21/05/2014
Thomas Piketty provocou um alvoroço no debate mundial sobre concentração de renda. Autor do livro O Capital no Século 21, o economista francês colocou a desigualdade social no centro do debate ao prever a concentração de renda nas grandes economias.
A análise do livro de Piketty não leva em conta a economia brasileira nem os demais países emergentes, mas o Brasil tem algumas certezas diante dessa discussão: o caminho é longo para que o País se torne mais igualitário e essa melhora vai passar inevitavelmente pela educação. O Brasil também pode se vangloriar de não ter fugido desse debate nos últimos anos. E não faria sentido se fosse diferente: a economia brasileira sempre foi uma das mais desiguais do mundo.
A boa notícia é que os indicadores dos últimos 20 anos mostram que algo está mudando. A fotografia ainda é muito ruim, mas o Brasil ficou menos desigual. Os números mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) indicam, por exemplo, que a renda anual média per capita dos 10% mais pobres cresceu 5,4% entre 1992 e 2012. No outro topo, entre os 10% mais ricos, a renda avançou 2,6% no período.
As classificações internacionais também capturaram essa melhora. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil aumentou de 0,522 para 0,730 entre 1980 e 2012. O índice de Gini, que mede a desigualdade e vai de 0 a 1 – quanto menor, menos desigual é a sociedade – recuou de 0,566, em 2001, para 0,499, em 2012.
A melhora da desigualdade pode ser atribuída a diversos fatores. A criação do Plano Real deu sustentação para uma economia mais estável e previsível, o que foi uma precondição determinante para o processo de queda na concentração de renda. Recentemente, os principais fatores que ajudaram foram o aumento da escolaridade do brasileiro, programas de transferência de renda e ganhos reais do salário mínimo e sobretudo o fortalecimento do mercado de trabalho.
“A principal queda da desigualdade é o trabalho e por detrás disso está a educação “, diz Marcelo Neri, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR). Na área educacional , o Brasil conseguiu elevar de 5,7 para 8,8 a média de anos de estudo.
“Um dos fatores que mais explica a desigualdade no mundo é a educação. No Brasil, qualquer que fosse o governo, a educação nunca foi uma prioridade muito relevante nem na quantidade nem na qualidade”, diz Marcos Lisboa, vice-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “A partir do fim da década de 80 e início dos anos 90, a educação começa a ter um papel no País e a ser mais valorizada”, afirma Lisboa.
A economia brasileira também foi impactada positivamente pela política de aumento do salário mínimo. Como boa parte das pensões e aposentadorias são indexadas pelo mínimo, os reajustes reais – ou sejam aqueles acima da inflação – acabaram se espalhando tendo um efeito positivo na geração de renda na economia. “Esse ganho ajudou na redução substancial da diferença de renda de parte da população”, diz José Márcio Camargo, professor da PUC-Rio e economista da Opus Gestão de Recurso. Nesse ciclo virtuoso, o Brasil ainda avançou nos programas sociais. Com o Bolsa Família, o governo criou um cadastro único com base nos beneficiários de programas antigos, como o Bolsa Escola e Vale Gás, e “deu uma cara para a pobreza”, segundo Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco e um dos formuladores do programa. “Ao ter um programa só, o governo aumentou a capacidade de foco e conseguiu ser mais efetivo na gestão do programa”, afirma. “O programa tem duas âncoras: a de curto prazo, que é a transferência de renda, que tem um impacto sobre a pobreza. A âncora de longo prazo dá atenção para saúde e educação, com a perspectiva de mudança geracional.”
‘É preciso focar na qualidade’
Marcelo Neri, ministro da Sec. de Assuntos Estratégicos (SAE/PR)
“Estamos no menor nível de desigualdade da história. Para manter essa tendência, a educação é absolutamente importante, mas é preciso focar na qualidade. Temos feito isso porque desenvolvemos métrica, metas e existe uma mobilização da sociedade civil. É preciso também buscar um Bolsa Família 2.0 ou um upgrade no programa. O primeiro passo é o que pode ser chamado de um federalismo social, que seria a junção dos vários níveis de programas de governos, utilizando o cadastro único. A fronteira é usar a estrutura do Bolsa Família para dar aos pobres mais acesso a mercados como o de microcrédito e microsseguro, por exemplo. O Brasil deu durante a crise econômica os pobres aos mercados, manteve as rodas da economia girando com o Bolsa Família, falta fazer mais no sentindo inverso.”
