20/10/2016
Não dá para exagerar na análise. Em 2012, os eleitores votaram em Fernando Haddad e ninguém disse que São Paulo era uma cidade “de esquerda”. Da mesma forma ninguém vai dizer que o paulistano, quatro anos depois, anda lendo Milton Friedman no metrô e torcendo pela privatização do Autódromo de Interlagos. Não é por aí. Estas eleições foram, antes de tudo, a história de um grande acerto de campanha, de um lado, e da crise terminal de um ciclo de poder, de outro. Doria ganhou as eleições no Jardim Paulista, com pouco mais de 70% dos votos, mas também no Capão Redondo, com mais de 4096. muita gente se disse surpresa com o voto dos mais pobres em um candidato milionário. O ex-ministro Renato Janine Ribeiro foi taxativo: “Parou a grana, eles mudaram de lado”. Na visão de Janine, pessoas pobres votam “por grana”. Tentei imaginar pelo que votariam, nesse raciocínio, os mais ricos. Por ideias? Preocupações éticas? Com a roubalheira da Petrobras? Janine não explica. Dá a entenda que votar por ideias é um privilégio de tipos como ele, que sabem das coisas. Com os mais pobres é diferente. Eles votam por grana, e por isso traíram sem pestanejar quem tanto fez por eles nestes últimos anos.
Linha parecida adotou a professora Marcia Arnaud, da PUC-SP. Disse ela que faltou “caráter” aos pobres que votaram em João Doria. gente de caráter, na sua visão, deveria votar em Fernando Haddad. Caráter tem lado. Virtude tem lado. De certo modo foi o que li em um artigo acusando Fernando Holiday, o jovem negro e liberal que se elegeu vereador, de não ser exatamente um “negro”. Na visão do autor do texto, não se nasce negro, mas torna-se negro quando se adere a um certo tipo de retórica. Dispensável dizer de que retórica se trata.
Tudo isso, por óbvio, é uma grande bobagem. As pessoas são livres para estabelecer seus juízos, e não há nenhuma métrica confiável que vincule o acerto de uma opção política ao padrão de renda ou ideologia de quem escolhe. É perfeitamente razoável supor que pessoas com menor renda, na periferia de São Paulo, encontrem melhores razões para selecionar bem o seu candidato do que um tipo de classe média alta que deixa de ir votar para beber um bom vinho, no fim de semana, em Campos do Jordão. E o contrário também pode ser verdade.
É perfeitamente possível que moradores da periferia tenham preferido votar em um candidato com histórico de bom gestor, que fala em abrir os postos de saúde à noite e reduzir a imensa fila de atendimentos do SUS, que promete dar um cheque de eficiência nos serviços públicos.
O compositor Tom Jobim, ele costumava dizer que, no Brasil, sucesso é ofensa pessoal em facilitar a vida de quem quer empreender e gerar empregos. Um sujeito que de fato tem histórico de bom gestor e que parece apresentar ideias novas. Que não tem medo de falar em parceria público-privada, mas que promete fiscalizar e descredenciar as organizações sociais que no mostrarem um bom desempenho.
O eleitor agiu certo ao fazer essa escolha? Ninguém sabe. O voto é um tipo de “bem experimental”. Você pode avaliar algum retrospecto, pode ouvir a opinião de quem você confia, mas no fundo faz uma aposta. Unta aposta fácil: se vote errar, pode dividir o prejuízo com todo mundo. Ninguém vota do mesmo jeito que escolhe um apartamento. Vota-se a partir de impressões frequentemente difusas. Vota-se no perfil construído por cada candidato. E vale prestar atenção ao perfil que acabou ganhando o coração de ricos e pobres na cidade de São Paulo, nestas eleições. A ex-primotoria ministra inglesa Margaret Thatcher. Ela fez o elogio do trabalho e da disciplina.
Dória assumiu um tipo de discurso raro na política brasileira: a retórica do empreendedor de sucesso. Do sujeito que trabalha duro desde os 13 anos e que comprou a mansão com o próprio dinheiro. Que não disfarça e trata de dignificar” a própria riqueza. Ela é não apenas legitima, mas virtuosa: gera progresso e oportunidades para os outros. Boa parte da tradição do bom conservadorismo anglo-saxônico foi construída sobre eiS CS valores. A ênfase no caráter individual e a recusa da visão de que “os pobres estariam melhor se fossem mais pobres desde que os ricos estivessem menos rio os A frase é de Margaret Thatcher, em seu discurso de despedida.
Doria não é um conservador, mas fez um ensaio nessa direção. O elogio do trabalho, da auto-disciplina, da virtude do self-made man. Foi apenas um ensaio, mas parece ter sido bem entendido pelos mais pobres, ao menos nestas eleições. Perde tempo quem tenta enquadrar um politko como Doria na tradicional clivagem esquerda e direita. Há muito esses conceitos não refletem mais o que se passa na polida brasileira. Se ele propõe conceder a gestão do Parque lbirapuera à iniciativa privada, melhorando os serviços e reduzindo custos, o que isso teria a ver com ideologia? O Central Park, em Nova York, tem gestão privada e ninguém pergunta se a turma lá é de esquerda ou de direita.
The Washington Post tentou comparar Dona a Donald Trump. Besteira. Doria não disse estultices na campanha e é perfeitamente indiferente à retórica do conservadorismo cultural. seu espelho, na política americana, é Michael Bloomberg, não Trump. Bloomberg é um politico pragmático que implantou o modelo de charters schools na periferia de Nova York e fez uma revolução na educação da cidade. Os sindicatos de professores não gostaram. Mas quem disse que os sindicatos devem pautar a politica pública? E mais: quem disse que os interesses dos sindicatos coincidem com os interesses dos mais pobres? Foi o mesmo que ocorreu com Thatcher e sua queda de braço com os mineiros ingleses. Políticos reformadores, cedo ou tarde, baterão de frente com corporações entrincheiradas na máquina do Estado. há quem diga que um discurso como esse só funcionaria numa cidade como São Paulo. Lugar em que “essa coisa de capitalismo pegou”, como ouvi de um sindicalista, tempos atrás. Tom Jobim costumava dizer que, no Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal. Sob esse prisma, quem sabe as eleições deste ano, em São Paulo, contenham uma novidade. Ninguém deu bola para a conversa de que um tipo rico e de bem com a vida como Dória só podia estar escondendo alguma coisa. Oxalá seja o prenúncio de um país que sabe julgar as pessoas por suas ideias e sua competência, não pela origem de classe. Se for assim, salve, Tom Jobim, que há muito nos avisou sobre essas coisas.
Fonte: Revista Época – SP 10/10/2016