10/05/2022
Evento no Insper apresentou relatório que analisa o uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados para limitar o acesso a dados públicos com base na Lei de Acesso à Informação
Tiago Cordeiro
Recentemente, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) impôs sigilo a respeito de reuniões do presidente da República com pastores acusados de cobrar propina para liberar recursos do Ministério da Educação. A justificativa usada foi a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018 e que entrou em vigor em meados de 2020, estabelecendo normas mais rígidas em relação a coleta, armazenamento, tratamento e processamento de dados pessoais, sejam eles digitais ou não, por parte de empresas e órgãos públicos.
O caso chama a atenção para um risco — o de que a LGPD seja utilizada, indevidamente, para limitar o acesso legítimo a dados de caráter público com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), que em maio completa dez anos e representa um importante avanço no acesso transparente a dados públicos relevantes.
Um levantamento preliminar realizado pela agência de dados independente Fiquem Sabendo, divulgado em agosto de 2021, já listava 79 casos em que a Controladoria-Geral da União e a Comissão Mista de Reavaliação de Informações analisaram pedidos negados por outros órgãos com base na LGPD. A negativa foi mantida em 39 casos.
Com o objetivo de ampliar a leitura sobre a frequência com que incidentes desse tipo têm acontecido, o Insper e a Fiquem Sabendo realizaram o estudo “Impactos da LGPD nos pedidos de LAI ao governo federal”.
Desenvolvido com o apoio do Programa de Transparência Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), com financiamento da Fundação Heinrich Böll, o trabalho se apoiou na leitura de todos os pedidos de acesso à informação que mencionavam a LGPD na base da Controladoria-Geral da União. Os analistas investigaram o conteúdo das solicitações e a maneira como a LGPD foi citada nas respostas.
As situações foram submetidas a um conjunto de especialistas: Bruno Morassutti, cofundador e coordenador de advocacy da Fiquem Sabendo; Gregory Michener, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas; Ivar Hartmann, professor de Direito do Insper; Natália Mazotte, coordenadora do Programa Avançado de Jornalismo do Insper, Reinaldo Chaves, coordenador de projetos da Associação Brasileira de Jornalismo (Abraji), e Yasmin Curzi de Mendonça, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito.
O estudo foi divulgado durante o evento “Transparência pública e privacidade de dados pessoais: um caminho harmônico?”, realizado no dia 28 de abril no Insper, em São Paulo. Participaram Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União; Bruno Bioni, diretor fundador do Data Privacy Brasil e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados; e Maria Vitória Ramos, diretora e cofundadora da Fiquem Sabendo. Natália Mazotte ficou a cargo da mediação.
Os participantes concordaram que as duas leis respondem ao mesmo princípio da transparência e não são excludentes entre si, nem há prevalência de uma em relação a outra — ainda que possa haver algum debate em relação à antiguidade da LAI em relação a LGPD. E também apontaram para a relevância da pesquisa.
“Agradeço ao estudo de vocês, porque me fez pensar nessa questão, que para mim, à primeira vista, não parecia tão evidente”, afirmou Bruno Dantas. “É muito comum que informações que nada têm de sigiloso, que nada têm de conteúdo que exponha a privacidade ou a segurança do Estado, cheguem ao tribunal com a classificação de sigilosas. Existe ainda essa cultura entre os agentes públicos.”
O ministro mencionou os cinco princípios básicos da administração pública que estão presentes na Constituição Federal e condicionam o padrão que os órgãos do governo devem seguir: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. “Um dos princípios mais importantes é exatamente a publicidade, que orienta as regras de transparência pública. E a autoridade pública não faz favor a quem quer que seja quando presta contas e fornece informações. Isso é uma obrigação”, disse.
Por sua vez, Bruno Bioni, da Data Privacy Brasil, disse que a LGPD tem sido usada como pretexto para a falta de transparência pública, mas representa um avanço jurídico. “O relatório (divulgado durante o evento) é muito interessante porque traz um novo enquadramento para podermos fazer as discussões baseadas em dados”, afirmou. “Embora o relatório mostre que existem algumas zonas cinzentas, com controvérsias sobre qual seria a fundamentação jurídica para o compartilhamento de dados, a LGPD é mais amiga do que inimiga da Lei de Acesso à Informação.”
O relatório partiu de 1.744 solicitações via LAI que mencionavam de forma significativa a LGPD, nas perguntas, nas respostas ou nos recursos, referentes a 2019, 2020, 2021 e até 18 de janeiro de 2022. Realizou uma amostragem aleatória dentro desse universo e submeteu a uma leitura criteriosa em quatro camadas.
“A análise caso a caso mostrou que são numerosas as situações em que, embora constem no repositório da CGU como acessos concedidos, as solicitações não foram acatadas — foram ao menos 84 situações identificadas dentro da amostra”, aponta o estudo. “Aparecem também situações em que a LGPD é citada aparentemente como medida inibidora ou protelatória.”
Além disso, como apontou Maria Vitória Ramos, da Fiquem Sabendo, durante o evento, “chama a atenção a quantidade de pedidos, quase 10% da amostra, que têm bases anonimizadas, sem dados pessoais de identificação, e que mesmo assim foram recusadas, com o argumento genérico de que poderiam ferir os preceitos da LGPD”.
O levantamento apontou ainda que, de cada quatro pedidos via LAI negados totalmente ou parcialmente com o argumento da LGPD, um tem indícios de que a recusa não está fundamentada. “Restou evidente, portanto, entre os diversos achados da pesquisa, que serão esmiuçados no decorrer deste relatório”, aponta o texto, “que o uso indevido da LGPD passou a ser uma barreira para obtenção de dados por meio da LAI.”