‘Não a um mundo igual’
Ricardo Paes de Barros, subsecretário de Ações Estratégicas
“Um mundo com muita educação de qualidade é um mundo sem pobres, mas não um mundo igual. Se quisermos acabar com a pobreza, vamos dar educação de muita qualidade. Agora, essa educação, num mundo absolutamente meritocrático, pode gerar uma desigualdade. Ela vai ser corrigida por um sistema de transferências. Na Suécia, a desigualdade antes dos impostos e das transferências do governo não é diferente da dos Estados Unidos. A desigualdade na Suécia fica muito menor porque há uma série de transferências. Certamente, o investimento em educação vai gerar muita riqueza, pouca pobreza e muita oportunidade para redistribuir renda. Isso é o que os nórdicos fazem. Eles dão educação de muita qualidade, deixam a desigualdade explodir, aí corrigem com um sistema de impostos e transferências.”
‘Agenda precisa ser inclusiva’
Ricardo Henriques, superintende executivo do Instituto Unibanco
“A questão mais importante é o rearranjo na agenda da educação. Ela precisa ser inclusiva e ter padrões de qualidade para competir com o Primeiro Mundo. Por mais que todos os garotos estejam entrando na escola, eles não permanecem. Hoje, a inclusão no sistema educacional é reduzir a taxa de repetência e evasão de forma vertiginosa para os garotos concluírem o ciclo completo. A outra coisa tem a ver com o Bolsa Família. Apesar da contribuição relativa do programa ser menor do que a do salário mínimo para a redução da desigualdade, ele tem uma plataforma em potencial. Na medida que se constituiu de forma rigorosa esse cadastro único, é possível fazer a ponte com o médio prazo e criar uma plataforma efetiva de coordenação das políticas públicas focalizadas para reduzir a desigualdade e não só pobreza.”
‘Processo está se esgotando’
José Marcio Camargo, professor da PUC-Rio
“Esse processo está se esgotando. Para continuar reduzindo a desigualdade no Brasil, é preciso pensar na qualidade do sistema educacional brasileiro, de tal forma que os mais pobres tenham acesso à educação de qualidade como os mais ricos. Um outro ponto é o risco de manter uma política de ganho real do salário mínimo numa situação em que os termos de troca estão piorando na economia mundial. Isso pode fazer com que o Brasil esbarre nas condições externas. A economia brasileira gerava um superávit de 2% do PIB em conta corrente. Hoje, tem um déficit de 4%. Por enquanto, é possível financiar essa política porque as taxas de juros no mundo estão muito baixa e estamos atraindo capital.”
‘Diagnóstico social não é bom’
José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre
“O livro do Piketty faz um diagnóstico e em cima desse resultado traça proposições, sobretudo da política tributária e de como ela deveria ser utilizada para tornar uma sociedade menos desigual. No Brasil, estamos numa fase em que nem adianta pegar as discussões das proposições que ele levanta. Não temos um bom diagnóstico da situação social como um todo e da tributária. O mais importante no livro e que serve para o Brasil é que o diagnóstico mais adequado sobre distribuição de renda e riqueza têm de levar em conta as estatísticas tributárias. E esse tem de ser o nosso foco. O Piketty fez um trabalho secular. No Brasil, se conseguirmos ter uma foto de um ano, apenas um, já é lucro.”
‘Focar estrutura tributária’
Marcos Lisboa, vice-presidente do Insper
“Na questão da educação, é preciso avançar não só na quantidade, mas na qualidade. O Brasil tem uma educação muito ruim. Em segundo lugar, é preciso repensar a nossa estrutura tributária. A economia brasileira precisaria migrar para uma estrutura tributária mais tradicional, em que se arrecade mais imposto sobre a renda e menos sobre produto/ serviço. Outro ponto é que a transparência do Bolsa Família deveria ser estendida aos demais programas. Eles estão concentrando a renda ou ajudando a aliviar a situação? Estão produzindo ganhos de produtividade para o Brasil crescer mais? É preciso uma agenda mais transparente, inclusive nos subsídios, nas políticas de proteção.”
Fonte: O Estado de S. Paulo – SP – 18/05/2014