07/06/2022
Pesquisas mostram como os sistemas educacional e político impedem transformações substantivas no quadro socioeconômico brasileiro, diz o economista Michael França
Leandro Steiw
Dois trabalhos recentes do Núcleo de Estudos Raciais, ligado ao Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, esmiúçam a desigualdade entre brancos e negros no Brasil. O primeiro estudo, ainda em andamento, mostra que a diferença entre o número médio de anos de estudo de brancos e negros diminuiu no Brasil, mas existe uma lacuna relevante no desempenho escolar entre esses dois grupos. A segunda pesquisa, Desigualdade racial nas eleições brasileiras, indica que candidatos brancos têm o dobro de chance de se elegerem deputado federal ou estadual em relação a candidatos negros.
A disparidade no desempenho educacional já estava visível na análise dos dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). “Se os estudantes brancos entrassem de férias e, depois de dois anos voltassem à escola, mesmo assim eles estariam à frente dos negros”, diz Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais, que tem conduzido uma série de estudos com os também economistas Sergio Firpo, Alysson Portella e Rafael Tavares.
Segundo França, a educação brasileira ficou em segundo plano durante muitos anos. Poucas pessoas tinham acesso à educação. “Depois da década de 1980, começou um processo de ampliação da educação no Brasil e, se olharmos tanto para brancos quanto para negros, a escolaridade foi aumentando ao longo do tempo”, afirma. Desde então, constatam-se dois pontos positivos: 1) a média dos anos de escolaridade ampliou e a lacuna entre os dois grupos diminuiu nos ensinos fundamental, médio e superior; 2) em todos os estados do Brasil, o desequilíbrio racial no ensino superior diminuiu quando se compara o percentual de brancos e negros em 2009 e 2019.
França cita diversos fatores que contribuíram para a redução da disparidade. “Tivemos, desde o início dos anos 2000, uma série de políticas voltadas para democratizar o ensino superior, como a ampliação de universidades, o Prouni, o Fies, a lei de cotas”, diz. “Isso ajudou a aumentar a participação percentual de negros em todos os estados do Brasil e a diminuir o desequilíbrio racial. Claro que a razão custo-efetividade dessas políticas é outra questão. O ponto é que mudou o desequilíbrio racial no ensino superior. Porém, as boas notícias param por aqui.”
Os pesquisadores observaram que, na pós-graduação, o desequilíbrio racial entre brancos e negros continua muito alto em todos os estados brasileiros. Além disso, o hiato no desempenho escolar entre brancos e negros também aparece nos dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ainda em análise pela equipe do Insper. “Houve uma piora no desempenho racial entre brancos e negros no Enem em todos os estados do país no período estudado de dez anos”, afirma França. “Na evolução ao longo do tempo, também não se percebe o fechamento dessa lacuna em nenhuma área. Redação, por exemplo, foi uma área na qual cresceu o gap.”
Para França, o país precisa melhorar em relação ao desempenho escolar entre brancos e negros tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, para assim começar a avançar como sociedade. “Existem estudos, no caso dos Estados Unidos, que mostram os resultados de longo prazo na vida da pessoa uma vez que se fecha essa lacuna de desempenho escolar”, diz. “Diminuem a lacuna de rendimentos, a taxa de desemprego e a probabilidade de ser preso e melhoram as condições de saúde. De fato, fechar o gap educacional entre brancos e negros ajuda a melhorar as condições socioeconômicas. Costumo falar que essa é uma das melhores ferramentas na luta contra as desigualdades sociais e contra o racismo.”
A pesquisa “Desigualdade racial nas eleições brasileiras” indica um relativo equilíbrio racial em relação ao percentual de candidatos negros nos dois últimos pleitos para deputados federal e estadual. No entanto, a desproporção permanece alta na quantidade de pessoas negras eleitas. Outra constatação do estudo é que os candidatos negros recebem, em média, menos recursos de campanha dos partidos.
