27/01/2022
O pesquisador e professor Guilherme Fowler analisa o surgimento de unicórnios no momento em que outras pequenas e médias empresas desaparecem do mercado
Leandro Steiw
As empresas de alto crescimento (EACs) são conhecidas pela capacidade de gerar novos empregos. No Brasil, segundo dados mais recentes do IBGE, 70% das vagas são criadas pelas EACs, que representam apenas 0,5% das organizações em atividade. Os brasileiros donos de novos negócios estão entre os mais otimistas em relação à criação de empregos, segundo o ranking mundial do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), à frente de empreendedores de quase todos os países da Europa e de toda a América do Norte. Não existe um consenso na literatura especializada sobre o fenômeno das EACs. Pela definição da OCDE, o clube das nações ricas, são as empresas que crescem, no mínimo, 20% ao ano por três anos seguidos. Nesse universo, existem também as scale-ups, as que crescem aceleradamente de modo sustentado. Economista e doutor em Administração, o pesquisador Guilherme Fowler, professor associado do Insper, analisa como a crise causada pela pandemia da covid-19 afeta esse segmento.
Os autores não têm uma definição única para empresas de alto crescimento e scale-ups?
A literatura é divergente porque o fenômeno das EACs tem várias definições possíveis. A mais utilizada é a da OCDE, da empresa que cresce, no mínimo, 20% ao ano por, no mínimo, três anos seguidos. Tem um pessoal que diz o seguinte: você pode crescer de forma acelerada como resultado de sorte – por exemplo, pode haver um choque positivo no setor em que a empresa atua e, com isso, ela crescer três anos de forma muito acelerada. Mas não necessariamente vai sustentar esse crescimento no longo prazo. Existe um subconjunto das EACs, as chamadas scale-ups, que são as empresas que, efetivamente, crescem de forma acelerada de modo sustentado. Seriam essas empresas que puxariam a fronteira de produtividade da economia, porque elas levariam a produtividade para cima. O debate vai caminhando de uma forma meio confusa, mas acho que é assim mesmo. Quando se trabalha muito na fronteira do que está acontecendo, o debate acadêmico meio que vem a reboque, porque o fenômeno acontece e a gente vai interpretando. Por exemplo, há toda a discussão de unicórnio, que são as empresas que têm um valor de mercado acima de 1 bilhão de dólares. E os unicórnios são o quê? Muitos são EACs, muitos são scale-ups. É difícil você dizer que sabe que determinada empresa é uma scale-up, e não uma EAC. No fundo, sabe-se que é uma empresa de alto crescimento e que, algum dia, vai ser uma scale-up ou não. Mas o fato é que houve o surgimento de unicórnios na pandemia no Brasil.
Poderia citar alguns?
A primeira que me vem à cabeça é a MadeiraMadeira, por exemplo. O Nubank se tornou um unicórnio durante a pandemia. É interessante, porque existe um contexto de pandemia, mas temos no Brasil o surgimento de unicórnios; portanto, empresas que estão crescendo de forma acelerada, com muita liquidez de investimento. Os investidores fora do país aportaram dinheiro no ecossistema empreendedor brasileiro durante a pandemia, isso é um fato. O que ajudou a explicar o surgimento desses unicórnios. Um outro exemplo é o QuintoAndar, que também se tornou um unicórnio durante a pandemia. Esse é um dos lados da questão. Do outro lado, sem considerar as empresas de alto crescimento, temos um conjunto de pequenas e médias empresas que sumiu. Porque a pandemia veio como um soco na cabeça e, eventualmente, o auxílio do governo demorou a chegar a essas empresas. Num nível de menor tamanho de empresas, há empreendedores que sofreram muito na pandemia, mas houve aqueles que cresceram. Pequenos empreendedores que, por conta do lockdown e de todos os fatores que se impuseram nos últimos dois, três anos, conseguiram pivotar o modelo de negócios e, com isso, crescer.
