09/09/2022
O próximo episódio da “nova guerra fria” vai se dar nessa pouco falada agência da ONU: entre a candidata americana, pró-liberdade na rede, e o candidato russo, que defende controle estatal
David Cohen
É num terreno desconhecido da maioria dos habitantes do planeta que se dará, entre o final deste mês e meados de outubro, o novo embate do que vem sendo considerado como “a nova guerra fria”, entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental, de um lado, e a Rússia e a China, de outro. Um embate, diga-se, que pode ter consequências diretas sobre a nossa vida cotidiana, incluindo o modo como usamos a internet e o futuro da rede 5G (e da próxima evolução das telecomunicações, a rede 6G).
Trata-se das eleições para a liderança da União Internacional das Telecomunicações, um órgão da ONU, que ocorrerá durante a sua conferência plenipotenciária quadrienal, de 26 de setembro a 14 de outubro, em Bucareste, na Romênia. A UIT já foi descrita como “a mais importante agência da ONU da qual você nunca ouviu falar”. Seguindo essa lógica, a votação que começa neste mês foi apelidada por alguns think tanks e jornalistas de “as eleições mais importantes das quais você nunca ouviu falar”.
O que torna esta eleição especialmente notável é a polarização que se formou na disputa pelo cargo principal da agência, o de secretário-geral. De um lado está a candidata americana, Doreen Bogdan-Martin, atual diretora do escritório de desenvolvimento das telecomunicações, a primeira mulher a chefiar um dos três setores que compõem a UIT. Com 28 anos de carreira na própria agência, ela seria também a primeira mulher a ocupar a espaçosa sala da Secretaria Geral, em Genebra, na Suíça.
Seu concorrente é o russo Rashid Ismailov, um ex-vice-ministro das Telecomunicações em seu país, e um ex-executivo da empresa de tecnologia chinesa Huawei.
Bem mais do que uma simbólica disputa entre uma americana e um russo (que tem laços com a China), as duas candidaturas representam duas visões muito distintas de como a internet deve ser gerida. De um lado, os Estados Unidos favorecem uma internet aberta; do outro, Rússia e China propõe maior controle estatal sobre a rede.
“O voto dos membros da UIT é secreto, e não está claro quem vai ganhar”, diz a advogada Nathalie Fragoso, sócia da banca VMCA, onde atua nas áreas concorrencial e de proteção de dados, e professora de direito e tecnologia no Insper. “Dizem que esta eleição será apertada.”
“É claro que o secretário-geral não determina por si só o que vai ser a agência nos próximos anos”, afirma Fragoso. “Mas ele pode facilitar algumas políticas durante o seu mandato.”
O atual secretário-geral da UIT, o chinês Houlin Zhao, já vem agindo em prol de mudanças significativas na atuação da agência. Eleito em 2014 e reeleito em 2018, está impedido pelos estatutos de buscar um terceiro mandato. Nestes oito anos, no entanto, ele provocou controvérsias, especialmente por comentários e decisões amplamente favoráveis à China (por exemplo, quando defendeu a empresa Huawei das acusações americanas de que seus equipamentos podem ser usados para espionagem).
Neste período, a China e alguns aliados pressionaram uma atuação mais firme da UIT, especialmente na busca de padrões para novas tecnologias. Nos grupos de estudo da agência, a Huawei, por exemplo, fez cerca de 2.000 propostas de padronização em tópicos como a rede 5G, cibersegurança e inteligência artificial.
“Padrões industriais são uma importante área de contestação na nova guerra fria, com Beijing e Washington esquentando os motores para desenvolver e implementar padrões globais”, disse Adam Segal, diretor de políticas para o ciberespaço do Conselho de Relações Exteriores, uma organização de estudos baseada em Nova York, em declaração ao jornal britânico Financial Times.
