09/09/2014
Distribuição de renda melhora, mas diferença entre ricos e pobres ainda é grande e acende ‘sinal amarelo’ no emprego O debate sobre a desigualdade voltou ao centro das discussões econômicas neste ano com a publicação do livro O Capital no Século XXI, escrito pelo economista francês Thomas Piketty. Nele, o autor mostra que a concentração de renda nas economias desenvolvidas é muito mais intensa do que se imaginava. A obra não analisou o Brasil, mas há um consenso em relação ao seu desempenho: ele avançou na distribuição de renda nas últimas décadas, mas continua sendo uma das nações socialmente mais desiguais.
Os indicadores internacionais revelam que há uma melhora na área social e descortinam o tamanho do caminho a ser percorrido pelo Brasil. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País – calculado com base em indicadores de educação, saúde e renda – aumentou de 0,545 em 1980 para 0,744 em 2013. O indicador vai de 0 a 1 e, quanto mais próximo de 1, melhor é qualidade de vida de um país. No ranking de desenvolvimento humano do ano passado, o Brasil ficou apenas na 79.ª colocação, atrás de vizinhos como Chile (41.º lugar), Argentina (49.º) e Uruguai (50.º). “A queda é relevante da desigualdade, mas continuamos com um nível muito alto”, diz Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco.
Outro indicador que apurou a melhora da distribuição de renda é o Índice de Gini, apesar de a queda ter perdido fôlego em 2012 – último dado disponível. Para o rendimento médio mensal real dos domicílios particulares permanentes, o indicador recuou de 0,535 em 2004 para 0,500 no ano passado. O Gini também vai de 0 a 1, mas, nesse caso, quanto mais próximo de zero, menos desigual é um país.
“Apesar da desaceleração, a desigualdade volta a cair a partir de março de 2013”, afirma Marcelo Néri, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência (SAE/PR), com base nos dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), apurada mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Avanços. A melhora social do Brasil pode ser atribuída a vários fatores econômicos e pela adoção de um conjunto de políticas sociais. Com o Plano Real, implantado a partir de 1994, o País superou as elevadas taxa de inflação e passou a ter uma economia mais estável. Recentemente, a formalização do mercado de trabalho e a renda proveniente dele, o aumento do tempo médio de escolaridade do brasileiro, os programas sociais – como o Bolsa Família – e a política de aumento real do salário mínimo colaboraram para a melhora do quadro social.
“O principal responsável pela queda na desigualdade é o mercado de trabalho”, diz Marcos Lisboa, vice-presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“O Bolsa Família desempenha um papel importante na redução da desigualdade, mas é coadjuvante. O protagonista dessa melhora é a renda do trabalho, e ela cresceu mais entre os pobres do que entre outros segmentos da sociedade”, complementa Neri.
No caso do mercado de trabalho, o Brasil viveu uma dinâmica interessante nos últimos anos. O setor de serviços foi o principal criador de vagas da economia nacional dos últimos anos. Por demandar profissionais com baixa qualificação, essa dinâmica permitiu que os brasileiros sem tanta qualificação também entrassem no mercado de trabalho. “O País viveu a partir dos anos 2000 um fenômeno no qual a indústria, que tem o emprego de melhor qualidade, esteve muito fraca, mas várias atividades de serviços apresentaram crescimento”, diz Lisboa. “O grande empregador da economia brasileira é o setor de serviços e isso colaborou para que a renda dos mais pobres tivesse crescido.”
Futuro. A continuidade da melhora no processo de distribuição de renda no País daqui por diante impõe uma série de desafios. E todos os caminhos apontados pelos especialistas passam pelo avanço da educação e dos serviços públicos. “No longo prazo, a agenda está na melhora da qualidade da educação e do trabalho”, diz Néri.
“Uma agenda apenas trivial não pode ser adotada para a educação, porque não vamos dar o salto necessário”, analisa Ricardo Henriques. “A questão-chave na educação é como o País consegue acelerar a visão quantitativa e qualitativa. Se não fizermos isso, provavelmente o Brasil perde o momento no ciclo da história.”
Henriques também destaca que a continuidade no processo de distribuição de renda depende da coordenação de diferentes áreas de políticas sociais entre as várias esferas de governo – federal, estadual e municipal. Segundo ele, uma política social sobreposta entre esses diferentes níveis resulta em perda de recursos públicos. “Há um desafio enorme na ‘pactuação’ entre as esferas de governo”, afirma. “Hoje, um técnico da saúde não conversa com o diretor de uma escola, apesar de estarem no mesmo espaço físico, porque não têm nenhuma relação.”
Um novo entrave para manter em queda a desigualdade está na desaceleração do setor de serviços. Sem força, esse segmento pode demandar menos trabalhadores e prejudicar a formalização no País. “O setor de serviços traz sinais preocupantes. Na medida em que ele enfraquece, isso significa dificuldade mais adiante na economia. A piora já vem há um ano, mas agora ficou mais grave. O mercado de trabalho, inclusive, não tem se comportado tão bem, só que há menos gente procurando emprego”, diz Lisboa.
