o docudrama literário do chileno Benjamín Labatut, é um dos livros mais impactantes do ano
Carlos Eduardo Lins da Silva*
Um dos livros mais impactantes publicados neste ano tem o instigante título de Quando deixamos de entender o mundo. Seu autor é o chileno Benjamín Labatut, nascido em 1980.
O livro é composto por cinco textos que podem ser classificados como docudrama literário, romance histórico, romance não ficcional ou, como o próprio Labatut os define, “obras de ficção baseadas em fatos reais”.
O docudrama é um gênero bem estabelecido no cinema, mas também tem sólida tradição na literatura. Um de seus maiores expoentes é o peruano Mario Vargas Llosa, com o monumental A guerra do fim do mundo (1981), que recriou a saga de Antonio Conselheiro em Canudos.
Vargas Llosa também empreendeu outros trabalhos excelentes de pesquisa histórica e documental para contar episódios da ditadura de Joaquín Balaguer na República Dominicana (A festa do bode, 2000) e da biografia do diplomata e revolucionário irlandês Roger Casement (O senho do celta, 2010).
Uma das caraterísticas que distinguem o livro de Labatut é que ele se dedica a personagens que foram cientistas de grande renome, cuja atividade os levou aos limites da sanidade mental e, em vários casos, a destinos trágicos.
O título em quase todas as 22 línguas para as quais já foi traduzido difere do original castelhano, que é Un verdor terrible (um verdor, ou viço, terrível). A referência a essa expressão vem no último conto (e o mais curto), “O jardineiro noturno”, em que o personagem principal é provavelmente fictício.
Mas o jardineiro “foi matemático e agora fala da matemática como ex-alcoólatras falam de bebida, com uma mistura de medo e saudade”. Neste conto, o autor aparece explicitamente como o narrador e relata em primeira pessoas suas conversas com o personagem.
O jardineiro atribui à matemática todo o mal do mundo contemporâneo por causa dos avanços, muitas vezes incompreensíveis para seus próprios formuladores, que levaram à mecânica e à física quânticas.
No último capítulo, ressurge um dos principais personagens (este real) do primeiro capítulo, o químico alemão Fritz Haber, que criou a pioneira arma de destruição em massa, o cloro gasoso, um gás verde (“o verdor terrível”?), que matou milhares de soldados na Primeira Guerra Mundial.
Mas Haber também foi quem conseguiu ineditamente extrair nitrogênio do ar e, com ele, criar fertilizantes que salvaram a vida de milhões de pessoas que, sem eles, teriam sucumbido às grandes fomes do início do século passado.
Os personagens muitas vezes se entrelaçam. O jovem matemático Karl Schwarzschild, que surpreendeu Einstein ao resolver algumas equações da teoria geral da relatividade, morreu em uma trincheira na Primeira Guerra, talvez vítima do gás inventado por Haber.
O jardineiro noturno desiste da ciência e da vida em sociedade ao se defrontar com as fórmulas de Alexander Grothendieck, cuja vida real se parece muito com a do personagem do último capítulo, e é descrita por Labatut no conto que tem o mesmo título do livro.
Grothendieck, aos 42 anos, no auge da fama e do prestígio acadêmico, largou tudo e foi viver primeiro numa comuna e depois como ermitão. Antes, ele inspirou outro personagem, o japonês Shinichi Mochizuki, que comprovou uma de suas mais intrincadas conjeturas matemáticas e também abandonou a ciência.
O físico Werner Karl Heisenberg, a quem é atribuído usualmente o título de “pai da mecânica quântica”, é outro personagem que cruza direta ou indiretamente com vários dos demais, e quem ouve de um bêbado num bar a pergunta “quando deixamos de entender o mundo?”, que é o subtexto de todo o livro.
Labatut se escora na imaginação para orientar suas ideias. Como disse em entrevista ao jornalista Ruan de Souza Gabriel, de O Globo: “A ficção aponta a estranheza, a ambiguidade, que a História, a ciência e a não ficção não admitem. Fornece o que a realidade jamais pode dar: sentido. A menos que estejam entrelaçados a uma história, os fatos mais escondem do que mostram”.
Na mesma entrevista, ele afirma: “A ciência me fascina por fazer perguntas fundamentais, mas a liberdade da literatura é total, permite tratar todos os aspectos do fenômeno humano (…). A ciência tem método. Já a literatura funciona com a lógica dos sonhos. É uma forma de pensamento incendiária. Por não ter sistema ou importância, abre caminho ao desconhecido. Nos permite ser adeptos do mistério em um mundo obcecado em revelar tudo”.
*Carlos Eduardo Lins da Silva é professor do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo e coordenador do Centro Celso Pinto no Insper. Graduado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, é mestre em Comunicação pela Michigan State University, doutor em Comunicações pela Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo (ECA-USP) e livre-docente pela mesma universidade. É autor de diversos livros sobre jornalismo, comunicação e relações internacionais.