Um exemplo muito didático, muito simples, mas real. Perto da minha casa, tem uma loja que abriu antes da pandemia e que vende bolo caseiro. Na pandemia, eles foram rapidamente para um modelo de entrega via aplicativo que eles não tinham antes. No meio da tarde, com mães trabalhando em home office e atendendo as crianças ao mesmo tempo, nada como ter um bolo com um preço acessível para encomendar na hora do lanche. Ou seja, essa pequena empresa cresceu muito na pandemia. No limite de uma EAC. Mesmo que não tenham crescido 20%, algumas empresas cresceram muito nesses dois últimos anos. Porque souberam aproveitar essa nova realidade que se impôs. Quando se fala de empresas de alto crescimento na pandemia, é indissociável olhar para esses dois lados. Se, de um lado, restaurantes tiveram enormes problemas e fecharam as portas, por outro, alguns empreendedores conseguiram encontrar nichos de atuação sem necessariamente mudar o seu produto e crescer na pandemia. É contraditório, mas a vida é contraditória.
No caso da loja de bolos, o empreendedor teve de criar uma nova estrutura dentro da empresa? Porque antes da pandemia as pessoas iam até a loja para comprar o produto…
Sim, a pandemia implicou a adaptação no modelo de negócios. Em estratégia, há basicamente dois grandes blocos. Uma estratégia é dada pelo posicionamento de mercado. Como a firma se coloca no espaço de concorrência frente a outros players. Isso é o meu posicionamento, mas o posicionamento é sustentado por um modelo de negócios. O modelo de negócios não é nada mais que a articulação dos recursos organizacionais que tenho para produzir o meu produto ou serviço. Recursos desde humanos até insumos como energia. O que verificamos é que a pandemia pode ter afetado o posicionamento, mas ela bateu forte, efetivamente, nos modelos de negócio – seja porque a organização perdeu ou não teve mais acesso a um dado conjunto de recursos, seja porque teve de reorganizar a governança desses recursos. Vemos isso em praticamente todos os lugares. Quando voltarmos ao modelo presencial, será um novo bicho, uma adaptação do modelo de negócios.
Mas as empresas voltarão ao seu modelo de negócios anterior? Ou tendem a incorporar essas mudanças feitas na pandemia?
A incorporação é inevitável. Porque o modelo de negócios não é uma coisa estática, é quase um organismo vivo, que vai evoluindo. Então, os líderes que acharem que quando acabar a pandemia vamos voltar a ser o que éramos, em geral, serão os líderes que vão enfrentar maiores problemas. Porque você não vai andar para trás. Não enxergar que a governança da sua organização ou que a natureza dos seus recursos mudou claramente vai abrir um flanco enorme em termos de estratégia.
Quem pode sustentar o status de alto crescimento no pós-pandemia: a fábrica de bolos ou a startup de tecnologia, que tem concorrências diferentes?
Depende. Há duas possibilidades de análise. Se eu tenho uma loja de bolos e começo a crescer de forma acelerada, a sustentação desse crescimento pode ser mais difícil, sobretudo porque a barreira de entrada nesse segmento é baixa. Não existe uma patente para bolo. Como a barreira é baixa, a empresa começa a crescer de forma acelerada e, naturalmente, vai chamar a atenção e atrair concorrentes. Uma dinâmica de mercado que é mais próxima da concorrência perfeita.
Isso não quer dizer, e por isso falei “depende”, que a vida de um unicórnio é mais fácil. O unicórnio já é uma empresa musculosa, vale 1 bilhão de dólares, o que quer dizer que atua num segmento que, seja qual for, tende a ter menos players. Não estou falando poucos, mas menos players. O Nubank está no setor de finanças. A MadeiraMadeira, no comércio de elementos de construção. Não existem muitos players nesses casos, porque são atividades que, de certa maneira, demandam economia de escala, ou seja, reduzir o custo médio à medida que se produz mais. Naturalmente, a economia de escala gera empresas maiores, tanto que falamos que a economia de escala é, em si, uma barreira de entrada em alguns mercados. Só que o fato de ter poucos concorrentes não quer dizer que os poucos concorrentes vão ficar passivos. A minha empresa é um unicórnio, cresce de forma acelerada, mas tem concorrentes que são tão grandes quanto. É um mercado que se chama de oligopólio. E o que mexe no oligopólio são os movimentos estratégicos. Ou seja, a vida do unicórnio talvez não seja tão mais fácil.
