25/05/2022
Para tratar de possíveis limitações à liberdade, John Stuart Mill introduz o Princípio do Dano, a partir do qual argumenta que as liberdades individuais são válidas contanto que não causem danos a terceiros
Maria Fernanda Du Mont Lacombe
O filme O Povo contra Larry Flynt retrata a história do fundador da revista pornográfica Hustler, que ao longo de sua vida foi acusado e processado por delitos como obscenidade, difamação e organização criminosa. Defendendo sua liberdade para publicar seu conteúdo (sustentando que os consumidores poderiam apenas ignorar ou mesmo descartar seu produto) e para satirizar e criticar figuras públicas, tornou-se um representante da defesa da livre expressão assegurada pela Primeira Emenda à Constituição norte-americana. Ao se analisar o segundo capítulo, intitulado “Da Liberdade de Pensamento e Discussão”, do livro Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, vê-se que o autor ressalta a importância dessa liberdade para uma sociedade democrática e questiona se essa deve ser limitada ou não. Entre os principais argumentos de Mill está o perigo de se pressupor a infalibilidade ao se impor uma ideia, a argumentação de lados opostos como forma de estruturação e fortalecimento de crenças, a suposição de superioridade intelectual e moral por parte de quem censura e o benefício social da existência de um amplo mercado de ideias.
Em vista disso, questiona-se a liberdade de Flynt para publicar sua revista contendo fotos de mulheres nuas e disponibilizá-la em espaços públicos, como supermercados, onde crianças e jovens, ainda em desenvolvimento intelectual e moral, possam ter acesso. Para tratar de possíveis limitações à liberdade, Mill introduz o Princípio do Dano, a partir do qual argumenta que as liberdades individuais são válidas contanto que não causem danos a terceiros. Aponta-se, nesse sentido, para os efeitos da pornografia na população — mesmo naqueles que não consomem esse conteúdo —, como o desencadeamento de comportamentos ilegais e/ou patológicos apontados na obra Os Custos Sociais da Pornografia, de Mary Eberstadt e Mary Anne Layden.
Adicionalmente, a acusação de difamação e danos emocionais pelo pastor Jerry Falwell (vítima de uma sátira publicada na revista) também desafia os argumentos de Mill. A sátira, mesmo que não condenada como difamação, resultou em danos emocionais e morais para Falwell. Enquanto juízes decidiram que a Primeira Emenda possui maior importância do que direitos individuais, seria importante assegurar que tal propaganda não tenha efeito irreversível sobre a reputação do pastor. Não obstante, apesar de Mill ser contra a censura a informações falsas e ideias contraditórias, com o intuito de promover o diálogo racional, a livre expressão deve ser vigiada (jamais tolhida) por todo cidadão, para se certificar que a população tenha o total acesso a informações e seja capaz de discernir os fatos que justifiquem os pontos de vista expostos. Ademais, aponta-se a significância da publicação de conteúdos em mídias de amplo alcance. O autor de There’s No Such Thing as Free Speech: And It’s a Good Thing, Too, Stanley Fish, argumenta que não existe um ambiente onde a fala é livre de consequências ou violações sobre interesses de outros.
Contudo, permanece em questão quem seria responsável por censurar e impor limites sobre a liberdade de expressão. Vê-se hoje que há crescente prática de redes sociais — entidades privadas — impedindo a publicação ou circulação de certos temas em suas plataformas. Mill ressalta em seu texto a ilegitimidade da censura feita pelo governo ou por pessoas. Para fugir de uma entidade com poder de controle, é de extrema importância haver uma sociedade rica em conhecimento, na qual cada indivíduo tenha a capacidade de refutar argumentos e procurar a verdade. Por sua vez, a análise de casos de injúria e difamação deve ficar a cargo do sistema jurídico, que, uma vez acionado, deve ser capaz de determinar o efeito concreto de certo discurso e penalizar o acusado quando considerar pertinente. Ressalta-se também a possibilidade de o atingido responder publicamente e refutar críticas ou acusações que considerar injustas, promovendo assim a troca construtiva de ideias, fruto da liberdade de expressão.
Por fim, é de extrema importância ressaltar o valor da liberdade de expressão em temas como política, ideologia e ciência. O fluxo de conceitos divergentes permite o constante questionamento e aperfeiçoamento de ideias amplamente aceitas que, como pontua Mill, poderiam se transformar em dogmas mortos. Uma sociedade sujeita à censura, além de reprimir pessoas, está retardando seu desenvolvimento.
Referências
O Povo Contra Larry Flynt (legendado). Direção: Miloš Forman. Produção: Oliver Stone, Janet
Yang, Michael Hausman. YouTube. 2 de set. 2013. 2h9min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6MSGltX1I6A>. Acesso em: 11 de mar. 2022.
STUART MILL, John. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011. 176 p.
EBERSTADT, Mary; LAYDEN, Mary Anne. Os Custos Sociais da Pornografia. 2018. 96 p.
FISH, Stanley. There’s No Such Thing as Free Speech: And It’s a Good Thing, Too. 1994.