Em 2018, 3.117 candidatos negros concorreram a uma vaga para a Câmara Federal, mas apenas 124 se elegeram. Entre os 4.425 candidatos brancos, elegeram-se 386. Percentualmente, a diferença na taxa de sucesso — a razão entre número de eleitos e número de candidatos — foi mais do que o dobro para os brancos em relação aos negros.
Como os partidos de esquerda lançam mais candidatos negros que os partidos de direita, mas ambos elegem pouco, a taxa de sucesso da direita é superior. O que não significa um destino mais promissor nas urnas. “Os negros têm se lançado mais na vida política e participado mais, e este é um lado muito positivo: a oferta de candidatos não é muito desequilibrada”, afirma França. “Quando a gente passa para os que são de fato eleitos ou reeleitos, o desequilíbrio racial fica bem alto.”
Inúmeras questões brotam de um sistema político desigual. “Que democracia é esta na qual elegemos sempre e basicamente homens brancos da elite? Essas pessoas vão conseguir nos representar a contento? Alguns até sim, têm boa intenção, mas muitos não”, diz. “Se tivéssemos maior representatividade de mulheres e negros ou de pessoas de origem menos favorecida, será que teríamos essa educação de qualidade tão ruim? Será que uma porção tão alta da população não teria nem saneamento básico? Violência nas periferias, violência policial, assédio sexual contra as mulheres, participação das mulheres no mercado de trabalho, direito reprodutivo das mulheres… será que seria a mesma coisa? Eu penso que não.”
França complementa: “Um homem branco pode até ter boa intenção e ser solidário à causa das mulheres, à causa dos negros, mas, na ordem de prioridade, tende a jogar isso para segundo, terceiro plano. As mulheres terão outras preferências, outras ordens de prioridades e isso afeta a agenda política. A partir do momento que se elegem mais mulheres, negros e pessoas de baixa renda, muda-se a agenda política. A desigualdade estrutural na sociedade brasileira pode começar a mudar daqui a um tempo simplesmente com o fato de alterar as prioridades da política, ou seja, mudando os representantes”.
Para o economista, o problema da desigualdade no Brasil passa pela discussão da representação política. “Com a representação que temos atualmente, acredito que não vamos conseguir transformações substantivas no quadro socioeconômico brasileiro. Eu simplesmente não acredito que o pessoal que está lá vai representar a gente a contento”, afirma.
Financiado com o prêmio que Michael França ganhou do Open Society Foundations, o estudo revela ainda a má distribuição dos recursos eleitorais em diversas perspectivas: entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre homens brancos e homens negros, entre mulheres brancas e mulheres negras. “Entre os negros, a desigualdade de financiamento é maior que entre os brancos. Entre os negros, há mais recursos indo para alguns candidatos e muitos ficando sem, ou com baixo recurso. Já entre os brancos, os recursos estão mais bem distribuídos. Então, existe esse outro desafio que faz com que um percentual ainda maior de candidatos negros tenha chance quase nenhuma”, diz França.
Na literatura acadêmica, a discriminação ou não dos eleitores em relação aos candidatos por gênero ou raça é uma discussão em aberto. Porém, sabe-se que campanhas eleitorais bem-sucedidas costumam ser caras. “Conforme menos recursos as pessoas tiverem, menos conhecidas elas vão ficar e menos se tornarão viáveis para aparecer como uma opção para o eleitor”, afirma França. “Então, podem até ser bons candidatos — você pode ter excelentes candidatos, na verdade —, mas não terão essa expressão junto ao público. Na hora de escolher, a população acaba votando naquele que tem maior visibilidade.”
Um dos objetivos de um partido é eleger o maior número de candidatos possível, comenta França. “Mas o sistema político reflete a desigualdade da sociedade brasileira: homens brancos de alta renda tem maior visibilidade, maior espaço na mídia, maior rede de influência, maior rede de contatos, capital político, enfim, no final, já possuem algum palanque político”, diz. “Portanto, quando entram na política, muitos desses homens brancos são mais competitivos, enquanto muitos negros, que ainda estão na base da pirâmide social, agora ascendendo aos poucos, ainda não têm todo esse capital social e político e tendem a entrar numa posição de desvantagem.”
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