A proposta mais ousada da China, entretanto, é um novo protocolo para a internet. Este protocolo, chamado de “New IP” (novo protocolo de internet), daria aos governos mais controle sobre as atividades na rede, incluindo a determinação individualizada de quem pode fazer o quê. Nesse sentido, a Rússia e a China assinaram, em junho do ano passado, um pacto para “garantir que todos os países tenham direitos iguais de participar da governança da rede global, aumentando seu papel nesse processo e preservando o direito soberano dos países de regular o segmento nacional da internet”.
Traduzindo: os dois países, que de formas distintas promovem uma censura e uma vigilância minuciosa sobre a internet local, ao melhor estilo de governos autoritários, querem estabelecer globalmente que os países tenham capacidade e condições de “cuidar” das redes em seus territórios. Pesquisadores de Oxford que analisaram a proposta da Huawei de um novo IP consideraram que ela traz não apenas o risco de uma internet fragmentada em diversas redes (uma hipótese que ganhou o apelido de splinternet), como também poderia abrir portas para um ciberespaço mais propenso a ataques de piratas digitais e alargar a desigualdade digital.
“Nos anais da hipocrisia diplomática, este acordo é um baque, mesmo para os padrões russo e chinês”, opinou o colunista David Ignatius, do jornal The Washington Post.
A proposta chinesa e russa não tem só pontos negativos. “Ela inclui a preocupação com ciberataques (invasões de sistemas na internet) e a busca de autonomia digital, especialmente pela construção de estrutura própria”, diz Fragoso, do Insper. “O lado bom é a busca de independência; o lado ruim é o crescente controle do Estado, com censura e limites ao acesso à informação.”
Para subverter o atual modelo da internet, a China precisa da UIT. Não exatamente desta que está aí, mas de uma com maior peso e influência.
Em seu site, a agência da ONU afirma: “Toda vez que você faz uma ligação pelo celular, acessa a internet ou envia um email, está se beneficiando do trabalho da UIT”. De fato, é ela que cuida dos padrões de cabos de fibra óptica e das redes de celulares. No caso da internet, porém, seu papel é bem menos relevante — pelo menos até agora.
A UIT nasceu em 1865, uma década e meia antes da invenção do rádio, como União Internacional do Telégrafo. Era a iniciativa de um grupo de países europeus que precisava regulamentar as comunicações entre suas fronteiras. Sem um padrão único, seria muito complicado enviar um telegrama da Inglaterra à França; mais ou menos como se a linha de ferro num país tivesse uma largura (bitola) diferente da do vizinho. Ao chegar à fronteira, o trem não conseguiria mais andar.
Em 1942, a UIT foi incorporada à ONU. Sua missão atual é “assegurar que as redes e tecnologias se conectem perfeitamente, e buscar a melhoria do acesso a tecnologias de informação e comunicação para comunidades mal servidas no mundo inteiro”.
A internet, porém, se desenvolveu à margem da UIT. Seus padrões não foram alcançados em discussões na ONU, mas num processo de múltiplos stakeholders: técnicos, empresas, a sociedade civil, governos. O centro dessas negociações é a Força Tarefa de Engenharia da Internet, uma de várias instituições que mantêm a internet do modo como a conhecemos.
Há dúvidas sobre se esse processo de múltiplos agentes nasceu espontaneamente, no correr do desenvolvimento da internet, ou se foi deliberadamente criado pelos Estados Unidos para que nenhuma nação tivesse controle absoluto sobre a rede.
Tradicionalmente, os americanos se esforçam para preservar essa liberdade da internet, pressionando pelo mínimo possível de regulação e por uma UIT de menor influência. Como explica Nathalie Fragoso, a agência é um lugar para discutir interconexão e condições de internacionalização. “É um espaço importante, mas não é um poder central.”
Pois é justamente este o desejo de Rússia, China e seus aliados: um poder central, que torne o desenvolvimento da internet um processo de cima para baixo, com mais facilidade para os países controlarem, monitorarem e censurarem a internet.
