29/08/2013
O fim da vigência da lei segundo a qual o piso salarial brasileiro é corrigido anualmente pela inflação do período mais a variação real do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores, previsto para 2015, podem trazer não só desconforto ao novo governo, como acender o sinal amarelo no ritmo de redução da desigualdade de renda no Brasil. Nos últimos dez anos, uma combinação de programas de transferências de renda, melhorias no mercado de trabalho e expressivos aumentos salariais acima da inflação derrubaram os índices de desigualdade no país.
De 2001 a 2011, o Índice de Gini relativo à renda domiciliar caiu 12% no Brasil, o que, segundo especialistas, é um recuo bastante relevante para um índice que costuma se mover a passos de tartaruga. Quanto mais baixo o Gini, menor a desigualdade. Criado pelo italiano Corrado Gini, o índice mede o grau de concentração de renda e varia de zero (perfeita igualdade) a um (desigualdade extrema).
No período, a renda proveniente do trabalho contribuiu com 62% da queda do indicador. Apenas os reajustes reais do salário mínimo responderam por 16% da queda do Gini. Somados à previdência (que se move basicamente com base nos aumentos do salário mínimo), os reajustes contribuíram com 25% da queda da desigualdade no período, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), feitos com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE.
Sem os reiterados aumentos do salário mínimo acima da inflação, o país não estaria na estaca zero em termos de redução das iniquidades de renda, mas é certo que teria uma história bem menos interessante para contar. Parte dos economistas diz, no entanto, que os aumentos reais de salário mínimo representariam um fator precário de redução de desigualdade, com alto potencial inflacionário e data de validade.
Há outro fator de preocupação: a legislação em vigor, segundo a qual o piso salarial brasileiro deve ser corrigido anualmente pela inflação do período (medida pelo INPC) mais variação real do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores, vale só até 2015.
Dessa forma, afirmam os especialistas, a política de redução de desigualdade deveria caminhar no sentido de melhorias educacionais com impactos importantes sobre a produtividade do trabalho em todos os níveis de qualificação. “A qualificação e aumento da produtividade dariam fôlego para aumentos de rendimento do trabalho e redução da desigualdade. Hoje, estamos numa trajetória inviável de aumentos do rendimento do trabalho acima da produtividade”, diz Sonia Rocha, economista e pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), um “think tank” voltado para estratégias para o desenvolvimento.
A pesquisadora reconhece que os aumentos reais do salário foram fundamentais para a queda da desigualdade no país, não só por meio do impacto do salário mínimo via mercado de trabalho, mas também via transferências de renda previdenciárias ou assistenciais. Com relação à previdência, diz Sonia, metade das aposentadorias pagas tem o valor igual ao do salário mínimo. No caso das transferências assistenciais, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago mensalmente por idade ou invalidez a cerca de 3,6 milhões de indivíduos pobres tem, por lei, valor igual ao salário mínimo.
Sonia avalia, contudo, que após um período vigoroso de reajustes salariais reais de 1997 a junho de 2013, diz ela, os ajustes representaram um ganho real de 108% para o salário mínimo, é possível que a política esteja perto do seu esgotamento. “Em algum momento, que pode estar próximo, o salário mínimo deixará de ser sancionado pelo mercado de trabalho e o efeito distributivo positivo do aumento real do salário mínimo seria neutralizado por aumentos indesejados sobre as taxas de desemprego e de formalização.”
Sergei Soares, pesquisador do Ipea e especialista em desigualdade, avalia que os efeitos de desemprego, não presenciados nos últimos anos, em algum momento podem vir à tona, se o salário mínimo continuar crescendo muito acima da inflação. “É o efeito francês, em que os aumentos do salário mínimo não influenciam demais na desigualdade, porque acarretam efeitos de desemprego quase tão grandes quanto os efeitos de redução de desigualdade entre os que continuam empregados.”
Segundo Soares, é possível que a desigualdade de renda caia a um ritmo um pouco menor, se a política vigorosa de aumentos reais de salário mínimos for abandonada. “Fora uma mudança muito drástica no crescimento econômico do país, alguma coisa inesperada como uma crise cambial muito forte, podemos contar com a desigualdade caindo por outra década.”
A importância da discussão pode ser medida pelo tamanho da desigualdade de renda que ainda persiste, diz Soares. Apesar do imenso progresso dos últimos anos, o país ainda é extremamente desigual. Nas contas do pesquisador, se o Gini se mantiver nesse ritmo, serão necessárias pelo menos mais duas décadas e meia para que o país chegue perto do Canadá.
Também do Ipea, Fernando Gaiger afirma que aumentos salariais acima da inflação em um movimento de crescimento econômico e da produtividade são excelente motor de redução da desigualdade. Mas, segundo ele, o atual cenário, com o PIB andando de lado, falta de incrementos à produtividade e inflação ao redor de 6% ao ano, pode afetar a dinâmica distributiva.
Como uma das possíveis saídas ao impasse, Naércio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, fala da importância de aumentar o porcentual de pessoas que chegam ao ensino superior e melhorar a qualidade da educação pública, ajudando a diminuir as desigualdades de renda entre estudantes das escolas públicas e privadas.
João Saboia, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também acredita que o processo de queda das disparidades de renda deve seguir com o aumento da escolaridade da população, cujo nível ainda é muito baixo quando comparado com aos vizinhos latino-americanos. Ele ressalta ainda que o desenvolvimento do ensino técnico pode ter um papel importante na produtividade do trabalho e obtenção de salários mais elevados no futuro, com os programas de transferência de renda, com o Bolsa Família, como um complemento voltado para os excluídos.
Saboia acredita, porém, que os aumentos reais do mínimo ainda têm papel importante nesse jogo. Lembra que as discussões de distribuição de renda no Brasil usualmente utilizam os dados da PNAD, que não captam os ganhos de capital, como aplicações financeiras, bastante concentradas no topo da pirâmide de rendimentos. “Se considerados esses rendimentos, certamente o Gini do país ainda seria mais elevado.”
Fonte: Jornal Valor Econômico – SP
Data: 28/08/2013