20/03/2014
O passeio preferido da brasiliense Neiriane Marcelli da Silva Costa, quando criança, era acompanhar seu pai, suboficial da Força Aérea Brasileira (FAB), nos desfiles militares. Ela gostava de observar os aviões no céu e sonhava em estar um dia no lugar dos pilotos. “Eu me desiludia ao pensar que nunca poderia realizar meu sonho, porque apenas homens pilotavam aviões militares”, diz Marcelli, hoje com 28 anos. Até o dia em que oficiais da FAB foram ao colégio dela para contar uma novidade: a partir daquele ano, 2002, as meninas também poderiam se inscrever no curso de oficiais aviadores. Marcelli se formou cinco anos depois na Academia da Força Aérea (AFA), integrou um esquadrão em Belém, no Pará, e hoje ensina os cadetes da AFA, em Pirassununga, interior de São Paulo. O ambiente, dominado por homens, nunca a intimidou. “Não pensei se faria alguma diferença ser mulher. Era o que queria fazer.”
A tenente Marcelli faz parte de uma geração de mulheres criadas para pensar que o limite para elas é o mesmo que para os homens: o céu. Algumas alcançaram essa fronteira literalmente, como Marcelli. Outras, no sentido figurado. Nunca as mulheres chegaram tão longe: à Presidência da República ou da Petrobras, a maior empresa do país. As conquistas, como sempre, dão origem a novas e ainda mais ambiciosas aspirações. As mulheres querem permanecer na liderança e avançar em muitas outras áreas. Elas conquistaram um território dominado pelos homens. Contaram com mudanças na sociedade (que permitiu mulheres oficiais aviadoras) e com alta dose de determinação pessoal. Suas histórias contêm lições para outras desbravadoras – e para os homens também.
“O mais importante é não desistir”, diz a advogada Leila Melo, de 42 anos. Diretora jurídica do Itaú Unibanco, maior banco privado da América Latina, Leila diz que contou com a flexibilidade da empresa e o apoio do marido, que saía mais cedo do trabalho para ficar com as crianças. Mesmo assim, houve momentos em que achou que não conseguiria. Mas persistiu. Leila recebeu a notícia de uma de suas promoções um mês depois de voltar da primeira licença-maternidade. Já estava grávida do segundo filho. “Não queria acreditar no resultado do exame. Tinha vergonha do que as pessoas pensariam”, diz Leila. Ela enfrentou anos de pouco sono por causa das crianças e da carga de trabalho. Mesmo com babá, motorista e parentes que ajudaram a cuidar de André, hoje com 11 anos, e Fernando, de 9. Ela conseguiu conciliar a vida de mãe de dois meninos com uma carreira em ascensão.
A lição de Leila é parecida com a proposta pela americana Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, a maior rede social do planeta, em seu livro Faça acontecer, lançado no ano passado. Nos anos 2010, Sheryl se tornou uma espécie de nova Betty Friedan, a feminista americana que desencadeou nos anos 1960 a revolução de ideias que levou mulheres como Sheryl a alguns dos cargos mais influentes do planeta décadas depois. Sua primeira lição é: não duvide de si mesma.
Essa foi a tônica na carreira da engenheira eletrônica Rachel Penido, de 58 anos. Ela era a única mulher em sua turma na faculdade. A única estagiária de engenharia na primeira empresa em que trabalhou, em Belo Horizonte. E foi a primeira mulher engenheira num dos departamentos da Embraer, quando foi contratada, em 1978. “Na entrevista, meu chefe perguntou se eu era daquelas que engravidariam e voltariam para casa”, diz Rachel. “Disse que estava disposta a trabalhar e que, se não fosse lá, seria em qualquer outra concorrente.” Deu certo. Em três décadas de carreira, ela chegou a gerente do departamento que supervisiona o desenvolvimento dos sistemas que controlam as aeronaves. Comanda uma equipe de 50 pessoas.
Atitudes decididas como as de Rachel são fundamentais. “Ousadia é uma característica importante num líder”, diz o psicanalista Gilberto Guimarães, coordenador dos cursos de liderança da HSM Educação. “Quando a mulher mostra que não quer correr riscos, é considerada com menos frequência para esse tipo de cargo e também acaba se candidatando menos a essas posições. Elas incorporam estereótipos de gênero sem se dar conta.” Absorver velhas ideias preconcebidas sobre características femininas é uma das principais barreiras que atrapalham as mulheres. Isso explica por que muitas têm dificuldade de se candidatar a uma promoção, deixam de dar sua opinião numa sala cheia de homens ou julgam como ambiciosa demais a atitude da colega que contraria o comportamento meigo, esperado das mulheres. É possível que a chegada das novas gerações à vida adulta ajude a mudar isso.