Na sua avaliação, é preciso rever a política econômica que tem sido adotada para que a distribuição de renda avance em ritmo melhor. Para Lisboa, a questão fiscal – com concessão de benefícios para setores específicos – faz com que “o governo tome emprestado agora para fazer essas transferências”. Ele deixa uma advertência: “Esses recursos terão que ser pagos amanhã e o governo está se endividando agora por causa de algumas políticas setoriais. Isso compromete recursos futuros que poderiam ter um destino alternativo”. Assim, conclui Lisboa, “há um sinal amarelo aceso tanto na política pública como no mercado de trabalho.”
O QUE ESTÁ EM JOGO
Nem em 1994, ano do Plano Real, uma campanha eleitoral discutiu tão intensamente como esta temas macroeconômicos, quase sempre áridos demais para as pessoas comuns.
A candidata Marina Silva, por exemplo, está anunciando na TV e nos debates que quer a volta do tripé econômico (responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante). Defende a autonomia do Banco Central e o retorno das agências reguladoras à função original, administradas por critérios exclusivamente técnicos, e não mais políticos.
A presidente Dilma Rousseff não fica atrás. Sente-se agora na obrigação de rebater as propostas econômicas da oposição. Na semana passada, ela enveredou por atalhos surpreendentes. Afirmou várias vezes, por exemplo, que estava “preocupada” com as propostas de Marina contra a política industrial ou com as que retiram prioridade ao desenvolvimento do pré-sal. O que impressiona não é o conteúdo das propostas,masa confissão da presidente de que se preocupa com algumas delas. Se tem certeza de sua vitória, não teria porque se preocupar com propostas perdedoras.
Nas eleições passadas, os temas econômicos permaneceram subjacentes, episodicamente esgrimidos pelos candidatos. Desta vez, têm de ser explicitados porque a percepção geral é de desencanto, provocado não pela incapacidade de concretização do sonho consumista das novas classes médias, mas pela insegurança causada pela inflação alta demais e pela sucessão de maus desempenhos da atividade econômica.
Independentemente das batalhas verbais, não há escapatória para o próximo governo a não ser providenciar fortes ajustes na política macroeconômica. Eles podem não tomar o movimento brusco de um cavalo de pau, mas é impraticável prosseguir com grande parte das variáveis do atual jogo econômico. Na semana passada, a presidente Dilma, que nunca antes reconhecera falhas na sua administração, admitiu mudanças não apenas na equipe, mas na política econômica. Não é apenas uma concessão aos críticos. É uma necessidade técnica, digamos assim.
Tomemos a questão dos preços administrados. O represamento das tarifas dos combustíveis, da energia elétrica e do transporte coletivo urbano terá de ser revertido sob pena de perpetuar enormes distorções e criar outras.
Outro preço represado para segurar a inflação é o câmbio. Parece impossível dar prosseguimento à atual política que despeja quase US$ 100 bilhões em swaps (equivalentes a vendas de dólares no mercado futuro) em cada semestre. Não há remédio senão deixar que o câmbio se desvalorize.
O “desrepresamento” dos preços administrados e do câmbio, por sua vez, exigirá contra- ataque à inflação com outros instrumentos: apertos na política fiscal e uma política monetária (política de juros) mais sustentável do que a adotada por Dilma até aqui.
Também é inevitável dar prioridade ao investimento. Mas o investimento só virá se houver recuperação da confiança. Está condenada a política econômica experimentalista e com ênfase no consumo que prevaleceu até agora.
Isso implica o retorno a modelo de política econômica de estilo clássico. Discutível é apenas a velocidade e a intensidade desse processo. Se for excessivamente lento e gradual, poderá prolongar demais o processo de recuperação,oque tende a provocar insegurança. Se formais brusco e mais radical, aumentará a conta a ser repassada à população –mas poderá, também, antecipar a virada.
Os primeiros dois anos do novo governo enfrentarão duas novas adversidades. A primeira é a perspectiva de uma temporada de preços relativamente mais baixos das commodities, fruto do aumento da produção e desaceleração do consumo. A outra será o enxugamento de dólares no mercado internacional pela já anunciada reversão da política de farta emissão de dólares pelo Federal Reserve (o BC dos Estados Unidos).
Outra adversidade tem a ver com a baixa esperada das commodities conjugada com valorização do dólar. É um fator que deverá reduzir a receita de moeda estrangeira e, em alguma medida, a arrecadação de impostos.
A redução da capacidade de importar exigirá redução do consumo e um esforço adicional para atrair dólares, tanto para dar cobertura para o déficit crescente das contas externas (contas correntes) como para compor a necessidade de investimentos.
Fonte: O Estado de S. Paulo – 08/09/2014