Então, a pandemia pode ter sido uma contingência positiva ou negativa.
A pandemia tem diferentes camadas. Para muitos empreendedores e organizações de todos os tamanhos, foi uma contingência negativa. Foi um tsunami que arrasou. Para outras, foi uma contingência positiva, como aquela empresa de bolos. Mas vamos falar sobre o Zoom. A pandemia não foi uma baita contingência positiva na vida dessa plataforma de conferências? Foi enorme. A pandemia desafia o modelo de negócios vigente de cada organização, independentemente da contingência positiva ou negativa. Além dessas duas contingências, há um terceiro componente: como a liderança entende e adapta o seu modelo de negócios diante das contingências. Ou seja, depois que a pandemia acabar, vamos ver quem vai sobreviver.
De janeiro a setembro de 2021, foram abertas 3,2 milhões de empresas no Brasil, 78% das quais eram Microempreendedores Individuais (MEIs). Pode haver empresas de alto crescimento entre elas, já que uma das limitações da MEI é ter apenas um empregado?
Em 3,2 milhões de empresas, 78% são MEI. Claramente, são pessoas que perderam o emprego e estão tentando sobreviver de algum jeito. Isso leva para uma divisão muito fundamental, que é o empreendedorismo de necessidade versus o empreendedorismo de oportunidade. De necessidade é o óbvio: preciso fazer alguma coisa para sobreviver. De oportunidade, eu vi ou criei uma oportunidade; logo, quero aproveitá-la. Geralmente, existe alguma confusão. Talvez haja algumas EACs entre elas. Não é porque nasci como uma empresa com rótulo de empreendedorismo de necessidade que, ao sobreviver, não encontre uma oportunidade. Essa diferença não é tão preto no branco. Então, uma empresa que cresceu de forma acelerada, encontrando uma oportunidade muito boa no caminho, pode ter nascido como necessidade. Mas é preciso reconhecer que esse número de criação de empresas e MEIs é, claramente, pessoal de necessidade.
A scale-up gera mais produtividade do que empregos?
Não obrigatoriamente. Uma EAC pode gerar muito emprego, tanto que há autores que mensuram os 20% de crescimento em termos de receita ou de empregos. Quando você está crescendo de forma acelerada, você está investindo muito. Não necessariamente você está tendo retorno naquilo, mas está crescendo a sua base de colaboradores. Conheci empreendedores que contratavam 200, 500 pessoas por mês. Uma EAC pode contratar muita gente. Como uma scale-up é uma EAC, então algumas scale-ups podem contratar muita gente. Lembrando que toda scale-up é uma EAC, mas nem toda EAC é uma scale-up.
Um ponto importante é que empresas de alto crescimento ou scale-ups não estão forçosamente ligadas ao setor de tecnologia. Esse é um resultado controverso que já foi encontrado em pesquisas. A empresa não precisa ser fintech ou agrotech para ser uma scale-up ou ser uma EAC. Todavia, ter um componente importante de tecnologia no seu modelo de negócios ajuda a sustentar a condição de EAC. Não é determinante, mas pode ser determinante para se manter EAC.
Uma empresa de alto crescimento, em geral, contrata muita gente. Isso, por si só, impõe um desafio de cultura organizacional muito importante. Você está trazendo gente nova todo mês para a sua empresa e aquela cultura organizacional que o empreendedor tinha na cabeça dele, em determinado momento, já não existe mais. É tanta gente chegando que não dá tempo de as pessoas se adaptarem. Começa-se a criar um conjunto de pessoas que já não caminha necessariamente na mesma direção. Isso vai acontecer no cenário positivo, negativo, com pandemia, sem pandemia, boom econômico, depressão. Mas imagine isso acontecendo junto com a pandemia.