Será preciso mesmo. “Contamos nos dedos as mulheres em posição de destaque”, afirma a advogada Angela Donaggio, do Grupo de Pesquisas em Direito e Gênero da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Está na hora de equilibrar essa situação.” Um levantamento divulgado na semana passada pela consultoria Grant Thornton sugere que, no Brasil, há menos cargos de chefia ocupados por mulheres que a média mundial. No Brasil, 22% das posições de gestão estão com as mulheres. A média global é de 24%. Se forem considerados os cargos do topo da carreira – diretorias executivas, conselhos de administração e fiscal –, esse número é ainda menor. As mulheres ocupam apenas 8% das vagas de alta administração no Brasil, segundo uma pesquisa da FGV. É uma proporção baixa ao considerar que, há 30 anos, quando as mulheres que ocupam essas posições hoje estavam nas universidades, cerca de 50% dos estudantes eram do sexo feminino. Um estudo da consultoria McKinsey, feito para países da América Latina no ano passado, estima que, se a tendência continuar, em 30 anos o número de mulheres em cargos de liderança aumentará apenas 2%.
Onde estão as mulheres que desaparecem entre o fim da universidade e o topo da carreira? Algumas, fora do mercado. Chegaram a um ponto em que as exigências do cargo – e políticas de trabalho pouco flexíveis – eram incompatíveis com a família. “A mulher que quiser trabalhar menos horas terá de ser muito boa para conseguir competir com homens dispostos a encarar jornadas muito longas”, afirma a economista Maria Eugênia Lopez, diretora de gestão de patrimônio do Banco Santander e mãe de dois filhos. “Depois de ter filhos, as mulheres começam a sentir que não são consideradas funcionárias estratégicas”, diz a socióloga americana Pamela Stone, do Hunter College. “Acham que recebem tarefas inferiores e certamente não ganham mais promoções.” Pamela analisou um fenômeno que chamou a atenção dos especialistas nos Estados Unidos no começo dos anos 2000: houve um crescimento de 4% no número de mulheres que paravam de trabalhar. Isso marcou uma inversão na tendência de décadas que apontava para a entrada feminina na força de trabalho. Nem todas podem ou querem abandonar o trabalho. A maioria permanece, estagnada no meio da escalada corporativa.
Além da falta de políticas flexíveis para a maternidade, também há outro obstáculo, menos visível, ao avanço feminino. Sheryl, do Facebook, usou seu status para denunciar o que chama de “machismo sutil”. E o que explica, segundo ela, a diferença no contracheque de homens e mulheres. Um levantamento realizado pela economista Regina Madalozzo, do Insper, mostra que as mulheres ganham 16% menos que os homens com as mesmas atribuições. A diferença é ainda maior quando se considera apenas o nível de estudo: em média, os homens ganham 65% mais que as mulheres com a mesma escolaridade.
O “machismo sutil” também aparece em situações vividas por Silvana Machado. Ela é a principal executiva, no Brasil, de uma das maiores consultorias do mundo, a A.T. Kearney. Em seu cartão de visitas, deixa claro que é “sócia diretora para América do Sul”. Fez isso para evitar um desconforto nas reuniões. Não é raro que um novo cliente se dirija, inicialmente, aos homens da equipe de Silvana, subordinados a ela. “Até hoje, encontro um tipo de atitude paternal, meio condescendente, clientes que tentam me chamar de ‘filha’. Não fico ofendida, mas não aceito”, diz. O viés discriminatório também foi exposto por estudos da bióloga americana Jo Handelsman, da Universidade Yale. A equipe de Jo pediu que 127 avaliadores analisassem o currículo de um candidato a gerente de um laboratório da universidade. Era sempre o mesmo currículo. A única diferença era o sexo do candidato. O candidato homem foi considerado mais competente pela maioria, e o salário oferecido a ele era maior que o estipulado para a mulher. Até as avaliadoras mulheres deram preferência ao homem. “Os avaliadores de ambos os sexos são influenciados pelo estereótipo cultural de que as mulheres não têm competências científicas”, escreveram os autores.
Sheryl diz que esse viés discriminatório também vale para escolher quem será promovido, quem contará com apoio da chefia para receber conselhos e melhores oportunidades. Ele influencia até o comportamento das próprias mulheres, que temem parecer arrogantes ao enaltecer suas qualidades, negociar salários e arriscar-se em oportunidades desafiadoras. A psicóloga americana Madeline Heilman, pesquisadora da Universidade de Nova York, mostra numa série de estudos que as mulheres bem-sucedidas são vistas de forma menos simpática pelos colegas que os homens de sucesso com exatamente o mesmo comportamento.
A estratégia de Sheryl é “distorcer a distorção”. Isso significa identificar nela mesma comportamentos influenciados pelos estereótipos e lutar para combatê-los. Na prática, ela passou a não se refrear quando quer dar uma opinião, a persistir numa ideia mesmo que a insegurança apareça. Um grupo formado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo adotou um plano semelhante para estimular mulheres a prosseguir na engenharia. “A ideia é apresentar a cada uma das calouras um professor, um aluno de pós-graduação ou formado, de ambos os sexos, que possa orientá-las”, diz a engenheira eletricista Cíntia Borges Margi, uma das idealizadoras do grupo Poligen.
“É preciso persistir”, diz a empreendedora paulista Alessandra França, de 28 anos. Há quatro anos ela comanda o Banco Pérola, que dá crédito a jovens das classes C e D para abrir seus negócios. Alessandra percebeu que, nas reuniões de negócios com outros bancos e financiadores, só há homens. “Não se mudam séculos de história em 50 anos”, diz Alessandra. “Minha força vem da vontade de fazer algo que contribua de verdade para mudar o mundo.”
Fonte: Revista Época – 15/03/2014