Um pequeno ensaio dessa tensão ocorreu em 2012, quando a maioria dos países representados em uma conferência de telecomunicações internacionais votou, entre outras coisas, pelo aumento da autoridade da UIT sobre a internet. Os Estados Unidos, então, se recusaram a assinar o tratado final do encontro.
Mais recentemente, os americanos perceberam que não podem menosprezar as discussões que ocorrem nos órgãos internacionais, sob pena de deixá-los à mercê da crescente influência chinesa. Um sinal da mudança de postura é a ênfase com que estão defendendo a candidatura de Bogdan-Martin para a liderança da UIT.
Como já alertava, em artigo de 2020, Kristen Cordell, associada do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, “para entender completamente o poder e a capacidade regulatória da UIT, é preciso perceber que as discussões que parecem tolas e técnicas demais têm implicações para o uso e aplicação da tecnologia digital no mundo inteiro”. Isso ocorre num efeito em cascata. A UIT tem três áreas: padrões de telecomunicações, radiocomunicações e setor de desenvolvimento, cada uma com um diretor, cada uma com sua agenda de grupos de estudo de assuntos técnicos.
Esses grupos de estudo escrevem recomendações, que influenciam as resoluções do órgão. Estas, por sua vez, são enviadas ao plenário da UIT para serem votadas como decisões. Uma vez que receba aprovação unânime dos 193 países membros, a decisão vira lei internacional, para ser aplicada no nível nacional.
Por isso, não é apenas o cargo de secretário-geral que importa. A eleição deste mês também vai definir um vice-líder, os três diretores das áreas, o conselho de regulações de rádio (com 12 vagas, para o qual concorre o brasileiro Agostinho Linhares de Souza Filho, um paraense com doutorado em Eletromagnética Aplicada) e o conselho dos países (com 48 vagas).
Infelizmente, as ameaças a uma internet livre e democrática não vêm apenas de governos que querem controlar autoritariamente suas populações. “Essa discussão tem se colocado não só no contexto de países, também no próprio domínio de empresas sobre a internet”, diz a advogada Marcela Mattiuzzo, professora de concorrência e mercados digitais do Insper. “Na medida em que você tem grandes players econômicos com um controle desproporcional da rede, também há uma ameaça ao ideal original da internet.”
Dito assim, parece que estamos, nós cidadãos, entre o forno e a frigideira, entre o controle burocrático do Estado e os algoritmos enviesados de grandes empresas semimonopolistas. “Mas não é uma dicotomia: ou ficamos na mão do Estado ou das empresas. É uma busca de mais equilíbrio”, diz Mattiuzzo. “Não é fácil, porque a dinâmica do mundo digital leva à concentração de mercado. Mas é a busca.”
“No Brasil, historicamente, as preocupações com a internet começaram nos anos 2000, muito mais dirigidas ao controle da criminalidade online do que à defesa de uma internet aberta”, afirma Fragoso. “A chave vira a partir do marco civil da internet. Aí a gente passa a ver um debate mais preocupado com autonomia e privacidade, mas também com internet aberta, liberdade de expressão, promoção do acesso.”
Por outro lado, lembra Fragoso, também vivemos há alguns anos uma preocupação com eventuais dominações tecnológicas, e discutíamos a construção de uma estrutura própria. “Mas este debate está meio arrefecido.”
Por estar tão disseminada e integrada à vida moderna, os problemas e as demandas em relação à internet são diferentes para cada setor. “A sociedade civil se preocupa com a desigualdade de acesso; para os governos, há uma assimetria no controle das estruturas que sustentam a internet; o setor privado teme o controle dos governos; o cidadão comum quer defender sua privacidade tanto do governo como do setor privado”, diz Fragoso. Por esse próprio mosaico de questões, conclui, “o ideal é que o modelo de governança da internet permaneça multissetorial, para que caibam todas as vozes no debate”.